Lina Bo Bardi e a experiência de simplificação nordestina: uma premissa para o Museu de Arte de São Paulo

6332 Views

| Cristina Ortega |
 
Compreendidos entre os anos de projeto e construção da atual sede do Museu de Arte de São Paulo – 1957 a 1968 –, os cinco anos na Bahia forneceram uma experiência ímpar, que Lina Bo Bardi considerou essencial na conceituação do projeto do Masp. Já na época de sua primeira instalação, no centro da capital paulista, algumas diretrizes vinham se estabelecendo no sentido de tornar o museu uma instituição mais atrativa e cognoscível para o público em geral. Indagada a função social do museu já há algum tempo, se iniciara um processo de vivificação, refreando as exposições a apenas um rol de intelectuais e estimulando o acesso do grande público. Sob esta perspectiva, as propostas de Lina para o Masp visaram transformar as exibições mais atrativas para uma camada social com menores oportunidades culturais, estabelecendo, pedagogicamente, uma consonância entre este público diferenciado e as obras de arte.

A partir de 1959, Lina assumiu as intervenções em Salvador. Se, por um lado, ela incorporou a experiência adquirida no Masp às instalações do Museu de Arte Moderna da Bahia (Mamb) – e às cenografias do Teatro Castro Alves, por outro lado ela refletiu sobre os costumes do Nordeste: a inventividade criativa e desprendida das soluções simples. Quanto a essa “experiência”, Lina Bo se referiu principalmente à simplicidade formal adotada no edifício e interiores do Masp, o que não pretendeu ser uma redução de princípios ou de conceitos, pois o próprio aspecto formal denota significados intrínsecos à linguagem moderna e à nova leitura do caráter social que a arquiteta realizou. [1]

Uma relação entre o público e as obras de arte foi viabilizada pelos suportes em concreto e vidro, denominados cavaletes de cristal, os quais simulam a suspensão das telas no ar, entre os visitantes. E através da diáfana caixa de vidro que contém a pinacoteca, na época foi permitido o vínculo entre o interior – obras de arte – e o exterior – cidade, povo.

O Masp foi o primeiro edifício de Lina a manifestar o desejo de integração entre arquitetura, cidade, arte e povo, e, talvez, o único projeto de Lina, ainda arraigado fortemente aos conceitos clássicos modernos, a evidenciar com grande sutileza esta condição de proximidade entre as exposições e o público, em parte advinda da experiência nordestina.

Além de impregnada pelo movimento moderno, Lina sempre buscou conferir às suas atividades um profundo respeito pela cultura, seja erudita ou popular. É sobre esta última que trata este artigo, mostrando como a Bahia inspirou a arquiteta e como esta expressou estes conhecimentos no Masp.

A função educativa dos museus se intensificou principalmente após as duas Grandes Guerras. Foi em meio a estas discussões, do fim dos anos 1940, que o empresário paraibano Francisco Assis Chateaubriand, vinculado ao setor de comunicações, fez o primeiro contato com os Bardi durante a realização de duas exposições artísticas organizadas por Pietro Maria Bardi no Ministério de Educação e Saúde (MES), no Rio de Janeiro.

Chateaubriand convidou Pietro a formar um acervo significativo e inaugurar um Museu de Arte. Ficou na incumbência de Lina Bo Bardi a instalação e curadoria de uma nova instituição artística para a disposição destas obras no centro de São Paulo. Neste instituto, que seria o Masp, se concretizaram as posturas, provavelmente inéditas no Brasil de 1947, pela função social dos museus. Ancorados nas discussões a respeito da utilidade dos museus para a sociedade, o casal Bardi estabeleceu metas para atrair diferentes grupos sociais, pois as expectativas destes compreendiam dirigir ao museu um público mais diversificado, o que incluía também receber estudantes.

Desde as primeiras instalações do Masp, o percurso estabelecido para as exposições não obedeceu necessariamente à ordem cronológica de cada mostra. Em ambientes desprovidos de paredes, restando apenas a estrutura do edifício, as obras eram dispostas, como justifica Lina, “quase propositadamente no sentido de produzir um choque que desperte reações de curiosidade e de investigação” [2]. É essa mesma sensação que pode ter tido Lina sobre as feiras nordestinas, conhecidas posteriormente, como se nelas ela resgatasse suas próprias intenções.

