A preservação nos museus e o distanciamento do público

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I Mário Anacleto de Sousa Júnior I

A preservação, como a entendemos etimologicamente, pode significar ações de conservar, manter, proteger, poupar, defender, guardar ou resguardar algum bem tangível ou intangível, considerando o valor de sua materialidade e do seu significado para a cultura humana. Também pode ser entendida como uma forma de assegurar seu valor e sua permanência material no âmbito jurídico como um bem público ou privado. Nos termos aqui tratados, a preservação está dirigida à eliminação dos danos ocasionados por fatores ambientais ou fortuitos que flutuam sobre o meio e que circundam os bens culturais, sendo constituída por métodos e meios indiretos aplicáveis aos objetos e relacionados diretamente ao ambiente, controlando as condições microclimáticas com o objetivo de erradicar os agentes nocivos ou os elementos que, temporal ou permanentemente, podem ocasionar a degradação dos mesmos. A preservação também é frequentemente dirigida à segurança dos bens em situações de roubo, transporte e incêndio principalmente. 

Neste sentido, a conservação e a restauração dos objetos constantes nos acervos museológicos se convertem em um problema, tanto para os profissionais que os conservam e os preservam, assim como para as instituições que os colecionam, os exibem e os armazenam.

O tema indica a necessidade de propor novos caminhos viáveis para a preservação do legado cultural constituído pela grande e variada materialidade dos objetos que o compõe, na medida em que as formas tradicionais e usuais de atuação apresentam um esgotamento de possibilidades gerado principalmente pela grande variedade de materiais cujas naturezas são, na maioria das vezes, inconciliáveis no que se refere às respectivas permanência e estabilidade.

É notória a variedade de casos que se aproximam do conceito da ruína e que são expostos e publicitados no âmbito de congressos, seminários, jornadas ou eventos específicos organizados por instituições de pesquisas e museus, fóruns onde os conservadores-restauradores podem explanar suas respectivas atuações. Evidenciaremos as limitações advindas dos objetos que se encaixam no conceito de ruína e o estresse a que estiveram expostos ao tomar decisões que, em muitos casos, houve a necessidade de definir pontos chave de atuação em detrimento de outros. Tais decisões abarcam tanto os aspectos técnicos e institucionais como também os aspectos pessoais e, por que não dizer éticos, onde o contexto e a situação assim o exigem.

A necessidade imperativa de administrar conflitos talvez seja o aspecto mais importante e desgastante nestes casos, pois o conservador-restaurador será chamado para dialogar com as instituições envolvidas para expor, explicar e argumentar sobre as impossibilidades técnico-materiais advindas do fato gerador da deterioração e suas implicações [1]. Deteriorações que geralmente são produtos de causas externas à sua atuação e provavelmente ocasionadas por antigas formas de acondicionamentos, manuseios, armazenamentos e de transportes inadequados aos quais os objetos estiveram expostos no transcurso de um tempo compreendido entre o momento em que foram criados, no caso dos objetos artísticos; ou extraídos dos seus respectivos locais de origem ou da natureza, no caso dos objetos arqueológicos, paleontológicos ou etnográficos.

Os materiais utilizados pelos artistas e seus contextos temporais e climáticos, assim como as condições efetivas das escavações arqueológicas ou paleontológicas, da coleta de espécimes vegetais ou das capturas zoológicas e o momento em que esses objetos foram devidamente tratados, documentados, catalogados e inventariados e efetivamente anexados às coleções irão determinar seus respectivos estados de conservação e suas possíveis causas de deterioração.

Existe um hiato cada vez maior entre os objetos das coleções permanentes, porque a estabilidade é crucial e, para os objetos menos convencionais, realizados para exposições temporárias. A aquisição em si mesma implica capturar um momento histórico na vida de um artista ou um movimento, onde os museus devem ver os câmbios na ordem ou o próprio material artístico como uma ameaça para a própria obra. Mas, reduzindo o objeto da sua história, se corre o risco, em particular, de rejeitar ou ignorar aspectos cujo status artístico depende de seu estado ativo, e em geral, a “coisificar” ou converter em relíquias os objetos artísticos contemporâneos. 

