A igreja de Santa Maria del Priorato (Roma): restauração e revalorização do legado arquitetônico de G. B. Piranesi

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| Angela Rosch Rodrigues |

O veneziano Giovanni Battista (Giambattista) Piranesi (1720-1778) deixou um grande legado à história da arte e da arquitetura devido à forma com que utilizava as referências da antiguidade para articular sua inventividade através de fantasias arquitetônicas gravadas em água-forte (acquaforte) [1], desenhos, restaurações e recomposições em remanescentes de escavações arqueológicas. Contudo, há uma única peça arquitetônica por ele projetada e executada [2]: a igreja de Santa Maria del Priorato em Roma cidade onde Piranesi passou grande parte de sua vida.

Essa obra foi realizada entre 1764 e 1766 e é produto da maturidade intelectual de sua trajetória enquanto estudioso e teórico da arquitetura. O projeto consistia em uma reestruturação da igreja da Ordem dos Cavaleiros de Malta preexistente no monte Aventino e parcialmente deixada ao abandono nos anos anteriores. O convite partiu de Giovanni Battista Rezzonico (1740-1783) – sobrinho do Papa, Cardeal e nomeado Grão-Prior da Ordem de Malta em 1763.

Entre fins de 2017 e o início de 2019 foi realizada uma restauração conservativa na igreja. Os trabalhos tiveram projeto e direção do arquiteto Giorgio Ferreri, execução pela Acanto Restauri e financiamento da Ordem de Malta. A intervenção teve como principal objetivo se aproximar do aspecto da obra como concebida e executada por Piranesi em meados do século XVIII.

A reestruturação de G. B. Piranesi

Em 1764, Piranesi aceitou o encargo que, segundo suas palavras, consistia em deixar o conjunto da igreja de Santa Maria del Priorato proveniente do século XVI “[…] renovado, mais que restaurado […]” [3] conferindo-lhe um aspecto mais monumental, capaz de expressar os propósitos da Ordem de Malta e os méritos da família dos Rezzonico – patronos de Piranesi durante o Pontificado de Clemente XIII (Carlo della Torre di Rezzonico) de 1758 a 1769 [4].

As operações realizadas foram descritas no “Libro dei conti” [5] conjugando as informações do capomastro muratore (mestre de obras) Giuseppe Pelosini e assinado por Piranesi. Esse livro consistia numa espécie de diário de obras com os respectivos gastos que se tornou um documento crucial para entender a dimensão da intervenção iniciada em 10 de novembro de 1764 e concluída em 31 de outubro de 1766 [6]. As obras envolveram a organização dos acessos ao conjunto através da abertura de uma praça retangular (Piazza dei Cavalieri di Malta) (Fig.1), a reestruturação do portal de acesso (Fig. 2), os jardins e a igreja – com um novo desenho de fachada e o interior transformado.

Fig. 1. Piazza dei Cavalieri di Malta, 27 de Setembro de 2019 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Fig. 2. Portal de acesso ao conjunto da Ordem de Malta, 27 de Setembro de 2019 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Giambattista demonstrou preocupações de ordem estrutural para o canteiro de obras; foram realizados muros de contenção para o jardim na escarpa do Rio Tibre e terraplanagens. Na igreja, ele procurou respeitar a morfologia geral do edifício do século XVI; reforçou as fundações – devido ao vazio sob o piso destinado às sepulturas; refez a cobertura; e acrescentou um aparato à altura da fachada no frontão (ático) que acabou sendo destruído por um bombardeamento de canhões franceses durante o Risorgimento, em 1849 [7].

Na falta de um projeto cotado, o Libro dei conti confirma que a fachada foi idealizada por Piranesi e foi realizada com a colaboração do escultor romano Tommaso Righi (1727-1802). Há um desenho anônimo que corresponde à fachada concebida por Piranesi antes da destruição e está conservado no Sir John Soane Museum (Londres) [8].

