O estudo iconográfico dos Putti na restauração da Igreja Matriz da Freguesia do Ó

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| Silvana Borges |

Esta pesquisa aborda o estudo iconográfico realizado durante o processo de conservação e restauro das pinturas murais da Igreja Matriz da Freguesia do Ó, em São Paulo, do nível de pinturas denominado Putti e Guirlandas, investigando as significações e apropriações dessa iconografia na arte da pintura, escultura, arquitetura e mobiliário, por meio de uma perspectiva histórico-cultural, com apresentação de exemplos de sua utilização no espaço litúrgico e doméstico.

Introdução

A Paróquia Nossa Senhora da Expectação do Ó é uma das mais antigas da cidade de São Paulo, sua origem está ligada ao surgimento do bairro da Freguesia do Ó, no ano de 1580, com a instalação da fazenda do Bandeirante Manoel Preto. A igreja dedicada à Virgem do Ó foi inaugurada no século XVIII, construída onde hoje se situa o Largo da Matriz Velha, tornando-se Paróquia pelo alvará de constituição de 15 de setembro de 1796, concedido pela Rainha de Portugal. Em 1896 a Matriz Velha foi destruída em um incêndio e, em 1901, o novo edifício da Igreja foi inaugurado no local atual [1].

Em 1992, através da Resolução n. 46/9 do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), a Igreja Matriz da Freguesia do Ó foi classificada como bem tombado, determinando-se a sua preservação integral. Por intermédio de uma campanha em conjunto com a Prefeitura do Município de São Paulo, no ano de 2011, foi realizada a recuperação das fachadas. No ano de 2014, uma equipe multidisciplinar coordenada pelo conservador-restaurador Juarez da Costa Oliveira iniciou os trabalhos de conservação e restauro das pinturas murais remanescentes.

A pintura mural ou parietal, por definição do seu suporte, é executada diretamente sobre uma parede, e depende da preservação do edifício para existir. Em 1992, a Igreja Matriz da Freguesia do Ó passou por uma reforma e restruturação de áreas degradadas das paredes de alvenaria, incluindo reparos e repinturas internas executadas sobre as pinturas originais. Assim, como a intervenção sem critério é uma das maiores causas da destruição do patrimônio artístico, as pinturas murais existentes na Igreja Matriz da Freguesia do Ó sofreram degradação decorrente não apenas de patologias causadas pela infiltração de água na edificação, devido a deficiências na sua cobertura e na drenagem de águas pluviais, mas, também, pela ação humana inadequada em seu reparo. No caso da restauração do trecho de pinturas objeto desse estudo, foi possível a reconstituição das lacunas perdidas por se tratar de um elemento iconográfico com um padrão repetitivo (Fig. 1 e 2), com utilização dos elementos originais preservados na lateral direita da cúpula como referência (Fig. 3), visto que, na lateral esquerda desse nível, existia uma série de repintes na tentativa infrutífera de reproduzir a pintura perdida (Fig.4 e 5). As interferências de pessoas inexperientes e com material inapropriado acabam por dificultar e até impedir a retratabilidade das pinturas murais no processo de conservação e restauração. O conceito de retratabilidade enfatiza a reversibilidade de processos de intervenção em bens culturais, mais do que apenas dos materiais aplicados [2].

Fig. 1. Detalhe da lateral esquerda da cúpula, faixa com Putti e Guirlandas em trecho com lacunas de perda pictórica (fonte: foto da autora, 2015).

Fig.2. Detalhe da lateral esquerda da cúpula, faixa com Putti e Guirlandas em trecho com a reconstituição das lacunas de perda pictórica (fonte: foto da autora, 2015).

Fig.3. Conservação e restauro da faixa Putti e Guirlandas, com elementos originais preservados, na lateral direita da cúpula (fonte: foto da autora, 2015).

Fig.4. Detalhe da lateral esquerda da cúpula com a repintura sobre área degradada, sem remanescente da pintura original (fonte: foto da autora, 2015).

