Patrimônio cultural como bem da comunidade: valorizando e usando rotas culturais para a saúde e o bem-estar

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I Aline Faiwichow Estefam I

Este artigo propõe formas de preservar e valorizar o patrimônio cultural por meio do esporte e da atividade física. A pesquisa investiga dois estudos de caso espanhóis que utilizaram rotas culturais somadas às atividades esportivas para viabilizar o turismo, valoração do patrimônio cultural e qualidade de vida das comunidades. Após uma breve análise da situação em São Paulo, o artigo delineia algumas conclusões e recomendações para viabilizar a interseccionalidade e interdisciplinaridade no tratamento e valorização do patrimônio cultural.

Desde o início da década de 2000, as rotas culturais vêm ganhando importância na política de preservação em todo o mundo. Rotas culturais são caminhos físicos que reúnem elementos históricos e culturais em seu percurso. Consistem em um instrumento multidisciplinar que permite uma visualização vinculada ao espaço geográfico, misturando elementos tangíveis e intangíveis, móveis e imóveis, culturais e construídos. Além disso, as rotas culturais podem funcionar como uma intersecção entre saúde, qualidade de vida e patrimônio cultural, em um modelo simbiótico em que um alimenta o outro.

Este artigo tem como objetivo contribuir com a literatura sobre patrimônio cultural por meio do estudo de rotas culturais que têm conseguido melhorar a qualidade de vida das comunidades. Essas rotas extrapolaram os limites do patrimônio e se estabeleceram na intersecção entre memória e bem-estar; entre o passado, presente e futuro. A pesquisa se concentrou em dois estudos de caso bem-sucedidos na Espanha, que usaram o esporte como elemento central. Pensando neles, foram elaboradas algumas conclusões e recomendações para uma possível prática e atualização da política no município de São Paulo.

Os roteiros culturais estão aos poucos se infiltrando nas políticas de patrimônio da cidade de São Paulo. Recentemente, em março de 2018, a primeira rota cultural foi reconhecida como um símbolo da memória de São Paulo [1]. Ao mesmo tempo, acontecem eventos esportivos na cidade que utilizam os bens culturais e históricos como elementos de atração. No entanto, ainda falta diálogo entre esses dois elementos e não há interseccionalidade nas políticas e práticas que resultem na criação de rotas e patrimônios culturais com mais funções do que a salvaguarda da memória.

Rotas Culturais

Os percursos culturais são cada vez mais utilizados como modelo para valorizar a paisagem e o patrimônio cultural. O instrumento é utilizado na Europa desde 1987, através da Certificação Rotas Culturais, do Conselho da Europa, programa que visa valorizar e preservar o patrimônio intercultural e interligado em toda a Europa [2], e foi reconhecido internacionalmente pela UNESCO por meio da Carta de Rotas Culturais, elaborada pelo Comitê Internacional de Rotas Culturais (CIIC), em 2008. Nesse novo modelo, as rotas são descritas como qualquer caminho físico – terrestre, aquático ou outro meio de comunicação – com um significado cultural ou histórico, que serviu a um propósito específico e determinado e proporcionou intercâmbio cultural [3]. Embora estejam vinculadas a elementos tangíveis, uma vez que devem ser sustentados por recursos construídos, a centralidade cultural e intangível dessas rotas demonstra que o patrimônio foi visto de forma mais ampla, não tradicional, plural e multidisciplinar.

Existem várias maneiras de classificar e compreender essas rotas. O CIIC propôs sete recortes temáticos: localização geográfica; âmbito cultural; função; duração histórica no tempo; influência das trocas socioeconômicas, políticas e culturais; configuração estrutural; e ambiente natural [3]. Além disso, vários estudiosos têm explorado o tópico. Alguns deles consideraram a função da rota como o principal método de separação, classificando-os como infraestruturas históricas, rurais, de canais e de transporte [4], mas acabaram por correlacioná-los de acordo com um período histórico e localização geográfica [5].