Através dos elementos iconográficos utilizados para a praça, o jardim e a igreja Piranesi mobilizou vários aspectos: seus amplos conhecimentos arqueológicos acumulados ao longo de sua trajetória em meio às ruínas de Roma e arredores; seus estudos e digressões sobre as arquitetura e arte dos etruscos e egípcios; os conhecimentos sobre o histórico da Ordem de Malta; os trabalhos de escavação no local da igreja a ser reestruturada; e sua relação direta com a família dos Rezzonico. Ao reestruturar a igreja, Piranesi teve a intenção de conceber uma câmera funerária em honra aos Grão-Mestres da Ordem de Malta, mesclando a iconografia embasada no mundo egípcio, etrusco e romano.

Vamos nos concentrar aqui na análise de sua intervenção para a igreja que foi recentemente restaurada. Para a fachada (Fig. 3) Piranesi mudou a estrutura preexistente do século XVI propondo um acréscimo no frontão (ático) com uma temática que evidenciava sua dedicatória à família dos Rezzonico através dos emblemas nas duas laterais – as duas torres e a águia bicípite coroada; esses dois elementos se encontram de maneira recorrente sobre os capiteis esculpidos da fachada remanescente (enquadrados por esfinges egípcias) (Fig. 4) e também no interior na igreja, bem como no pórtico e praça na parte externa do conjunto.

Fig. 3. Fachada da igreja de Santa Maria del Priorato, 21 de Fevereiro de 2020 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Fig. 4. Fachada: detalhes decorativos da intervenção de Piranesi. Nos fustes das colunas as bainhas de espadas; nos capitéis as esfinges egípcias enquadram a torre da família Rezzonico, 21 de Fevereiro de 2020 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Para realizar esse ático, Piranesi procedeu a uma completa remontagem da cobertura. Do ponto de vista compositivo, a estrutura sintática e as proporções entre as partes desse acréscimo na fachada deturpavam a morfologia tradicional invertendo a hierarquia dos partidos arquitetônicos apregoada pelas preceptivas artísticas desde o Renascimento.

Na fachada como um todo, Piranesi propôs a alternância entre cheios e vazios fazendo com que a antiga estrutura se tornasse um episódio do percurso narrativo (e não a narração em si) alusivo a uma representação cemiterial que tem início na Piazza dei Cavalieri di Malta. Para os embasamentos das colunas foi utilizado o travertino e para o acabamento dos ornamentos, o estuque branco. Os adornos foram dispostos simetricamente, mas sem seguir uma ordem arquitetônica, constituindo um manifesto edificado no qual é encenada a dissolução e rearticulação das regras, que é um dos objetivos de Piranesi. Assim, os elementos foram constituídos por um léxico da antiguidade desconstruído, reinterpretado e reproposto.

No interior da igreja (Fig. 5) Piranesi conduziu intervenções mais modestas em relação à morfologia geral, mas de relevância estrutural. Um dos primeiros trabalhos foi a abertura de um novo vão de janela no meio da tribuna curva o que conferiu um efeito mais intenso de claro e escuro ao altar. Com o lanternim, a abóboda foi adaptada e seguiram os complexos trabalhos para a ornamentação realizados e descritos detalhadamente no Libro dei conti.

Para a abside foram apagados os afrescos preexistentes e foi realizado um aparato em formato de concha que acolhe a arma gentilícia do Grão Priorato (Fig. 6). Símbolos marítimos também aparecem na ornamentação da abside, sobre as portas que conduzem à sacristia e ao lado oposto. Os adornos são constituídos por ancoras com volutas entrelaçadas que sustém a torre dos Rezzonico.

Fig. 5. Vista geral do interior da igreja, 27 de Setembro de 2019 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Fig. 6. Na abside, detalhe da ornamentação em formato de concha que acolhe a arma gentilícia do Priorato, 21 de Fevereiro de 2020 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

A imagem dos escudos onipresentes nas composições de Piranesi para Santa Maria del Priorato recordam que a Ordem de Malta nasceu na Terra Santa não com um caráter militar ofensivo, mas defensivo. A lembrança dos troféus militares também é um modo para Piranesi fazer uma referência ao cerimonial Armilustrium [9], descoberto nas escavações arqueológicas realizadas sob a praça. Os antigos romanos organizavam tradicionalmente nessa parte do monte Aventino procissões e cerimônias de purificação de suas armas a cada mês de outubro em honra ao deus Marte, encerrando assim as atividades militares para o inverno até a primavera do próximo ano. Através da intervenção na praça de Piranesi, os cavaleiros de Malta eram convidados de modo evocativo a depositar suas armas antes de adentrar ao conjunto e rezar na sua igreja – remetendo aos antigos romanos.