O papel de mentora de uma nova postura social perante os espaços do Museu de Arte fez surtir efeitos em pouco tempo, os frutos da dedicação de Lina foram prontamente colhidos, como pode se observar na imagem publicada na Revista Habitat, em 1950: um motorista de ônibus acompanhado de seu pequeno filho, ambos admirando Paul Cézanne.

Em 1957, discutia-se o fato de uma coleção, tão importante, ser sediada já há dez anos em instalações provisórias, sem as características adequadas para uma instituição deste porte. Os espaços restritos dos pavimentos no edifício impossibilitavam a visibilidade ideal das obras e, por outro lado, o aumento do interesse pelos cursos propostos pelo Masp foi acentuado. Nesta época, a arquiteta foi chamada a Salvador, quando fez intervenções no Teatro Castro Alves e criou o Museu de Arte Moderna da Bahia. Foram cinco anos de convívio com o Nordeste, onde aproveitou “a lição da experiência popular (…) como experiência de simplificação” [3] que a motivariam a praticar uma postura similar com relação ao projeto do Masp na avenida Paulista.

Em 1959 foi fundado, em Salvador, o Museu de Arte Moderna que, inicialmente, funcionou no foyer do Teatro Castro Alves. Lina Bo Bardi seguira para Salvador com o objetivo de orientar uma nova expressão de vivacidade cultural. Lina realizou, no Teatro Castro Alves, em Salvador, várias cenografias. O teatro fora acometido por um incêndio, poucos dias antes de sua inauguração, e a expressão cenográfica de Lina tirou partido do palco semidestruído, para sublinhar a dramaticidade dos espetáculos. As propostas, simples, despidas de detalhes e de caráter moderno, foram compreendidas pelo público, predominantemente popular. Além do auditório, o Castro Alves também abrigou o Museu de Arte Moderna da Bahia (Mamb). Entre 1959 e 1963, Lina Bo Bardi restaurou o Solar do Unhão, onde seriam instalados, a princípio, o Museu de Arte Popular e a Escola de Desenho Industrial e Artesanato, inserida como atividade ligada ao museu. O sonho da arquiteta de mais um museu-escola foi vetado pelo início da ditadura militar, em 1964, época em que Mamb já ocupava o Solar do Unhão desde o ano anterior [4].

O projeto de recuperação do Solar foi consciente com a viabilidade espacial do interior, dialogando com a ética de restauro promovida pelo Movimento Moderno e preservando o patrimônio cultural tombado [5]. A célebre intervenção de Lina Bo Bardi para acessar o pavimento superior do Solar do Unhão respeitou o passado histórico da edificação do século XVI. A arquiteta encontrou uma solução para a construção da escadaria, cujos elementos de encaixe eram encontrados nos antigos carros de bois, um atavismo arraigado à cultura material brasileira desde o Brasil-Colônia (fig. 1 e 2). A disposição dos elementos nas mostras se aproximou da maneira de exibir o artesanato local – seja em feiras ou pequenas vendas –, como se pode conferir no resultado da disposição das peças expostas na Exposição Nordeste, de 1963 [6].

Fig.1. Escadaria do Solar do Unhão – Mamb (foto: Nelson Kon)

Fig.2. Solar do Unhão – Mamb (foto: Nelson Kon)

Em São Paulo, a preocupação de sediar o Masp em um novo edifício persistia. Lina soubera da possível doação de um lote na avenida Paulista, pertencente ao Trianon, à prefeitura de São Paulo, desde que fosse respeitado o desejo testamentário de conservar a visão panorâmica em direção ao vale, como acontecia no antigo belvedere do Parque Trianon.

Vencida a disputa política, restava suplantar o desafio arquitetônico. Ainda em 1957, Lina desenvolveu um projeto arrojado para a época. O mirante do belvedere do Trianon foi preservado com o desmembramento dos volumes do museu – semienterrado e aéreo –, possibilitando um imenso vazio no térreo, que permitiu o acesso solicitado para a paisagem urbana do vale paulistano.

Bo criou três volumetrias distintas: duas edificadas e uma lacuna entre estas. De baixo para cima, a primeira é um embasamento semienterrado, concentra as atividades de serviços, áreas para usos diversos – Hall Cívico e foyer –, biblioteca, auditório, restaurante e dois espaços expositivos; a segunda é o vazio, que se interpõe entre os outros dois volumes, formando uma praça – o belvedere – pontuada pelas escadas, elevador e pelos quatro robustos pilares que sustentam a oito metros do piso o terceiro volume [7], este último se destaca por sua forma prismática e transparente, comportando a maioria dos espaços expositivos: no primeiro pavimento, as exposições temporárias e administração, no segundo, a pinacoteca.

