Sítios de arte rupestre: trabalhos de conservação

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I Maria Conceição Soares Meneses Lage, Ana Luisa Meneses Lage do Nascimento e Welington Lage I

Os sítios de arte rupestre são vestígios arqueológicos visíveis naturalmente, pois encontram-se em ambientes abertos, semi-abrigados, abrigados ou no interior de cavernas. Por esta razão, mantêm uma relação de equilíbrio com o ambiente no qual se inserem, mas também estão expostos a ações naturais e/ou antrópicas que podem favorecer sua degradação, e sabemos, o que temos hoje é apenas uma pequena parte do que foi feito originalmente e resistiu ao tempo.

É importante investigar a situação em que os sítios de arte rupestre se encontram, como e quais agentes podem estar acelerando a degradação, que medidas tomar a fim de desacelerar tais ações e, assim, prolongar a vida de tão importante patrimônio cultural arqueológico.

Estudos dessa natureza, ou seja, voltados à forma de melhor conservar sítios de arte rupestre vêm sendo realizados nos principais países com esses tipos de sítios desde a década de 1960, entretanto, no Brasil, só foram iniciados na década de 1990 por nosso grupo de pesquisa, mas recentemente tem aumentado e ampliado a cada ano.

Os trabalhos realizados seguem orientações do artigo 1º da Carta de Burra (Austrália, 1980), do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS [1], a começar pela definição do termo conservação, que indica os cuidados empregados a um patrimônio cultural a fim de preservar-lhe as características que o identificam como tal. Segundo a situação em que se encontram, os trabalhos de conservação implicarão ou não na preservação ou na restauração, além da manutenção. A não intervenção pode ser também a melhor solução para preservar os sítios.

O termo manutenção corresponde à proteção contínua do sítio arqueológico, da arte rupestre, do conteúdo e do seu entorno imediato e não deve ser confundido com o termo reparação, pois esta implica a restauração e a reconstrução, e assim será considerada [2]. Da mesma forma, este mesmo documento traz a definição dos termos preservação e restauração. Preservação, que  corresponde “à manutenção do sítio em seu estado original e à desaceleração do processo pelo qual se degrada” e restauração que significa “o restabelecimento da substância de um bem em um estado anterior conhecido” (…) [2] e por isso mesmo, este último não é aplicado para trabalhos em sítios de arte rupestre.

Os trabalhos de conservação de arte rupestre que desenvolvemos no Brasil desde a década de 1990 seguem os ensinamentos de especialistas neste tipo de trabalho na França e que foram pioneiros nestas atividades [3]. Ressaltam que “os monumentos rupestres ornados, (…) e os sítios naturais aos quais são associados, formam um conjunto (…) indissociável”, e qualquer ação de proteção sobre eles deverá atingir tanto o domínio cultural quanto o natural. Nesse sentido, as regras que regem a conservação dos sítios arqueológicos estão diretamente vinculadas às regras da conservação do patrimônio cultural e natural. Além da legislação nacional específica e de outros instrumentos legais, tais como a legislação ambiental, de arqueologia e de turismo cultural, a preservação de bens culturais é orientada por Cartas, Declarações e Tratados Nacionais e Internacionais.

Seguindo as convenções internacionais que ocorrem desde a década de 1930 (Carta de Atenas) visando à proteção dos bens culturais, dentre os quais os sítios arqueológicos [4], bem como a Lei Federal 3.924, de 1961, que dispõe sobre monumentos arqueológicos e pré-históricos [5], a Constituição Federal de 1988 nos seus artigos 215 e 216 expressamente considera os sítios arqueológicos como patrimônio cultural brasileiro e mais notadamente em seu artigo 20 os sítios são incluídos como bens patrimoniais da União [6]. Ressalta-se que os sítios arqueológicos são protegidos por lei sem necessariamente se encontrarem cadastrados junto ao IPHAN, pois, o artigo 1º da mesma Lei 3.924, amparada pelo artigo 175 da Constituição Federal, diz: “Os monumentos arqueológicos ou pré-históricos de qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se encontram ficam sob a guarda e proteção do Poder Público (…)”. Ainda conforme esta lei, no seu artigo 5º, “(…) qualquer ato de destruição ou mutilação dos sítios arqueológicos (…) será considerado crime contra o Patrimônio Nacional. [7]

As normas vigentes são complementadas por Portarias do IPHAN que regulam a pesquisa e quaisquer intervenções sobre os sítios arqueológicos, sendo necessária a expressa autorização deste órgão, emitida por meio de uma Portaria de Autorização no Diário Oficial da União, antes de se efetuar qualquer estudo ou intervenção em um sítio arqueológico.