O percurso solene, sacro e cemiterial iniciado na Piazza dei Cavalieri e novamente anunciado na fachada tem como apoteose o altar da igreja (Fig. 7). Esse foco central tem o valor simbólico da conexão entre os mundos terrestre e celestial. Representando a finitude humana, as grandes lastras tumulares marmóreas na base do altar revelam a tendência piranesiana à arqueologia já que tinham sido descobertas durante as escavações in loco no cemitério adjacente (que não existe mais) e foram reutilizadas para a consolidação das fundações e como plataformas para o altar, o que acentua o caráter sepulcral da igreja.

A beatitude ultraterrena é representada pela apoteose de São Basílio [10]  com anjos que o alçam da Terra para o Céu. Essa escultura é a intervenção mais significativa de Tommaso Righi para Santa Maria del Priorato. Em frente ao altar, em primeiro plano, a imagem da Virgem Maria (para quem a igreja é dedicada) [11] está representada em um medalhão com Jesus menino e São João Batista (Santo protetor da Ordem e onomástico do Cardeal G. B. Rezzonico e de Piranesi).

Para a apreensão da cenografia [12] total do altar, é determinante a luz que vem de cima (lanternim) e de trás da estátua de São Basílio que ascende assentado em um globo cósmico, cuja parte frontal remanesce em uma penumbra tênue. O grande globo possui uma série de significados alegóricos ligados ao seu valor hermético; a amplitude de sua superfície lisa se contrapõe com o vertiginoso movimento de caráter barroco dos ornatos e da luz dando a ele um significado de axis-mundi (Fig. 8).

Fig. 7. Altar com conjunto escultórico da apoteose de São Basílio, 21 de Fevereiro de 2020 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Fig. 8. O globo do altar visto pela parte de trás, 21 de Fevereiro de 2020 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Piranesi dedicou quatro desenhos preparatórios a esse altar, dos quais o segundo – que se encontra na Pierpont Morgan Library (New York) – constitui um projeto executivo do corpo central e um terceiro – que se encontra na Kunstbibliothek (Berlin) – onde o altar é sumariamente representado na sua completeza. Para a solução final, Giambattista remeteu a uma cenografia inspirada em modelos arquitetônicos barrocos, sob a influência de seus anos formativos em Veneza e sua grande admiração ao arquiteto Francesco Borromini (1599-1667).

Todo o projeto para Santa Maria del Priorato revela traços da influência desse mestre barroco; por exemplo, a forma com que este utilizou os elementos arquitetônicos para cuidadosamente emoldurar e integrar os ornamentos monocromáticos, ou em tons claros em especial para as igrejas de San Carlo alle Quattro Fontane, de Sant’Ivo alla Sapienza e da Capella dei Magi (no Palazzo della Propaganda Fides).

No centro da nave, Piranesi concebeu um grande quadro do qual remanesce o desenho na Pierpont Morgan Library (New York). Também nessa ornamentação se revela a paixão de Piranesi pela bricolagem e por uma organização inventarial do material figurativo rico e diversificado.

Há referências ao papel naval e religioso da história da Ordem através de uma iconologia tradicional. O elemento portante é um lábaro, fechado em uma guirlanda com o selo Pax Christi no qual está pendurada uma tiara papal e a túnica dos cavaleiros da Ordem; há um navio, um troféu de escudos atrelado à figura central que é o triângulo equilátero que representa a trindade com festões de maços de rosas do qual irradiam feixes de luz; aos pés do triângulo um estandarte com a figura dedicada a São João Batista (Fig. 9).

Há outros elementos na ornamentação do teto da nave como o estema da família Rezzonico, o chapéu de Cardeal e a cruz de Malta. Toda essa composição constitui episódios narrativos de um percurso que conduz à lanterna, resolvida com quatro grandes pétalas nas quais são colocados os medalhões com a história de São João Batista (Fig. 10).