Outras classificações se afastam das funções físicas e se concentram na importância cultural. Hernández Ramirez, por exemplo, classificou-as de acordo com o atributo cultural do lugar, que pode ser histórico, imaginário ou genérico [6]. Castillo Luis, por sua vez, apresentou uma visão crítica das rotas culturais e argumentou que, várias vezes, elas não têm relação histórica, mas apenas turística e econômica. Em seguida, ele as classificou como roteiros culturais – relacionados ao patrimônio histórico e cultural; tutelar – relacionado a ideologias e identidade nacional; e rotas turísticas [7].

Para este artigo, a categorização se mescla com as definições acima e estabelece um novo enfoque temático para as rotas culturais: aquele relacionado à sua função na comunidade. Nesses termos, classifica as rotas culturais como:

  1. Roteiros culturais com fins históricos;
  2. Roteiros culturais com fins turísticos e econômicos (com ou sem valor histórico);
  3. Rotas culturais com funções sociais e comunitárias (com ou sem valor histórico).

.

Serão investigadas as rotas que se enquadram no item três – rotas culturais com funções sociais e comunitárias. Especificamente, aquelas que proporcionam saúde e qualidade de vida à comunidade.

Estudos de caso

Esta seção investiga os percursos culturais que desempenham funções sociais e comunitárias, além da valorização histórica e cultural. Os estudos de caso objetivaram avaliar as diretrizes e práticas necessárias para viabilizar esses tipos de uso.

Rotas de patrimônio saudável

As “Rotas do Patrimônio Saudável” fazem parte do Consórcio da Cidade de Toledo, na Espanha. Trata-se de um modelo de gestão da cidade que começou a funcionar em outubro de 2000 e teve como objetivo preservar e restaurar o patrimônio monumental e arqueológico de Toledo, reabilitar edifícios e casas do centro histórico, recuperar paisagismo e difundir valores simbólicos da cidade. Também buscou o desenvolvimento e valorização das atividades culturais e turísticas [8].

O programa de rotas foi desenhado pela Universidade de Castilla La Mancha, em conjunto com o grupo de pesquisa PAFS (Promoção de Atividades Físicas para a Saúde) da Universidade de Toledo, principalmente para o combate à obesidade infantil e para valorizar o patrimônio cultural [9]. Foram propostos dois percursos dentro do Centro Histórico que passam por vários pontos de interesse cultural [10]. As rotas abrangem pontos de maior interesse turístico e aqueles ignorados pelas rotas turísticas tradicionais. O objetivo é justamente incluir, valorizar e reconhecer grande parte dos bens de interesse cultural, incentivando também o esporte, a saúde e a qualidade de vida. Folhetos informativos estão disponíveis em pontos turísticos e também foram distribuídos às organizações locais. Cada rota também tem sinalização histórica com informações como pontos de parada próximos, histórico do local, distâncias, calorias e direções [11].

Não há registros do número de participantes nas rotas. No entanto, o uso das rotas inspirou estudos sobre estratégias para o desenvolvimento da educação física infantil [12], bem como a elaboração de um relatório de diretrizes de rotas saudáveis, realizado pelo governo espanhol. Além disso, existem registros de viagens escolares e visitas de pessoas com deficiência ao percurso [9].

Canal de Castela

O Canal de Castela é um caminho de 205 quilômetros conectando três regiões da Espanha: Burgos, Valladolid e Palência. Foi construído em 1753 para transporte, navegação e fornecimento de energia. Com a abertura de uma ferrovia, em 1860, o caminho foi abandonado, tornou-se obsoleto e se deteriorou [13]. Em 1991, a rota foi declarada patrimônio de interesse cultural para a região de Castela e Leão devido ao seu significado histórico e potencial turístico [14].

Em 2001, a região aprovou um plano regional para a área, procedimento comum para patrimônios culturais do país. O plano propunha extensos procedimentos para revitalizar a economia da região e viabilizar o uso da via para recreação e lazer. Uma dessas medidas relacionou-se à acessibilidade, incluindo os ciclistas, além da criação de pontos de parada cobertos, e mobiliário urbano. O plano também incentivou indiretamente a implementação de hotéis e locais de acomodação [15].