Arte rupestre brasileira: alguns exemplos

O Brasil possui um rico patrimônio arqueológico de arte rupestre, tanto de pinturas, quanto de gravuras. Poderiam ser listados milhares deles distribuídos nas diferentes regiões, no entanto, destacamos alguns da região Nordeste, como por exemplo, a Pedra do Ingá, na Paraíba; sítios gravados do Cânion do rio Poti ou as pinturas dos Parques Nacionais Serra da Capivara e de Sete Cidades, no Piauí; além de outros existentes nos Estados de Tocantins, Mato do Grosso do Sul e Roraima. São conjuntos rupestres muito bem elaborados, no caso das pinturas há pigmentos naturais que passaram por nítido processo de preparação, desde a coleta da matéria-prima até a eliminação dos possíveis grãos de areia existentes a fim de se obter uma tinta mais homogênea e fácil de ser aplicada na superfície rochosa e resistente ao tempo e às intempéries. Já as gravuras percebem-se o uso de técnicas distintas de fabricação, como picoteamento, raspagem e polimento ou até mesmo o uso conjunto de todas elas. Tanto os sítios de pinturas, quanto os de gravuras apresentam representações figurativas ou não figurativas, em vários locais há associações entre figurações formando cenas da vida cotidiana. Há também casos em que se observa grande amadurecimento na técnica de execução dos grafismos, com noções de perspectiva, volume e visão tridimensional (Figs. 1 a 4).

Fig. 1. Sítio Bebidinha, PI, 2019 (fonte: Foto WLage).

Fig. 2. Sítio Filadélfia, TO, 2020 (fonte: Foto WLage).

Fig. 3. Sítio Paredão, TO, 2021(fonte: Foto WLage).

Fig. 4. Sítio Tempo dos Pilares, MS, 2020 (fonte: Foto WLage).

Os problemas de conservação dos sítios de arte rupestre

Os sítios de pinturas e os de gravuras rupestres, como se localizam em ambientes abertos, estão expostos a diferentes tipos de problemas de conservação, tanto de origem natural, quanto antrópica. Os naturais podem ser poeira, irradiação solar, água, plantas grimpantes, microrganismos, ninhos e galerias de insetos construtores, excrementos de répteis, aves, roedores etc. Os problemas antrópicos podem ser acidentais ou intencionais, como por exemplo, pichações feitas com diferentes produtos (giz, tinta a óleo, tinta à base de cal, gesso, carvão e outros) e depósitos de poeira, fuligem etc. Há também casos em que se observa em painéis pré-históricos locais marcados pela retirada de parte de placas pintadas.

Problemas antrópicos acidentais acontecem quando não há intenção em degradar o sítio, mas como se encontram em áreas abertas, próximas às roças e ainda é muito comum a prática da “coivara” para fazer as plantações, pode acontecer a presença inesperada de um vento forte no momento da queimada (“broca”), espalhando o fogo desordenadamente e ele termina atingindo a área dos sítios arqueológicos. Anualmente se observa tais fatos. No entanto, esses não são os únicos causadores de incêndios florestais. Bem mais grave e abrangente são os provocados intencionalmente por “criminosos” para derrubar vegetação de médio e grande porte a fim de favorecer o crescimento de arbustos secundários que podem servir de pasto para criadores de caprinos e bovinos (Figs. 5 e 6).

Fig. 5. Sítio Tempo dos Pilares, MS, 2020 (fonte: Foto WLage).

Fig. 6. Sítio da Cruz – PARNA Sete Cidades, 2023 (fonte: Foto WLage).

Exemplos de trabalhos de conservação de sítios de arte rupestre

Os trabalhos de conservação de arte rupestre são iniciados com uma investigação baseada em dados secundários, buscando o máximo de informações sobre o sítio arqueológico, tanto no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos – CNSA/IPHAN, quanto no Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão (SICG/IPHAN), como também dados históricos, etnohistóricos e o contexto geoambiental.

A segunda etapa do trabalho é a ida ao campo, que inclui uma reunião com os moradores locais a fim de apresentar o projeto, a equipe de trabalho e os equipamentos que serão utilizados. Essa ação é a mais interativa possível e busca a socialização do mundo acadêmico arqueológico com a comunidade.