Na intervenção da nave, outro ponto de interesse para Piranesi foi a ornamentação das abóbodas, das cornijas sobre os capitéis e dos oitos nichos laterais, onde foram removidos e reorganizados os sepulcros preexistentes dos grandes mestres da ordem. A ressistematização das cornijas da nave constituiu para Piranesi a ocasião para o emolduramento desse material arqueológico que foi ordenado nas laterais da nave central. Quatro antigas arcas sepulcrais do período medieval precediam a intervenção de Piranesi, sendo provenientes dos trabalhos realizados em 1617 coordenados pelo Cardeal Aldobrandini (1571-1621).

Na iconografia dos ressaltos de fundo dos nichos também são recorrentes os elementos do léxico ornamental piranesiano: conchas, festões, a coroa tríplice, a mitra, as rosas; além de diversos elementos associados à vanitas (vanidade das obras humanas) que reforçam o aspecto funerário e são pouco comuns numa igreja tradicional como crânios humanos (imagem da morte e da vã glória), tochas invertidas (sinal de morte na antiga cultura romana, assim como para os adeptos do culto de Mitra) e serpentes [13] (Fig. 11).

Fig. 9. Painel da nave central, 27 de Setembro de 2019 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Fig. 10. Detalhe das quatro pétalas com os medalhões da história de São João Batista, 21 de Fevereiro de 2020 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Fig. 11. Detalhes decorativos dos nichos laterais: a tumba medieval em primeiro plano e ao fundo uma composição ornamental que reforça o aspecto funerário, 27 de Setembro de 2019 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

Em 13 de outubro de 1766, o complexo pôde finalmente ser apresentado a Giovanni Battista Rezzonico e ao Papa Clemente XIII que, como recompensa, conferiu a Piranesi o título de Cavaleiro do Sperone D’Oro da Ordem dos Cavaleiros de Malta; essa insígnia se tornaria muito prestigiosa para Giambattista que passou a inseri-la na assinatura de seus trabalhos como Cavaliere.

Piranesi não sabia, contudo, que anos mais tarde seria enterrado nessa sua obra, pois esperava que sua sepultura fosse na Igreja de Santa Maria degli Angeli. Ele morreu em 9 de novembro de 1778 e seu corpo foi sepultado na Igreja Sant`Andrea delle Fratte; em 1779 seus restos mortais foram transferidos à Santa Maria del Priorato com um túmulo marcado pela estátua de Giuseppe Angelini (1735-1811) [14]  (Fig. 12).

A intervenção de Piranesi para Santa Maria del Priorato não pode ser lida no âmbito da chave contemporânea do restauro crítico conservativo. Contudo, há que se considerar que sua proposta esteve condicionada pela preexistência dos elementos da igreja do século XVI tanto na área externa como interna [15].

Com essa intervenção, Piranesi realizou um espaço museal através da reproposição e reinterpretação dos elementos iconográficos do grande catálogo das antiguidades de que ele dispunha, colocando em voga os fragmentos “des-historicizados” do léxico da antiguidade, segundo um modelo idealizado e embasado na inventiva e genial manipulação do artista. A interposição dos “nobres” fragmentos do passado anuncia um dos temas prementes em toda sua trajetória artística: a abordagem e a reutilização da antiguidade. A arquitetura passa a ser utilizada, então, como um cenário sobre o qual recitam os remanescentes articulados e reinventados da história.

Fig. 12. Túmulo de G. B. Piranesi marcado pela estátua de Giuseppe Angelini, 27 de Setembro de 2019 (fonte: foto Angela Rosch Rodrigues).

A restauração recente e a revalorização da obra de Piranesi [16]

Após a finalização da intervenção de Piranesi, em 1766, a igreja passou por algumas avarias, principalmente com a já mencionada destruição do adendo da fachada em 1849 devido ao bombardeamento francês. Nesse período foi necessária uma manutenção da cobertura. No século XX, em torno dos anos 1960, outros trabalhos enfocaram reforços estruturais. No entanto, os detalhes ornamentais nunca tinham passado por intervenções desde sua execução no século XVIII.