Com setenta e quatro metros de vão livre, a estrutura foi cuidadosamente projetada em prerrogativa das instalações internas, absolvendo os espaços expositivos de obstáculos estruturais, permitindo instalações descomprometidas com o posicionamento dos pilares – pois estes são apartados de qualquer espaço expositivo –, e privilegiando a adoção de alternativas na configuração das instalações para as exibições.

Entre o volume de embasamento e a caixa de vidro se estabeleceu um outro espaço público, interno e externo ao mesmo tempo, o belvedere situado no pavimento térreo. A “praça” proposta por Lina (fig.3), com vista para o vale e de frente para o parque Trianon. Um espaço convidativo que integra visualmente o espigão ao vale, onde se realizam eventos diversos. Esta praça é um dos únicos hiatos, mas sem dúvida o mais atraente, no conturbado eixo empresarial paulistano (fig.4). Como Lina diversas vezes se referiu, este espaço tem afinidade com o “intervalo silencioso” presente na composição musical de John Cage.

Fig.3. Belvedere do Masp (foto: Nelson Kon)

Fig.4. Masp na Avenida Paulista (foto: Nelson Kon)

Os principais materiais utilizados nesta edificação são o concreto e o vidro. Prevalece o concreto nos pisos semienterrados – denominados subsolos –, o belvedere quase se isenta de matéria, e sobressai a presença do vidro na grande caixa. Analogamente, as obras de arte estão dispostas em painéis de vidro, cujo suporte é um bloco de concreto: os reputados cavaletes de cristal (fig. 5 e 6). Não é por acaso que os cavaletes são compostos com os mesmos elementos: o primeiro é um embasamento em um cubo de concreto em seu estado bruto, rústico e pesado, que suporta o segundo; este é encaixado ao bloco de base, em vidro totalmente transparente, transmitindo leveza e portando as obras como se estivessem em suspensão no ar. Por analogia, o bloco de concreto remete ao volume semienterrado – que concentra as áreas de apoio –, o vidro remete ao belvedere no térreo – o vazio –, e a obra de arte remete ao bloco prismático – aéreo, flutuante. Este é o mais estreito diálogo entre a edificação e seus componentes móveis. [8]

Fig.5 e 6. Cavaletes de cristal – Masp (fotos: Nelson Kon)

Apesar do projeto do Masp já ter sido iniciado quando da primeira visita de Lina à Salvador, duas características do Masp remetem de forma direta à lição nordestina. O que não foi outra coisa senão aproximá-la mais da cultura popular, seja nordestina ou de qualquer parte do Brasil. A primeira é a própria praça criada na lacuna entre o embasamento e a caixa de vidro. Já considerada desde os primeiros esboços com a finalidade de manter a visão para o vale, este espaço recebeu uma sugestão de ocupação desenhada por Lina em 1965, que se reporta a uma espécie de parque de diversões, sempre presentes, então, em eventos populares. A segunda envolve a criação e disposição dos cavaletes para a pinacoteca. Criticados por fragmentar o espaço expositivo, os suportes propostos por Lina pertencem ao rol daquelas soluções simples inventadas pelo povo. E, apesar da organização e equidistância entre os cavaletes, sua ambientação experimenta as mesmas condições dos arranjos físicos encontrados nas feiras populares do Brasil afora, onde nos deparamos com situações espaciais restritivas, mas ao mesmo tempo, tem-se a impressão de que os produtos encontrados nestas feiras vão ao encontro do público, assim como as obras suspensas – como que espargindo a essência da arte no ar – parecem assediar os visitantes. Da mesma forma que muitas vezes nos deparamos com os próprios artesãos desenvolvendo suas peças em meio às feiras de artesanato, os cavaletes remetem ao estado de criação da obra, aos momentos de concepção, fazendo o artista ausente se aproximar do interlocutor, numa simbiose entre o observador e o observado.

Neste contexto, é interessante lembrar a imagem de Lina durante a construção do Masp – em fase de pré-concretagem do contrapiso do belvedere –, provavelmente testando O Escolar de Vincent van Gogh em um protótipo do cavalete de cristal: a obra de arte concluída, despertando o passado em que foi realizada, por meio de uma alusão ao cavalete do artista, e a obra de arquitetura em processo construtivo, instigando o futuro em que haveria o pacto entre a obra de arte e a arquitetura.

