Restauro do Relógio do Sol da cidade de Franca / SP

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I Leila de Oliveira I

Apresentação

Um monumento é sempre a representação de um fato ou cena importante para o lugar onde está edificado. O Relógio do Sol que pertence à cidade de Franca no interior do estado de São Paulo não foge à regra. Ele é a representação do marco zero da cidade, foi erguido em 1886 e construído em mármore de Carrara.

Foi idealizado pelo frei capuchino Germano d’Annecy, um religioso que permaneceu pouco tempo na cidade, mas o suficiente para declarar seu amor por esta através de sua criação única. Não se tem notícia de outro relógio solar no modelo e dimensão deste em nenhum lugar do mundo. Há um outro vertical na França, mas não é do mesmo modelo e tamanho.

O monumento é maciço, pesando cerca de 2 ton., com medidas de 3,50 m de altura por 0,90 m na sua base, no formato de pêndulo invertido (gnomom), tendo sido esculpido e torneado em 6 partes distintas e autoportantes, com incrustações em baixo relevo de letras e desenhos representando os meses do ano e os signos do zodíaco. Ao longo dos tempos foram acrescentadas placas de bronze que orientam como fazer a leitura das horas em cada estação do ano. Elas são fixadas na base onde o monumento está erguido.

Uma tempestade ocorrida na cidade, em 27 de dezembro de 2017, derrubou uma árvore de grande porte que, ao cair, o desmantelou em grandes partes e inúmeras lascas. Ficou assim por quase 2 anos até que se fizesse as devidas licitações: uma de projeto e outra de execução do restauro.

Figs. 2 e 3. Quedas 1 e 2 do Relógio (fonte: http://www.vidanovafranca.com.br/exibe_noticia.asp?noticia=1985).

Para o restauro em si, foram necessárias 260 horas de trabalho em equipe, formada por duas restauradoras, Leila de Oliveira – coordenadora de restauro e Laura Bassul e uma auxiliar, Júlia Russi, além da equipe do guincho hidráulico para o deslocamento e reposicionamento das peças, que estavam sob a guarda da Secretaria da Cultura da cidade, marmorista, profissional para a retirada das peças de metal para envio posterior à empresa que faria o restauro dos mostradores em cobre, entre outros.

 

O Restauro

De posse do projeto de restauro feito por empresa especializada, as restauradoras deram início à execução do trabalho.

Todo o canteiro de obras foi preparado antecipadamente para só depois receber as peças que se encontravam em local fechado e isolado. Foi fechado e isolado com tapumes metálicos e colocado sob vigilância durante as 24 horas do dia enquanto durou o restauro.  O monumento é erguido na praça central da cidade e deixar as peças danificadas expostas não era uma opção viável, por conta dos riscos envolvidos, como vandalismo por exemplo.

As peças foram envolvidas por material de proteção, removidas e transportadas por guincho hidráulico, individualmente e em segurança para o local definitivo, onde o canteiro de restauro estava instalado. Foram necessárias 4 horas e 8 pessoas para que o deslocamento ocorresse sem riscos e nem contratempos. Tudo devidamente documentado com fotos e vídeos.

Figs. 4 e 5. Proteção e deslocamento (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

A documentação fotográfica detalhada dos danos e o planejamento quanto a sequência dos procedimentos foi feita antes de qualquer intervenção. A limpeza mecânica foi realizada com as trinchas de cerdas macias e tecidos de malha 100% de algodão. Devido à queda, as peças estavam com grande quantidade de terra e poeira além das sujidades de poluição e lixiviação dos anos passados. Com a ajuda de uma espátula foram retirados restos de massa de fixação entre as peças.

Figs. 6 e 7. Limpeza mecânica com trincha e remoção mecânica de massa de fixação (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

Foram feitos os testes de limpeza nas hastes metálicas antes de serem removidas e depois de limpas e os danos mapeados; amassamentos, trincas e soldas soltas; foram enviadas à empresa especializada em restauro de metais para que fossem recuperadas.