Para a restauração iniciada em outubro de 2017, primeiramente, foi realizado um levantamento detalhado para verificar as condições gerais do bem. Foram demarcados os pontos críticos, as lesões, os graus de degradação. Foi detectado que a maioria das patologias decorria da passagem dos anos e da falta de uma manutenção conservativa. Nas superfícies havia pontos de umidade tanto no teto quanto no piso, destacando algumas partes dos estuques do século XVIII; uma camada de pó e sujeira levava à uniformização dos ornamentos dificultando a percepção de seu relevo. Externamente, o efeito das intempéries ao longo do tempo também recobriu as fachadas com uma pátina que comprometia a leitura dos detalhes ornamentais.

A abordagem metodológica dessa intervenção optou pela repristinação do aspecto setecentista a fim de evidenciar o projeto de Piranesi. A restauração foi conduzida em duas frentes: a parte interna e a parte externa. Foi realizada uma limpeza milimétrica para a remoção do acúmulo de poeira e mofo. Também se optou por retirar alguns elementos acrescidos no interior da igreja que comprometiam a leitura dos elementos de Piranesi.

Na sequência, foram consolidados os detalhes ornamentais tanto da área interna quanto da área externa com um composto à base de cal para reforçar a adesão entre o estuque e a alvenaria originais nos pontos em que havia destacamento. As partes danificadas foram removidas, restauradas e recolocadas. Nas áreas mais críticas, onde não foi possível a consolidação, optou-se pela reconstituição dos trechos faltantes com a reconstrução do estuque original. Um dos elementos mais acuradamente trabalhados na parte interna foi o grande painel da abóboda em que havia pontos degradados e partes originais do estuque soltas da superfície de alvenaria em decorrência de infiltrações no teto.

As reconstituições necessárias procuraram ser pouco invasivas, utilizando materiais tradicionais para realizar a sutura entre as partes originais e os novos complementos. Ao aproximar o olhar aos detalhes que foram completados, constata-se que se partiu da premissa da distinguibilidade através da diferenciação nas espessuras (entre 1 a 2 milímetros) entre as partes velhas e novas. Em alguns casos foram realizados modelos em silicone para a confecção das partes que seriam reconstituídas, como nos rostos dos apóstolos que fazem parte dos medalhões na base do teto da nave central.

Durante as prospecções, também foi possível localizar as cores concebidas no projeto de Piranesi, já que a documentação disponível não dava testemunhos sobre a proposta cromática. As cores bastante tênues foram retomadas para acentuar a percepção da profundidade dos elementos ornamentais evidenciando a relação figura-fundo. Na parte interna da igreja, o fundo em marfim claro emoldura a ornamentação geral em branco travertino, em especial no grande painel da nave central. No exterior essa escala cromática é acrescida de uma terceira cor: o branco travertino nos elementos da fachada é destacado por um ocre claro de fundo, nas demais paredes laterais, o marfim claro.

A intervenção foi concluída em fins de 2018, todas as etapas (limpeza, consolidação, reconstituição e proposição cromática) foram realizadas com uma precisão filológica que documentou todo o processo através de levantamento fotográfico e gráfico.

Como a igreja de Santa Maria del Priorato estava praticamente inalterada mantendo as características da intervenção de Piranesi, foi possível uma melhor decodificação de suas escolhas de projeto: a forma com que lidou com a preexistência e com o aparato arqueológico do qual dispunha no local, como afrontou as questões estruturais e como articulou as escolhas ornamentais.

A profusão de adornos concebida por Piranesi, com proporções exatas de acordo com seus desenho, evidencia o cuidado com que ele trabalhou nos mínimos detalhes essa sua única obra arquitetônica construída, como se fosse uma grande prancha gravada em acquaforte, sua especialidade artística.

Um legado arquitetônico

Piranesi sempre fez questão de assinar seus trabalhos como architetto veneziano [17], embora nessa área não fosse igualmente reconhecido por muitos de seus pares. Poucos foram os que acolheram com entusiasmo sua intervenção na igreja de Santa Maria del Priorato, julgada como pouco coerente, não harmoniosa e muito fantasiosa. Por exemplo, Luigi Vanvitelli (1700-1773), um dos arquitetos mais renomados naquele contexto romano, escreveu em carta ao irmão: “Piranesi tem talento; mas é um perfeito louco em tudo; por isso nada me surpreende sobre seus dispendiosíssimos e impróprios ornamentos que realizou para o Sobrinho Santíssimo” [18].