Por conta das melhorias na área, em setembro de 2019, um grupo não governamental propôs uma maratona de bicicletas, batizada de Prêmio Grande Canal de Castilla (GPCC) e um encontro nacional de bicicletas clássicas, que passou a ocorrer anualmente em 2011.

Os eventos tinham como objetivo promover o turismo e recuperar a importância histórica e turística do local [16] e ao mesmo tempo suprir a inexistência de uma competição espanhola de ciclismo profissional [17]. Para promover o turismo e dar visibilidade ao patrimônio cultural, a organização firmou parcerias com os atores locais e ofereceu descontos para visitas a patrimônios históricos e naturais. Além disso, várias rotas foram projetadas para passar pelo maior número de cidades possível e maximizar as visitas dos participantes aos locais de interesse patrimonial [17]. O evento conta atualmente com a presença de centenas de pessoas e é reconhecido como um importante evento ciclístico mundial. Portanto, é mais um exemplo de junção de atividades esportivas com valorização do patrimônio cultural.

Propostas para São Paulo

As rotas culturais são novos instrumentos dentro do espectro da legislação patrimonial da cidade de São Paulo. Entre as mais de 600 resoluções de tombamento em nível municipal, apenas uma legisla sobre o tema. No entanto, mesmo que não sejam legalmente reconhecidos, existem vários caminhos com importantes valores culturais e históricos.

Paralelamente, alguns eventos já congregam patrimônio cultural e esportivo. A “Corrida do Centro Histórico”, uma das principais corridas de rua da cidade, é um deles. É um evento anual que acontece desde 1995, no qual os participantes percorrem edifícios de valor histórico no centro da cidade. Nos anos anteriores, atraiu mais de 6 mil pessoas [18]. A corrida não é feita em uma rota cultural, mas poderia ser, e nesse caso, traria outra camada para a atividade – um valor histórico e cultural profundo.

Este e outros eventos semelhantes têm um enorme potencial para ajudar a dar visibilidade e valorizar edifícios e percursos históricos, como o que aconteceu nos exemplos espanhóis mencionados anteriormente. No entanto, não existem políticas em vigor para reunir os patrimônios culturais e esses eventos e atividades.

Os estudos de caso fornecem uma perspectiva diferente e iluminam novas maneiras de ver e valorizar o patrimônio cultural. A legislação de São Paulo tem avançado na forma como lida com o tema e cada vez mais agrega interdisciplinaridade e criatividade em suas práticas [19]. No entanto, uma maior integração com outros campos e atividades pode ser vantajosa para as comunidades e para o patrimônio. É particularmente vantajoso integrar o patrimônio cultural a outros usos que possam promover a saúde e o bem-estar da comunidade, deixando de lado o papel do patrimônio cultural como um reservatório de memórias, para se tornar um bem da comunidade e da vizinhança.

Os casos apresentados anteriormente fornecem exemplos de como integrar roteiros esportivos e culturais por meio de métodos simples, como sinalização, marketing e parcerias. Essas integrações, entretanto, não precisam se limitar aos esportes, pois o patrimônio cultural pode ser integrado a diversos usos – artes e cultura, recreação, educação e muitos outros. No entanto, sua implementação requer uma abordagem multidisciplinar e não tradicional do patrimônio cultural, que é algo que deve ser primordial para futuras políticas e práticas patrimoniais.

Fig.1.Ciudad Real, em  Castilla La Mancha, parte do itinerário cultural Caminho do Quixote (fonte: acervo da autora).

Fig.2. Vista da Cidade de Toledo, Espanha, onde há as Rotas Saudáveis de Toledo (fonte: acervo da autora).


Notas

[1] SÃO PAULO (Cidade). Resolução 25, CONPRESP, de 5 de março de 2018.

[2] DENU. Penelope. Aims and philosophy of the Council of Europe Cultural Routes. In: COUNCIL OF EUROPE. Cultural Routes in Management: from theory to practice. França: Editora Council of Europe, 2015, p.9-13.

[3] ICOMOS, CIIC. Carta de Rotas Culturais, 16e AG/16th GA. Québec, 2008.

[4] FERNANDEZ, Rita; CORONADO, José María; LAZARO, Javier Rodríguez. La recuperación del patrimonio de las carreteras históricas. Revista de obras públicas. Espanha, n. 51, 2013.