Fig.5. O mesmo trecho anterior, da lateral esquerda da cúpula, com os elementos pictóricos: guirlanda de flores, rocalhas e concheado após a restauração (fonte: foto da autora, 2015).

Estudo Iconográfico dos Putti e Guirlandas

Na restauração de obras de arte no espaço religioso, recomenda-se a pesquisa sobre a iconografia para a compreensão do simbolismo em cada representação artística dos santos e da função litúrgica e seus significados, fazendo assim a distinção dos elementos que fazem parte da concepção original da obra, daqueles que estão deslocados em seu contexto ou que foram acrescentados posteriormente. É importante compreender a intenção original do artista e identificar as alterações ou acréscimos ao longo do tempo para a correta avaliação do que preservar, respeitando a historicidade do edifício e da obra de arte.

Acima do nível do presbitério da Igreja Matriz da Freguesia do Ó identificamos uma faixa de pintura com meninos de torso nu, segurando guirlandas de flores adornadas de rocalhas e concheados; convencionou-se denominar este nível de Putti e Guirlandas, baseando-se no estudo da iconografia desses elementos.

Putti é a forma plural de putto (do latim putus ou do italiano puttus, quer dizer: menino), um termo que, no campo das artes, refere-se a pinturas ou esculturas de um menino gordinho e nu, representado às vezes com asas, derivando da figura mitológica grega do cupido jovem, símbolo do amor e da pureza. Os putti são seculares e representam uma paixão não-religiosa. No período dos séculos XVI e XVII, infantes alados eram universalmente entendidos na arte como representações de deuses do amor ou cupidos; não obstante, essa identificação iconográfica ainda persiste. Mas durante o período Barroco, a figura do putto ressurge para representar a onipresença de Deus [3].

Na arte ao mundo clássico antigo, a concepção do putto remonta a uma representação comum nos denominados sarcófagos guirlanda do século II d.C (Fig.6), quando Roma era o principal centro de produção, na parte ocidental do império, iniciando por volta de 110–120 d.C.. Muitos desses sarcófagos, além da figura dos putti, trazem guirlandas de frutas e folhas esculpidas, evocando as guirlandas reais frequentemente usadas para decorar túmulos e altares [4]. O uso de sarcófagos continuou no período cristão, quando se tornaram um meio importante para o desenvolvimento da iconografia cristã primitiva, sendo que a figura dos putti e anjos foram diferenciadas pela representação ou não das asas. Segundo Kellen Silva,  “nos primeiros 300 anos do Cristianismo, os anjos eram representados sem as asas, justamente para diferenciá-los dos mensageiros dos deuses pagãos do mundo romano, como genni, putti e deusas da Vitória” [5].

Fig. 6. Sarcófago de mármore com guirlandas e o mito de Teseu e Ariadne ca. 130-150 d.C. (fonte: Metropolitan Museum of Art, New York).

Na Antiguidade, as asas eram indicativos dos daemons, seres alados que circulavam entre o céu e a terra, pelas regiões do mundo inferior e superior. Eles conectavam o que estava acima com o que estava abaixo e sua representação era comum às civilizações do Oriente e do Ocidente entre gregos, persas, babilônios e egípcios [6]. A arte dessas civilizações serviu de referência às primeiras manifestações da arte paleocristã. Segundo Tommaso, “o período do IV ao VI século pode ser considerado como o mais fecundo da iconografia cristã: a maior parte dos modelos iconográficos encontrou uma formulação, por assim dizer, nessa época” [7].

Na Idade Média, a representação do putto desapareceu e foi revivida posteriormente no Quattrocento italiano [8], sendo que as primeiras representações escultóricas pós-antiguidade dos putti foram realizadas por Donatello (1386-1466), chamado de o autor do putto por sua contribuição para a arte em restaurar a sua forma clássica, infundindo significados cristãos ao usá-lo em novos contextos, tais como os anjos músicos, por vezes retratados em pinturas religiosas a partir dessa época.