No que se refere à preservação e conservação dos acervos arqueológicos, salientamos as recomendações constantes na Portaria número 196 de 18 de maio de 2016, anexo I (Recomendações para a conservação de bens arqueológicos móveis), parágrafo VII, item 13, do IPHAN e, mais especificamente, quanto aos invólucros e embalagens que deverão ser constituídos de material inerte e adequado à especificidade dos materiais constitutivos.

As situações atípicas podem ocorrem principalmente quando estes objetos permanecem armazenados em Reservas Técnicas por longo espaço de tempo sem as necessárias revisões periódicas e monitoramento climático determinados pelo contingenciamento ou redução da equipe técnica em consequência da contenção das exibições ou fechamento dos espaços expositivos devido ao afastamento do público pelo advento da Pandemia.

Como instituições interdisciplinares, os museus atuam em três campos distintos e complementares, imprescindíveis ao seu adequado funcionamento: a preservação, a investigação e a comunicação. A preservação prolonga a vida útil dos bens culturais, assegurando-lhes a integridade física ao longo do tempo. Não constitui um fim em si mesmo, mas um meio, cujo objetivo maior é preservar a possibilidade de acesso futuro às informações das quais os objetos são portadores. Para que o acesso a essas informações se efetive é necessário que ocorra um processo de comunicação, no qual se estabelece uma relação entre o homem, sujeito que conhece, e o bem cultural, testemunho de uma dada realidade. Ao disponibilizar seu acervo para o público, o museu constitui um dos espaços, entre outros, onde se dá essa relação pessoa/bens culturais. A investigação, por sua vez, tem o papel de ampliar as possibilidades de comunicação dos bens culturais; como atividade voltada para a produção de conhecimento, ela assegura uma visão crítica sobre determinados contextos e realidades dos quais o objeto é testemunho. Nesse trinômio, são a pesquisa e a comunicação que conferem sentido e atribuem uso social aos objetos, justificando, inclusive, a sua preservação.

Historicamente, os museus, em especial os etnográficos, surgiram como centros de convergência de saberes científicos, comprometidos com a produção de conhecimento. Hoje, mesmo sabendo-se que este papel não cabe primordialmente aos museus, não se pode desconhecer a sua função investigativa e a gama de possibilidades de estudos que seus acervos oferecem, em diferentes áreas. Não basta aos museus responsabilizar-se exclusivamente pela guarda, conservação e exibição de suas coleções, sob pena de transformarem-se em meros depósitos e mostruários de objetos. É fundamental a implementação de um programa de pesquisa institucional permanente, capaz de restituir-lhes o papel de espaço destinado à construção e disseminação do conhecimento na sociedade. Empreitada que pode assentar tais instituições em bases mais sólidas, capazes de fazer face ao processo, em curso em todo o mundo, de espetacularização do patrimônio cultural e de mistificação do objeto musealizado, que tem reduzido os museus a lugares de turismo e lazer.

Independentemente de sua tipologia, os museus são construções histórico-socioculturais, “espaços propícios à pesquisa histórica, o que justifica a necessidade e/ou o predomínio de historiadores nessas instituições, aptos em inserir os objetos em seu contexto de produção e significação social” [2]. A pesquisa que se realiza nos museus obedece aos mesmos critérios e procedimentos metodológicos da pesquisa histórica acadêmica. O conhecimento resulta de interrogações, coleta e análise de fontes documentais, de revisões de teses consagradas, aliando o exercício da interpretação à formulação de novos conceitos. Seu desenvolvimento implica quase sempre contribuições de outras disciplinas, a exemplo da antropologia, arqueologia, etnologia, sociologia, história da arte, em um trabalho essencialmente realizado por equipes interdisciplinares.

Apesar de seguir a mesma metodologia acadêmica, a existência do acervo constitui uma particularidade da pesquisa nos museus [3]. A excelência da função documental dos museus, os objetos figuram como uma espécie de eixo permanente e ponto de partida das pesquisas, conferindo a essas instituições, como em nenhuma outra, condições especiais para o desenvolvimento de estudos centrados em artefatos. Outra especificidade refere-se ao fato de que os museus, em razão mesmo de suas atribuições, promovem, de maneira imediata e direta, o uso social dos resultados da pesquisa, abreviando a distância entre a sociedade e o conhecimento. Através de exposições, ações culturais, projetos educativos, publicações, banco de dados, o público tem acesso não somente ao conhecimento, mas às fontes utilizadas para a sua produção, no caso o acervo, o que assegura às instituições museológicas o exercício simultâneo de seu papel científico, cultural e educativo.