[5] Por exemplo, Fernandez et al. classificam os caminhos históricos como relacionados às cidades e os caminhos rurais como pré-industriais e geralmente dentro de um contexto agrícola. Além disso, os canais estão relacionados ao transporte hidroviário, na maioria das vezes localizados fora dos centros urbanos, enquanto as linhas de transporte referem-se às ferrovias ou rodovias localizadas nos centros urbanos.

[6] HERNANDEZ RAMIREZ, Javier.  Los caminos del patrimonio. Rutas turísticas e itinerarios culturales PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural de la Universidad de La Laguna El Sauzal (Tenerife). Espanha, l. 9, n. 2, 2011, p. 225-236.

[7] CASTILLO RUIZ, José. Los itinerarios culturales. Características y tipos. Principales experiencias nacionales e internacionales. Cuadernos de arte de la Universidad de Granada. Espanha, n.37, p. 319.335, 2006.

[8] TOLEDO (Estado). Disposição 17679 do Diário da República do Estado no. 309, 2018.

[9] ESCUELA DE SALUD Y CUIDADO DE CASTILLA LA MANCHA. Rutas Patrimoniales Saludables – Toledo. Disponível em: <https://escueladesalud.castillalamancha.es/experiencias/rutas-patrimoniales-saludables-toledo> Acesso em: 03.01.2021.

[10] CONSÓRCIO DE TOLEDO. Rutas Patrimoniales Saludables. Disponível em: https://consorciotoledo.com/rutas-saludables/  Acesso em: 29.01.2022.

[11] MINISTÉRIO DA SAÚDE, CONSUMO E BEM-ESTAR SOCIAL DO GOVERNO DA ESPANHA. Guía para el diseño de un Plan de Ruta(s) Saludable(s), 2018.

[12] MARTINE, Jesus Martinez; VICEDO, Juan Carlos Pastor. Educacion física en educacion infantil a traves de comic. “Salvemos el mundo: superpoderes”. In: LUQUE, Gema Torres; GARCIA, Raquel Hernandez. Etapa infantil y motricidade: estratégias para su desarrollo em educacion física. Espanha: Editorial Wanceulen, 2019, p.73-96.

[13] WAGNER, Francisco Sosa. El canal de castilla: alba y aflicción de una obra publica. Espanha, Revista de Administração Pública, n. 153, 2000, p.443-469.

[14] CASTILLA Y LEON (Estado). Decreto 154/1991, 13 de junho de 1991.

[15] JUNTA DE CASTILLA Y LEON. Plan Regional de Extensión Territorial del Canal de Castilla, 2001.

[16] GRAN PREMIO CANAL DE CASTILLA. Guía útil, 2009. Disponível em: https://unavueltamejor.files.wordpress.com/2009/09/guia-util-gp-canal-de-castilla.pdf  Acesso em: 03.01.2021.

[17] GRAN PREMIO CANAL DE CASTILLA. Proyecto gran premio canal de Castilla 2009. Disponível em: https://unavueltamejor.files.wordpress.com/2009/09/gp-canal-de-castilla.pdf  Acesso em: 03.01.2021.

[18] ROSA, Jane Petry da. Corridas de Rua: aprendizagens no tempo. Dissertação de Mestrado. Santa Catarina: UFSC, 2013.

[19] Em 2015 a cidade implementou a Jornada do Patrimônio, evento educativo que promove visitas e eventos sobre o patrimônio cultural; em 2016 incluiu o patrimônio imaterial em seu portfólio e em 2019 passou a implantar selos em áreas e edifícios com importância para a memória da cidade.


Aline Faiwichow Estefam

Especialista em comunidades e planejadora urbana. Atuou como Coordenadora de Identificação e Salvaguarda do Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Atualmente é professora visitante de Urbanismo do INSPER São Paulo, palestrante nas universidades Columbia e Hunter College (Nova Iorque), e atua como consultora em participação publica para projetos urbanos, em Nova Iorque. E-mail: a.estefam@columbia.edu


logo_rr_pp v.6, n.11 (2022)

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