No uso italiano do século XV, os putti com as suas guirlandas tornaram-se populares como elementos da mitologia clássica presentes na arquitetura religiosa, quando assumiram a função de posição como figuras de fronteira entre o espaço terreno e o celeste (Fig.7), consistente em toda a plena expansão do Renascimento, quando a sua colocação dentro de locais sagrados e monumentos religiosos foi aceita sem contestação [9].

Fig.7. Visão da finalização do processo de restauro da cúpula sobre o presbitério, com a faixa Putti e Guirlandas demarcando a fronteira entre o espaço terreno e o celeste (fonte: foto da autora, 2016).

A representação dos putti, portanto, remonta ao século II d.C., sendo posteriormente encontrados na iconografia do espaço litúrgico cristão, representados na arte religiosa e secular na Itália, a partir de 1420; na virada do século XVI, na Holanda e Alemanha; no período maneirista e renascença tardia, na França [10]; e presentes durante todo período barroco nas pinturas, esculturas e também na talha dourada dos retábulos em Portugal (Fig.8) e no Brasil.

Fig. 8. Detalhe da fileira com putti sustentando guirlandas do cadeiral em talha dourada em estilo Barroco Joanino da Igreja do Mosteiro de São João da Tarouca, séc. XII, Portugal (fonte: foto da autora, 2019).

A ocorrência da iconografia dos putti se espalhou pela Europa e para o novo mundo a partir do século XVII graças às gravuras das ilustrações de breviários e missais. Segundo Henriques:

Rubens (1577-1640) e Bernini (1598-1680) reorganizaram as formas dos putti da Renascença, trazendo-os para uma nova linguagem. Rubens estabeleceu um esquema para as posições, as tarefas e o significado dos putti na pintura barroca. Esta fórmula, usada por este artista e sua oficina em cerca de 300 pinturas, propiciou a expansão dos putti por toda arte ocidental, em parte devido ao fato de Rubens e seus gravadores os introduzirem nas ilustrações de breviários e missais [11].

Muitos artistas ao longo dos séculos se utilizaram da figura dos putti e até hoje a sua iconografia está presente nas artes e arquitetura religiosa, como também nas artes decorativas e no ambiente doméstico, a exemplo das peças com a representação iconográfica dos putti existentes na residência M. Duailibi, em São Paulo (Fig.9 e 10).

Pelo estudo do percurso da representação dos putti, podemos compreender como um símbolo iconográfico tumular do século II d.C. se manteve inalterado até a sua representação no século XX em uma igreja paulistana.

Fig.9. Putti e guirlandas em detalhe de lustre de porcelana, século XIX. Coleção particular (fonte: foto da autora, 2015).

Fig.10. Relevo adossado com putti, século XX, na residência M. Dualibi no Jardim Europa, em São Paulo (fonte: foto da autora, 2015).

Considerações Finais

Considerando-se as diretrizes da Conservação e Restauro do Patrimônio Artístico e Cultural, a investigação iconográfica é importante para o entendimento da unidade do conjunto artístico e arquitetônico, com a premissa de identificar e preservar o remanescente original e recompor as partes deterioradas ou faltantes, objetivando restabelecer com sucesso a leitura da obra de arte religiosa, no caso das pinturas existentes na Igreja Matriz da Freguesia do Ó.

As representações iconográficas dos putti permaneceram quase que inalteradas ao longo do tempo, sendo apropriadas pelas diferentes culturas, inseridas nos novos estilos artísticos, nas mais variadas utilizações, na concepção do espaço religioso ou civil, seja na pintura, escultura, arquitetura e mobiliário, seja em objetos e espaços de uso litúrgico ou doméstico. O seu estudo resulta numa maior valorização do patrimônio paulistano, pela compreensão de seu simbolismo e da sua importância histórico-cultural.

O conhecimento das origens e simbolismos das pinturas no espaço litúrgico da Igreja Matriz da Freguesia do Ó reforça o diálogo com o público, que se apropria da compreensão desse conteúdo, fortalecendo a importância do vínculo com esse espaço e, consequentemente, promovendo um maior zelo por sua conservação.