O tema exposições foi desenvolvido por Lina ao longo de todo seu percurso profissional. Dentre essas obras de caráter museístico, o projeto do Masp da avenida Paulista foi o de maior impacto. Importante enquanto museu e emblemático enquanto edificação, tornou-se um ícone da arquitetura paulistana. Ladeada por torres verticais, a horizontalidade do Masp rompe a muralha que os edifícios produzem na avenida [9]. Além de disparatar com a linha monumental que se estabeleceu no eixo viário, a proposta para o museu de Lina vai além de invólucro para um acervo, oferece um espaço aberto ao público – ou melhor, ao povo, como diria Lina – que convida e abraça o belvedere sob a grande caixa de vidro, com enormes pilares e vigas de concreto protendido.

Não foi por acaso que Lina cada vez mais se aproximou da cultura popular, adaptando suas intervenções aos meios inventivos das pessoas simples. Não foi por acaso que Lina atesta ter sido o Nordeste o responsável por algumas atitudes perante o Masp. Argumentando sobre este edifício, Lina Bo Bardi estabelece um vínculo conceitual com a arquitetura moderna e a cultura popular:

Aproveitei ao máximo a experiência de cinco anos vividos no Nordeste, a lição da experiência popular, não como romantismo folclórico, mas como experiência de simplificação. Através de uma experiência popular cheguei àquilo que se poderia chamar de Arquitetura Pobre. Insisto, não do ponto de vista ético. Acho que no Museu de Arte de São Paulo eliminei o esnobismo cultural tão querido pelos intelectuais (e os arquitetos de hoje), optando pelas soluções diretas, despidas [10].

Na perspectiva de resgatar as questões da terra, ela pretendeu homenagear o povo, com seus costumes e crenças, em exposições no Masp. A “experiência de simplificação” de Lina Bo Bardi com relação à vivência no Nordeste é atribuída ao emprego de formas simples, inerentes à linguagem moderna e à releitura de caráter social, iniciada na sede provisória e acentuada na avenida Paulista. E é neste sentido que Lina relata o aprendizado no Nordeste, expressando em sua arquitetura – o que inclui o sítio urbano do museu e os interiores – uma maneira de estimular a interlocução íntima entre obra de arte e povo.


Notas

[1] FERRAZ, Marcelo C. (Org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi e Pietro M. Bardi, 1993, p. 100.

[2] BARDI, Lina Bo. Museu de Arte. Habitat (1): 17-51, São Paulo, out./nov./dez. 1950, p. 17.

[3] FERRAZ, op cit, 1993, p. 100.

[4] Lina relata neste texto: “O agravamento das tensões estruturais do país que culminaram nos acontecimentos de abril de 1964 refletiram-se também nas atividades culturais”. BO BARDI, Lina. Cinco anos entre os “brancos”. Mirante das Artes. São Paulo, dez./jan./fev. 1967.

[5] O Mamb foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1943.

[6] É interessante lembrar que, em 1959, a Exposição Bahia no Ibirapuera, na V Bienal de São Paulo, intervenção de Lina Bo Bardi e Martim Gonçalves, destacou o ponto de vista antropológico-cultural do trabalho do povo nordestino.

[7] Atualmente, ao vazio foram acrescentados painéis transparentes para orientação do fluxo de acesso, bilheterias e um balcão guarda-volumes. Alguns espelhos d’água que circundavam o edifício foram aterrados.

[8] A respeito desta questão é interessante observar o relato de VAN EICK, Aldo. Um dom superlativo. In: Museu de Arte de São Paulo. Lisboa: Blau e Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, 1997, s/nº. Os cavaletes de cristal foram retirados entre 1996 e 2015, o que deu origem a inúmeras críticas divulgadas amplamente pela mídia.

[9] O edifício do Masp foi tombado por três diferentes órgãos: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 2008; Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), em 1982; e Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp), em 1991. O Masp está sediado em situação privilegiada no tecido urbano, o espigão paulistano, de onde se descortina o Vale do Anhangabaú em direção ao centro, exatamente na intersecção entre importantes eixos viários: as avenidas Paulista e Nove de Julho.

[10] Anotações pessoais de Lina Bo Bardi quanto ao Masp.


Cristina Ortega

Arquiteta e urbanista pela Universidade Mackenzie, mestre e doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Professora titular na Universidade Paulista.


logo_rr_pp      EDIÇÃO n.3 2018       

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

image_pdfgerar PDFimage_printimprimir