No sítio se faz a avaliação macroscópica do conjunto gráfico, do suporte rochoso e dos problemas existentes. Para facilitar a ação, os painéis são divididos em pontos, iniciando a contagem da esquerda para a direita e de cima para baixo. A determinação da unidade “painel” é feita considerando a inserção dos grafismos existentes no mesmo campo visual de um observador localizado em frente ao paredão rochoso.

Em cada painel do sítio procede-se uma avaliação sobre o seu estado geral de conservação, a qual consta de observação dos diferentes tipos de agressões presentes em cada caso, a realização de testes para remoção dos depósitos de alteração e análises espectroscópicas micro-elementar por fluorescência X portátil dos pigmentos rupestres, depósitos de alteração e rocha suporte.

Os exames microscópicos são realizados com o uso de um microscópio portátil do tipo Pró-Scope com lentes variadas (30X; 50X, 100X), acoplado em um microcomputador. As avaliações e análises realizadas in situ permitem elaborar um mapa de danos, o qual consta de uma imagem com a descrição dos problemas e a proposição de ação a ser realizada na etapa de intervenção.

No laboratório são realizados os estudos complementares com o objetivo de levantar mais informações sobre os dados coletados in situ e assim direcionar a etapa seguinte de intervenção de conservação.

A intervenção no sítio corresponde a limpeza geral a fim de remover os depósitos de alteração presentes nos painéis rupestres. O objetivo é fazer com que os grafismos pré-coloniais sejam a principal característica do lugar (Figs. 7 a 10).

Fig. 7. Sítio Baixa do Cajueiro, PI – antes da intervenção, 2019 (fonte: Foto Conceição Lage).

Fig. 8. Sítio Baixa do Cajueiro, PI – após intervenção, 2019 (fonte: Foto Conceição Lage).

Fig. 9. Sítio do Grotão – Santo Sé, BA – antes da intervenção, 2015 (fonte: Foto WLage).

Fig. 10. Sítio do Grotão – Santo Sé, BA – após intervenção, 2015 (fonte: Foto WLage).

Deve-se ter em mente que a finalidade maior de uma intervenção é realçar a característica principal do sítio e do lugar, que são os painéis rupestres. Todo o trabalho é documentado com registro fotográfico digital antes, durante e após as intervenções.

A última etapa do trabalho de conservação é o Monitoramento dos Sítios, ou seja, o acompanhamento do estado geral de conservação com o propósito de evitar a reincidência dos mesmos problemas ou o aparecimento de novos. Corresponde também à complementação do diagnóstico, contando com cobertura fotográfica, as quais servirão para efetuar futuros estudos comparativos.

Nessa fase se efetuam medidas higrotérmicas do suporte rochoso e do ar atmosférico nos sítios em diferentes horários ao longo do ano com o objetivo de se obter dados nas estações chuvosa e seca; observação do avanço de depósitos de alteração em zonas com arte rupestres; verificação da incidência solar sobre zonas com pinturas ao longo do ano; e realização de estudos complementares por diferentes especialistas: geólogos, biólogos, botânicos, entomologistas dentre outros.

Considerações finais

As intervenções realizadas até o momento forneceram resultados bastante satisfatórios, como a evidenciação de pinturas antes não visíveis, desaceleração no crescimento de biodepósitos sobre painéis pré-coloniais e consolidação de placas rochosas com pinturas que estavam prestes a cair. No entanto, é necessário observar o avanço de agentes de degradação e realizar pequenas intervenções para amenizar os efeitos negativos que possam ocasionar.

Ressalta-se que a realização de trabalhos de conservação de sítios de arte rupestre permite minimizar o efeito dos problemas em vários pontos dos painéis, mas não são trabalhos exaustivos, para tanto seriam necessários pelo menos dois anos de ações sistemáticas em cada sítio.

Na maioria dos casos se encontrou muita dificuldade para eliminar os biodepósitos e as manchas deixadas por eles nos suportes rochosos, especialmente por se tratar de ambientes abertos, expostos ao tempo, à ação de intempéries, sem ter como controlar a atuação.