A partir do século XX, a produção artística piranesiana foi incorporada pela historiografia da arquitetura e ele passou a ser considerado como arquiteto e teórico através dos estudos de Werner Körte – Piranesi als praktischer Architekt (1933) [19] e Rudolf Wittkower nos ensaios: Piranesi’s Parere sul’architettura (1938) [20], Piranesi’s architectural creed (1938) [21], Piranesi as architect (1961) [22]. Críticos como Joseph Rykwert [23], Manfredo Tafuri [24] e John Wilton-Ely [25] situam Piranesi como uma peça chave para a conceituação sobre as origens da arquitetura moderna.

Nesse processo de retomada e valorização da obra de Piranesi, a igreja de Santa Maria del Priorato assumiu um papel relevante, representando o vértice da fenomenologia artística de sua trajetória por ter sido sua única comissão arquitetônica executada, concebida num momento de sua maturidade intelectual.

Ao longo da década de 1760, Piranesi esteve envolvido com uma série de trabalhos diversificados que envolveram a polêmica sobre a excelência das artes e da arquitetura dos antigos – notadamente Grécia ou Roma. Piranesi produziu seu grande tratado Della Magnificenza ed’Architettura d’Romani (1761) [26] a favor dos méritos da arquitetura romana, colocando-a em débito com os etruscos.

Essa tese provocou algumas reações contrárias. Na França, Pierre Jean Mariette (1694-1774) apresentou uma carta, em 1764 ,na Gazette littéraire de l’Europe [27] rebatendo Piranesi e alegando que a arquitetura romana não só derivava da grega, mas também que a havia corrompido com excessos ornamentais. Piranesi prontamente articulou uma resposta sustentando a argumentação sobre a superioridade romana compilada em três textos com gravuras: Osservazioni sopra la lettre de M. Mariette aux auteurs de La Gazette littéraire de l’Europe; Parere su l’architettura e Della introduzione e del progresso delle belle arti in Europa ne’tempi antichi (1765) [28]. Dessa trilogia, a obra do meio – Parere su l`architettura – abordava temas que transcendiam a mera disputa greco-romana, pois, é onde Piranesi explicita suas opiniões sobre os limites e objetivos da disciplina arquitetônica, sintetizando o debate vigente no Século das Luzes.

O Parere su l’architettura é a obra que representa o auge da reflexão teórica piranesiana, decantando princípios e argumentos que encontram correspondência nos coetâneos trabalhos para a renovação da igreja de Santa Maria del Priorato. O resultado final apresenta um intrincado efeito visual por utilizar as referências simbólicas da antiguidade egípcia, etrusca e romana, das escavações locais no monte Aventino e o histórico da Ordem dos Cavaleiros de Malta. Assim, Giambattista propôs uma linguagem que remete à arte tardo-barroca e, simultaneamente, sustém a incipiente arte neoclássica. A igreja de Santa Maria del Priorato apresenta, portanto, uma retórica iconográfica que permite estabelecer uma relação não só com a trajetória das obras piranesianas mas, também, com a história da arte e da arquitetura.

Considerações finais

A totalidade das obras de Piranesi continua sendo revisitada por diversos intelectuais contemporâneos, pois oferece uma multiplicidade de interpretações e análises que se renovam continuamente. Nesse sentido, os recentes trabalhos de restauração na igreja de Santa Maria del Priorato se tornaram um instrumento para evidenciar o valor da intervenção de Piranesi com o qual se pôde vislumbrar com clareza como ele articulou suas ideias sobre o ornamento e a verdade arquitetônica com os diversificados elementos extraídos da antiguidade permeados pela liberdade compositiva.

Assim, na dialética entre o exercício historiográfico e o projeto de restauro, houve a oportunidade para confrontar informações históricas, reminiscências projetuais e textuais e um conhecimento mais aprofundado sobre o bem cultural, adicionando novas informações sobre suas dimensões material, figurativa e interpretativa.