Figs. 8 e 9. Teste de limpeza química no metal e retirada dos fustes de metal (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

Os testes de produtos químicos para limpeza foram feitos seguindo a orientação da empresa responsável pelo projeto e com os resultados satisfatórios, se deu início a limpeza mais específica e superficial das peças. Foi tomado o cuidado para que não fossem retiradas as marcas de oxidação, corrosão e escurecimento que o tempo imprimiu. O objetivo não era deixar o mármore reluzindo como novo e sim limpo e protegido novamente.

Foram utilizados solventes detergentes, sais (EDTA) e hidróxidos em variadas diluições aquosas e em gel até que se atingisse o resultado pretendido; no local onde as placas (fustes) de metal (cobre), que compõem o conjunto de mostradores, são fixadas ocorreram uma oxidação natural (azinhavre) com lixiviação esverdeada que foi atenuada com peróxido de hidrogênio diluído em água deionizada em baixa concentração e em compressas.

Figs. 10 e 11. Antes e depois da limpeza (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

A base que permaneceu no local e apresentava sujidades causadas pela poluição e muita concentração de mofo foi limpa utilizando jato de água com pressão controlada. Neste procedimento não se utilizou nenhum produto químico. Apenas no final do restauro foi utilizado detergente neutro em solução aquosa para a retirada de alguma poeira presente.

Figs. 12 e 13. Base antes e depois da limpeza (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

Feita a primeira limpeza, a restauradora chefe optou por remontar o monumento para depois prosseguir com os procedimentos. Para tal, foi utilizado novamente o guincho hidráulico para elevação e posicionamento mais preciso. Era de extrema importância a observação dos encaixes e marcas, para que o relógio continuasse a fazer a leitura das horas durante a movimentação solar. As peças foram fixadas com epóxi bi-componente de uso profissional respeitando o intervalo de 24 horas entre a soldagem das peças.

Figs. 14 e 15. Fixação com massa epóxi e remontagem do monumento (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

As incrustações em baixo relevo existentes tanto no cubo quanto na pilastra eram demarcadas com massa cimentícia e foram retiradas e refeitas, pois estavam em péssimas condições com desprendimentos e craquelamentos. Algumas inscrições não foram possíveis de recuperar, pois sofreram desgastes devido a ação do tempo e a exposição a intempéries. Não daria para recuperar sem criar um falso histórico.

Figs. 16 e 17. Inscrições demarcadas novamente e mantidas as perdas dar inscrições para não cometer falso histórico (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

No resgate das peças logo após o incidente da queda, foi tomado o cuidado de se recolher todos os pedaços e lascas que se desprenderam no monumento e estes foram fixados nos locais pertencentes com massa feita com pó de mármore, adesivo primal e tonalizada com pigmentos naturais.

Figs. 18 e 19. Parte faltante e fragmento realocado (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

As hastes (fustes) de metal foram fixadas com massa epóxi bi-componente e depois niveladas com a massa de pó de mármore e primal.

Figs. 20. Hastes recolocadas (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

As placas de instruções em bronze foram limpas no local com compressas de EDTA para a retirada da oxidação, pasta de carbonato de cálcio e hidróxido de amônia e protegidas com verniz Paraloid.

Figs. 21 e 22. Placa de instrução antes e depois (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

Uma última limpeza foi realizada com detergente enzimático diluído em água deionizada e depois de seco, foi aplicado uma generosa camada de verniz de proteção que deverá ser realizada a cada dois anos.

 

Figs. 23 e 24. Aplicação de verniz de proteção e Restauro finalizado (fonte: acervo da equipe de restauro, out./nov. 2019).

Devido a sua importância histórica e raridade de projeto do artista, o monumento é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico Arqueológico do Estado de São Paulo – Condephaat, e pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Artístico do Município de Franca – Condephat. O processo de restauro está em vias de tombamento pelo órgão municipal.


Leila de Oliveira

Conservadora restauradora em bens culturais, especialista em restauro de metais, pétreos, pintura de cavalete e imagens policromadas. Graduada em Artes Visuais pela UNIFRAN, pós-graduanda em Conservação e Restauração de escultura policromada devocional na Universidade Santa Úrsula.


 logo_rr_pp   v.4, n.8 (2020)   

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