Tendo o acervo como centro de suas preocupações, é possível identificar dois níveis do trabalho investigativo nos museus: a documentação museológica e a pesquisa propriamente dita. Espécie de pesquisa instrumental, a documentação museológica procede à identificação, classificação, organização e ao levantamento dos dados históricos dos objetos, constituindo-se a base de informações sobre o acervo do museu. Usualmente é a primeira abordagem que se faz do acervo, com o objetivo de decodificar as informações contidas nos objetos e criar um instrumento de pesquisa, na forma de um inventário, catálogo ou registro. Constitui um meio de acesso informacional aos bens culturais, que subsidia a gestão de acervos e o desenvolvimento de diferentes atividades do museu, nas áreas de pesquisa, educação e difusão. 

A pesquisa propriamente dita envolve investigações e estudos que resultam em novas abordagens, conceitos e interpretações dos conteúdos histórico-culturais correlatos ao acervo. Diferente da documentação museológica, a pesquisa avança para além dos objetos em si, com vistas a inseri-los no mundo que os cerca, reconhecendo sua historicidade, suas relações com contextos sociais específicos, possibilitando “deslocar o centro das preocupações do objeto para o sujeito social, o que não significa minimizar a importância do acervo – razão de ser do museu – ao contrário, este deve ser o núcleo irradiador do conhecimento” [4].

A pandemia, o afastamento do público e suas consequências para as instituições museológicas

É de suma importância abordar que, na maioria das vezes, as decisões escapam da esfera das ações puramente técnicas por questões burocráticas ou de autoridades às quais as instituições museológicas se encontram envolvidas, no que se refere ao acesso às verbas para manutenção, reformulações e revisões estruturais dos espaços de guarda e exibições. No caso dos museus subordinados às universidades, os recursos são direcionados prioritariamente para projetos de pesquisas em detrimento do investimento na conservação dos acervos, readequação e a revisão estrutural dos espaços destinados à guarda dos mesmos, as Reservas Técnicas e Salas de Exposições. Neste sentido, a possibilidade de sinistros ocorrerem é inevitável e, na maioria dos casos, estão geralmente associados às instalações elétricas sobrecarregadas e não revisadas no que se refere à manutenção dos equipamentos a elas conectados.

Outro fator a ser considerado está associado ao momento atual de uma Pandemia em curso quando as instituições não estão abertas ao público, as exposições temporárias não são apresentadas e os acervos permanentes estão recolhidos em Reservas Técnicas como uma forma de minimizar as ações de conservação e preservação, porém, sabemos que mesmo armazenados os acervos necessitam de cuidados no que se refere às higienizações e revisões periódicas pelos profissionais conservadores-restauradores, bem como no acompanhamento e manutenção dos equipamentos utilizados para o monitoramento climático desses espaços de guarda.

Com o advento da Pandemia e consequentemente o afastamento do público se torna justificado que as instituições recorram a medidas de contenção de pessoal por motivos vários e, dentre eles, a necessidade de proteção frente à possibilidade de contaminação destes mesmos profissionais e, em último caso, pela redução de custos operacionais refletindo diretamente na redução das equipes que lidam diretamente com a conservação e preservação dos seus acervos.

Diante desta situação acima descrita e das condições às quais vários museus públicos se encontram no momento, no que se refere ao repasse de verbas para a manutenção, os casos de sinistros são facilitados e até previsíveis como os ocorridos em 02 de setembro de 2018, no Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro (Fig.1) e, em 15 de junho de 2020, no Museu de História Natural e Jardim Botânico da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte.

Fig.1. Museu Nacional do Rio de Janeiro antes do incêndio, 29 de Agosto de 2018, fachada principal (fonte: foto gentilmente cedida por André Tavares).

Foram sinistros previstos de ocorrer em duas instituições públicas que abrigam acervos de grande importância para pesquisas atuais e futuras e que ocasionaram perdas incalculáveis para o patrimônio nacional, pois acervos arqueológicos, etnográficos, zoológicos, botânicos, históricos e científicos foram parcial ou totalmente consumidos pelo fogo, configurando a ingerência dos poderes públicos no âmbito federal, estadual e municipal respectivamente.