Notas
[1] Essa modalidade de gravura consiste, basicamente, na incisão com buril e ácidos em uma matriz de cobre.
[2] Piranesi realizou uma série de projetos para a reestruturação da abside e do altar de San Giovanni in Laterano (Roma), em 1763, que nunca foram executados. Também foi o responsável pelo projeto do interior do Caffè degli Inglesi (Roma) que foi executado entre 1765-1767, mas se perdeu com o tempo.
[3] PIRANESI, Giovanni Battista. Diverse maniere d’adornare i camini. Roma, 1769, s.p. Disponível em: <https://archive.org/details/Diversimaniered00Pira>, acesso em 17 nov. 2017.
[4] Além do projeto de Santa Maria no Aventino, os “della Torre di Rezzonico” tinham confiado a Piranesi o projeto de San Giovanni in Laterano e a reformulação dos apartamentos pontífices no Castel Gandolfo, no Palazzo Quirinale e no Campidoglio. Piranesi dedicou ao Papa Clemente XIII o seu tratado Della Magnificenza ed’Architettura d’Romani (1761) e ao Cardeal G. B. Rezzonico sua publicação Diverse maniere d’adornare i camini (1769) onde mencionou sua intervenção em Santa Maria del Priorato, remetendo a vários temas iconográficos para a composição dos projetos de lareiras propostos no volume.
[5] O Libro dei conti se encontra na Avery Library, Columbia University, New York.
[6] PANZA, Pierluigi. Piranesi architetto. Milano: Guerini studio, 2012.
[7] WILTON-ELY, John. Piranesi: as architect and designer. New York: The Pierpont Morgan Library, 1993.
[8] Referência: Adam vol.27/48. O desenho é atribuído a uma coleção do arquiteto Robert Adam (1728-1792), amigo pessoal de G. B. Piranesi.
[9] WILTON-ELY, John. Op. cit., p. 113.
[10] A figura de São Basílio (329-379) tem um simbolismo que remonta à caridade da Ordem de Malta. São Basílio, bispo da Capadócia, é conhecido por ter investido o patrimônio familiar na construção de hospícios e hospitais para o acolhimento dos mais necessitados na Turquia. Foi considerado como o percursor da missão dos Hospitaleiros na Terra Santa. A primeira sede do Priorado da Ordem de Malta em Roma (Casa dei Cavalieri di Rodi sui Fori Imperiale) era próxima a um mosteiro Basiliano, no Fórum de Augusto, hoje desaparecido.
[11] A igreja do Priorato foi sucessivamente consagrada à Virgem Maria. Segundo Wilton Ely (1993), a Ordem dos Cavaleiros de Malta se estabeleceu no monte Aventino em fins do século XIV, quando deixou o mosteiro de São Basílio para ocupar os remanescentes do mosteiro beneditino Santa Maria Aventina (construído num local onde teria sido encontrada uma imagem de Nossa Senhora). Em 1566, o Cardeal Bonelli conferiu ao conjunto a concessão de Villa di Malta. Durante o século XVI, sob o Priorado do Cardeal Benedetto Pamphili (1653-1730) foram realizadas reformas para a igreja e é, provavelmente, desse período o caminho dos louros no jardim que enquadra num efeito de perspectiva a Cúpula da Basílica de São Pedro. A partir de 1880, a igreja foi definitivamente denominada Santa Maria in Aventino.
[12] A forma com que Piranesi dispõe o altar esculpido e amplificado pelo efeito da iluminação remete a um de seus estudos para o altar de San Giovanni in Laterano, mostrando uma correspondência em sua abordagem projetual para ambos os casos cujo objetivo era revalorizar as arquiteturas preexistentes.
[13] Piranesi dispôs do simbolismo multifacetado da serpente. Para os antigos egípcios, esse animal portava o enigma para a superação da morte. Para os etruscos, a serpente era sinônimo de força positiva e de imortalidade. Essa ideia teria sido incorporada pelos romanos que a conectavam com a imagem da deusa Juno para quem foi elevado um templo no monte Aventino. Sendo assim, na antiguidade, o Aventino também tinha o nome de Mons serpentankus (Monte das Serpentes). A serpente também estava ligada ao deus da medicina Esculápio; e também há uma alusão à vocação hospitaleira e médica da Ordem de Malta.