A preservação do patrimônio cultural abrange não apenas critérios quanto a sua materialidade, simbolismo e função, mas um conjunto de valores que as pessoas agregam a esses objetos na atualidade. É necessário valorizar a memória do patrimônio para a comunidade em que este se encontra inserido, não sendo mais suficiente somente a recomposição da materialidade perdida do objeto, mas o resgate de seus significados, não apenas pelos usos que as pessoas atribuem a esses bens materiais, mas pelos valores que eles representam [12].

Devemos enfatizar que a ação de restauração é uma exceção, a regra é a conservação do bem cultural, onde as ações de conservação do patrimônio são necessárias e contínuas. Hoje é também tarefa do conservador-restaurador o papel de educador na valorização do bem arquitetônico e artístico por aqueles que fazem utilização desses espaços, promovendo ações coletivas na preservação não apenas do espaço e da obra de arte, mas também da memória e dos costumes a eles atrelados como legado para as futuras gerações.


Notas:
[1] ARROYO, Leonardo. Igrejas de São Paulo. 2ª. ed. Brasiliana, vol. 331. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966.
[2] APPELBAUM, Barbara. Criteria for Treatment: reversibility. Journal of American Institute for Conservation, JAIC, v.26, n.2, p.65-73, 1987. Disponível em: <http://cool.conservation-us.org/jaic/articles/jaic26-02-001.html>. Acesso em: 06/06/2020.
[3] DEMPSEY, Charles. Inventing the Renaissance Putto. The University of North Carolina Press. USA: Chapel Hill & London, 2001.
[4] AWAN, Heather T. Roman Sarcophagi. In Heilbrunn Timeline of Art History. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2007. Disponível em: <http://www.metmuseum.org/toah/hd/rsar/hd_rsar.htm>. Acesso em: 06/06/2020.
[5] SILVA, Kellen Cristina. Entre o manto crioulo e a beirada, a iconografia da inocência. In: IX EHA – Encontro de História da Arte – UNICAMP, São Paulo, p.161-166, 2013, p. 161. Disponível em:
<https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2013/Kellen%20Cristina%20Silva.pdf>. Acesso em: 06/06/2020.
[6] KUNSTMANN, Josef. The Transformation of Eros. London: Oliver & Boyd, 1964.
[7] TOMMASO, Wilma Steagall De. O Cristo Pantocrator. Da origem às Igrejas no Brasil, na obra de Cláudio Pastro. São Paulo: Paulus, 2017, p.125.
[8] Eventos culturais e artísticos do século XV, ocorridos na Itália, entre o final da Idade Média e o começo do Renascimento.
[9] GÁLDY, Andrea M. (org.). Agnolo Bronzino: Medici Court Artist in Context. England: Cambridge Scholars Publishing, 2013.
[10] DEMPSEY, Charles. Inventing the Renaissance Putto. The University of North Carolina Press. USA: Chapel Hill & London, 2001.
[11] HENRIQUES, Célia Raquel Soares de Mendonça. Nem Eros, nem anjos: representações de putti através da pintura. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Faculdade Santa Marcelina, 2008, p. 23. Disponível em: <http://livros01.livrosgratis.com.br/cp053396.pdf>. Acesso em: 06/06/2020.
[12] VIÑAS, Salvador Muñoz. Contemporary Theory of Conservation. New York: Routledge, 2011.

Silvana Borges

Arquiteta especialista em Conservação e Restauração de Bens Culturais, membro do International Council of Museums (ICOM) e pesquisadora do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da PUC-SP (LABÔ). Atuou de 2013 a 2019 no projeto e execução de conservação e restauro da Igreja Matriz da Freguesia do Ó (SP). Atua desde 2014 como docente do Museu de Arte Sacra de São Paulo com o projeto “Expressões na Arte Sacra”, uma proposta de estudo iconográfico do acervo museal associado ao ensino prático de técnicas artísticas seculares. Contato: ateliersilvanaborges@hotmail.com.


logo_rr_pp   v.4, n.7 (2020)   

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