Após verificados os sinistros são evidenciados as duas situações mencionadas acima, sendo a primeira definida pela falta efetiva de ações de preservação advinda da escassez de recursos financeiros e, num segundo momento, a conjugação desta com o advento da Pandemia, quando as instituições museológicas adquirem invisibilidade pelo afastamento do público.

As questões advindas da possibilidade de aproximação ao estado de ruína e perda da informação estão associadas às causas de deterioração nos acervos pertencentes aos museus de ciências e história natural, condição possível e verificável dado a complexidade que envolve esses acervos, considerando o desconhecimento dos seus respectivos históricos que os antecederam no momento da entrada na instituição e as condições de deteriorações intrínsecas e extrínsecas aos objetos e espécimes que os constituem.

Inicialmente estas condições estão relacionadas com os materiais constitutivos desses objetos e espécimes que, em sua grande totalidade são de origem orgânica e, portanto, passíveis de deterioração natural ou deteriorações determinadas pelos métodos ou situações configuradas quando da retirada dos seus respectivos locais de origem, seja por escavações ou prospecções subaquáticas, no caso de objetos arqueológicos; seja por apropriações ou remoções do contexto e da funcionalidade, no caso de objetos etnográficos ou capturas de espécimes zoológicas da natureza sem a devida preocupação com a conservação nesse primeiro momento. Outro ponto a salientar se refere aos materiais utilizados pelo pesquisador quando esse procedimento é efetuado. As formas de embalagens e os materiais utilizados devem ser considerados e analisados antecipadamente, assim como o tipo de transporte e o tempo de deslocamento, considerando que materiais adequados para estes fins geralmente não são adequados para o acondicionamento e guarda em reservas técnicas. As condições climáticas adversas não previstas e não controladas quando da coleta dos objetos, associadas às embalagens não adequadas no que se refere à sua constituição físico-química podem ser extremamente danosos e, na maioria dos casos, promover deteriorações incontroláveis e irreversíveis com a aproximação ao estado de ruína.

A quantidade dos objetos ou espécimes coletados e a não seletividade constituem também fator de deterioração, especialmente quando não se considera o espaço físico efetivo e disponível para a guarda desses materiais em reservas técnicas adequadas e que possam proporcionar a devida segurança e os meios adequados de conservação e preservação. 

Uma conclusão mais atualizada sobre o tema da morte dos objetos artísticos e a função dos museus é indicada por Heumann Gurian, “os museus do futuro se basearão mais nas memórias culturais e não nas provas físicas, então reconciliar-se com objetos mortos é fortalecer sua ressonância nas coleções e, mais amplamente, na própria cultura” [5].


Notas

[1] PETERS, Renata Franco. The parallel paths of conservation of contemporary art and indigenous collections. In: Studies in Conservation, 2, 61, 183, 2016.
[2] GLEZER, Raquel. Comentário X. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, 3, 1995, p.99.
[3] MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra. Do teatro da memória ao laboratório de história: a exposição museológica e o conhecimento histórico. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, 2, 1994, p.118-121.
[4] OLIVEIRA, Maria Alice Milliet. Museu: memória e acervo In: Comunicações e Artes, São Paulo, 22, 80, 1989.
[5] GURIAN, Elaine Heumann. What is the object of this exercise? A meandering exploration of the many meanings of objects in museums. In: Humanities Research, 8, 1, 25-36, 2001.


Mário Anacleto de Sousa Júnior 

Conservador-Restaurador formado pela UFMG com graduação em Desenho (1992), especialização em Conservação e Restauração de Bens Culturais (1994), mestrado em Artes Visuais (1999) e doutorado em Ciência e Restauração do Patrimônio Histórico-Artístico pela Universitat Politècnica de València (2015). Atualmente é professor e conservador-restaurador na Universidade Federal de Minas Gerais – Museu de História Natural e Jardim Botânico. Tem experiência na área de Artes com ênfase em preservação, atuando principalmente nos seguintes temas: conservação de objetos arqueológicos e etnográficos, obras de arte moderna e contemporânea e projetos de gerenciamento de riscos nas citadas áreas.


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