Importante destacar a boa receptividade recebida pela equipe técnica tanto do poder público local, dos proprietários e dos moradores do entorno em geral, nas atividades de socialização patrimonial. Um excelente exemplo foi o do Tuxaua da Comunidade indígena Perdiz-RR e dos representantes da Associação Indígena da Terra de São Marcos em Roraima – APITSMRR, em especial o coordenador geral e um consultor. Foi marcante o interesse deles pelo trabalho de conservação de sítios de arte rupestre desenvolvidos no sítio Perdiz e o empenho de todos em aprender as ações básicas para realizar serviços de manutenção futuras.

Um importante ponto a lembrar é a necessidade de realização de trabalhos de monitoramento a fim de controlar os problemas existentes, como a infestação pelos liquens e insetos construtores, bem como evitar ao máximo novas agressões. Tais depósitos de alteração findam por encobrir painéis rupestres pré-coloniais.

Outra ação necessária é afastar as galerias de térmitas dos painéis pré-coloniais. Para isso, se faz necessário identificar, localizar e aplicar produtos específicos, com o objetivo de eliminar a rainha, desativando os ninhos de onde partem os operários construtores.

Deve-se proceder limpezas periódicas nas áreas próximas aos paredões decorados, a fim de evitar que plantas invasoras toquem o suporte rochoso e/ou painéis rupestres, bem como retirar restos de vegetais mortos ou secos que além de funcionar como biomassa combustível, tornam-se um atrativo para a incidência de cupim.

É importante realizar investigações sobre os biodepósitos, como por exemplo, identificar as espécies de microrganismos presentes nos sítios para que se possa controlar o seu avanço, evitando assim, o consequente recobrimento de painéis rupestres pré-coloniais.


Notas

[1] COMITÉ DOMINICANO DO ICOMOS – Conselho Internacional de Monumentos e Sítios: CARTA DE BURRA, 1980. In: IPHAN. Cartas Patrimoniais. Brasília: IPHAN, 2014. (Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/226).

[2] Idem.

[3] BRUNET, J. VIDAL, P.; VOUVE, J. Conservation de l’art rupestre: deux études, glossaire illustré. Paris: Unesco, 1985, p. 54.

[4] COMITÉ DOMINICANO DO ICOMOS, op. cit, 2014.

[5] BRASIL. Lei Federal 3.924, de 1961.

[6] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

[7] BRASIL. Lei Federal 3.924, de 1961.

Referências Bibliográficas

BRUNET, J. DANGAS, I.; VIDAL , P;  VOUVE, J.  La conservation de l’art des cavernes et des abris. In: Section Française de l’Institut International de Conservation. Champs sur Marne, 1990,  p. 25-32..

BRUNET, J.; VOUVE, J.  La conservation des Gorttes Ornées. 1ª Edição, Paris: CNRS, 1996.

CANEVA, Giulia; SALVADORI, Ornella. La dégradation et la conservation de la Pierre. Paris: Unesco, n. 16, 1996.

LAGE, M. C. S. M. e LAGE, W. Conservation of rock-art sites in Northeastern Brazil. In: Open-Air Rock-Art Conservation and Management – State of the Art and Future Perspectives. New York: Routledge Studies in Archaeology, 2014.

CASTRO, Sônia Rabello de. Coletânea de Leis sobre o Patrimônio Cultural. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006.

LAGE, Maria Conceição Soares Meneses. A conservação de sítios de arte rupestre. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 33 – Patrimônio Arqueológico: o desafio da preservação. Brasília: IPHAN, 2007.


Maria Conceição Soares Meneses Lage

Doutora em Arqueologia, Antropologia e Etnologia pela Université de Paris I, Panthéon-Sorbonne, Professora Pró-Sênior da Universidade Federal do Piauí, Bolsista do CNPQ em Produtividade e Pesquisa, Pesquisadora e Conselheira Científica da Fundação Museu do Homem Americano. E-mail: meneses.lage@gmail.com

Ana Luisa Meneses Lage do Nascimento

Doutora em Arqueologia pelo Museu Nacional – UFRJ, Professora Adjunto II da Universidade Federal do Piauí, Consultora Científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí e da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Membro da atual diretoria da Associação Brasileira de Arte Rupestre. E-mail: analage@ufpi.edu.br

Welington Lage

Doutor em Arqueologia pela Universidade de Coimbra-UC-Portugal. Pesquisador do Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Patrimônio – UC – Portugal. Diretor Presidente da Empresa WLage Consultoria Científica Ltda. E-mail: welingtonlage@gmail.com


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