[14] Piranesi tinha concebido um candelabro de mármore para ser instalado em seu túmulo. No entanto, essa peça foi removida e atualmente se encontra no Museu do Louvre (Paris). Em seu lugar foi colocada a escultura de Angelini em que Piranesi foi retratado vestido “à antiga”, tendo em mãos seus instrumentos de trabalho e o desenho preparatório do Templo de Netuno para sua publicação póstuma: as gravuras dos templos gregos de Paestum provenientes de sua última incursão arqueológica ao sul da Península Itálica.
[15] TAFURI, Manfredo. Il complesso di Santa Maria del Priorato sull’Aventino. In: Piranesi, incisioni, rami, legature, architetture. A cura di A. Bettagno. Vincenza: Neri Pozza Editore, 1978.
[16] Informações obtidas através de visitas da autora ao local em 27.09.2019 e 21.02.2020 acompanhadas pela historiadora da arte Dra. Valérie Guillot, da Sovrana Ordine di Malta (Roma). E a partir de anotações da apresentação sobre os trabalhos de restauração do Incontro dedicato al Restauro conservativo della Chiesa di Santa Maria del Priorato, que ocorreu na Accademia di San Luca (Roma) em 28 mar. 2019. Disponível em: <http://nam.accademiasanluca.eu/nam/index.do?text=&cat=&page=&year=&ida=2132&mult=1&lang=-1&ut=0>, acesso em 01 mar. 2020.
[17] WITTKOWER, Rudolf. Piranesi as architect. In: HOFER Karl L.; PARKS, Robert; WITTKOWER, Rudolf. Piranesi – essays. Northampton: Smith College Museum of Art, 1961, p.99.
[18] BEVILACQUA, Mario. Piranesi – Taccuini di Modena. Roma: Editoriale Artemide s.r.l., 2008, p. 282.
[19] KÖRTE, Werner. Giovanni Battista Piranesi als praktischer Architekt. Zeitschrift für Kunstgeschichte 2. Bielefeld: Fakultät für Geschichtswissenschaft, Philosophie und Theologie, 1933, p. 16-33.
[20] WITTKOWER, Rudolf. Piranesi’s “Parere sul’Architettura”. Journal of the Warburg Institute. Vol. 2, No. 2 (Oct., 1938), p. 147-158. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/750087?seq=1#page_scan_tab_contents>, acesso em 13 dez. 2019.
[21] WITTKOWER, Rudolf. La doctrina arquitectónica de Piranesi. In: WITTKOWER, Rudolf. Sobre la arquitectura en la edad del humanismo – ensayos y escritos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1979, p.232-263.
[22] WITTKOWER, Rudolf. Piranesi as architect. In: HOFER Karl L.; PARKS, Robert; WITTKOWER, Rudolf. Piranesi – essays. Northampton: Smith College Museum of Art, 1961.
[23] RYKWERT, Joseph. Los primeros modernos – los arquitectos del siglo XVIII. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1982.
[24] TAFURI, Manfredo. La esfera y el labirinto – vanguardias y arquitectura de Piranesi a los años setenta. Biblioteca de arquitectura. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1984.
[25] WILTON-ELY, John. Op. cit.
[26] PIRANESI, Giovanni Battista. Della magnificenza e d’architettura d’romani. Roma, 1761. In: PANZA, Pierluigi. Giovan Battista Piranesi. Scritti di Storia e Teoria. Milano: Sugarco Edizioni, 1993, p.21-204.
[27] MARIETTE, P. Jean. Lettre de M. Mariette aux Auteurs de la Gazette Littéraire de l’Europe. Gazette littéraire de l’Europe. Paris: l’Imprimerie de la Gazette de France, Tome Troisieme, 1764, p.232-247.
[28] PIRANESI, Giovanni Battista. Osservazioni sopra la lettre de M. Mariette aux auteurs de La Gazette littéraire de l’Europe; Parere su l’architettura e Della introduzione e del progresso delle belle arti in Europa ne’tempi antichi. Roma, 1765. Disponível em: <https://archive.org/details/gri_33125008809358>, acesso em 17 nov. 17.

Angela Rosch Rodrigues

Arquiteta e urbanista (Universidade Mackenzie, 1998). Mestre (2011), doutora (2017) e pós-doutoranda na Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: angelarr@usp.br


logo_rr_pp   v.4, n.8 (2020)   

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