A necessária preservação da pavimentação histórica no setor leste do Centro de Florianópolis

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I Vanessa Maria Pereira I

O conjunto urbano fundacional de Florianópolis é uma grande referência de cultura e de história para os moradores da cidade. Apesar de sua relevância, a pavimentação histórica de suas ruas está sendo ameaçada por um projeto urbanístico elaborado recentemente pela Prefeitura Municipal. [1]

A cidade de Florianópolis, capital do Estado de Santa Catarina, nasceu a partir de um pequeno lugarejo ocupado pelo paulista Francisco Dias Velho, que deixou São Paulo com destino à Ilha de Santa Catarina em 1628. A Póvoa, instalada num terreiro defronte ao mar onde Dias Velho ergueu sua morada e um cruzeiro para as rezas cotidianas, passou a se chamar Nossa Senhora do Desterro. Dias Velho seguiu firme na intenção de ocupar o território e com esse intento fundou, em 1673, um empreendimento agrícola de bom êxito. A data de fundação de tal empreendimento é considerada o ano oficial de fundação de Florianópolis. Em 1678, Dias Velho requisitou, em Santos, a posse da terra [2]. Posteriormente, foi erguida no local uma capela muito modesta dedicada à Nossa Senhora do Desterro. A partir desse conjunto, se deu a ocupação do território, de forma muito lenta e espontânea, pelas bordas dos rios e das faixas litorâneas, marcando a origem do futuro núcleo urbano.

Tal região, com a capela e o terreiro que se estendia até o mar, é considerada o coração da Póvoa que foi elevada à Freguesia em 1714 e à Vila em 1726, desmembrando-se do Termo de Laguna [3]. Ainda nas primeiras décadas do século XVIII foi criada a Capitania de Santa Catarina (1738) que viria a desempenhar um papel estratégico político-militar na defesa do território português. Após a sua elevação à condição de Vila foram construídas importantes edificações na região fundacional, como a Igreja Matriz (1749), no mesmo lugar da antiga capela; o Palácio do Governo (1765); o Hospital de Caridade (1789), localizado além da fonte de água; e a Câmara Municipal (1771). 

Em meados do século XVIII, Desterro passou a contar com um maior contingente populacional decorrente da imigração açoriana (1748-1756). A ocupação que se expande a partir desse núcleo ocorreu, de forma mais intensa, à leste do Largo da Matriz, em direção ao Rio da Bulha, também chamado de Rio da Fonte Velha, lado para o qual também se localizava o Hospital. Os usos urbanos se intensificaram, a sociedade enriqueceu. Sua condição de cidade portuária fortaleceu o comércio na região que se organizou ao longo das bordas d’água nas proximidades do Largo da Matriz e no entorno dele. O casario dessa região que era, inicialmente, construído com técnicas rudimentares e materiais de pouca resistência, com aspectos de edificações rurais sem nenhuma sofisticação, passou a ser substituído por edificações de alvenaria, mais sofisticadas e de maiores proporções. “As construções alinhavam-se às ruas estreitas que, partindo do Largo da Matriz, se dirigiam às fontes d’água existentes nas proximidades.” [4] 

Nas primeiras décadas do século XIX, o movimento comercial se intensificou e as instituições públicas foram reforçadas, iniciou-se assim um novo momento em Desterro. Segundo Veiga [5] nenhuma rua estava calçada até 1816, o processo de urbanização foi ocorrendo lentamente e a partir da década de 1870 iniciaram-se as pavimentações de diversos trechos da região central, nas proximidades da Praça Matriz. 

Em 1880, em razão de um novo código de posturas, a prática de criação de animais no entorno da Praça foi proibida e, assim, com o tempo, esses foram desaparecendo. Também as características das arquiteturas se alteraram definitivamente. A pavimentação das vias era mais uma estratégia para dar à cidade um aspecto mais moderno e limpo, facilitando a circulação e o escoamento das águas pluviais. A cidade passava por diversas transformações, a iluminação pública se tornava mais efetiva, os transportes públicos estavam sendo implantados e novos negócios se estabeleciam na cidade. “Banqueiros, choferes de praça, especuladores e homens de negócios passaram a circular mais intensamente” [6]. Com isso, foram promovidas algumas alterações nos traçados das vias, em suas dimensões e pavimentação, e uma nova paisagem urbana começou a se configurar no final do século XIX.

No ano de 1886, após importantes debates sobre a melhor solução para o calçamento da cidade, o Eng. Geraldo Souza Aguiar optou pelo uso de paralelepípedos de pedra por ser a solução mais aceita pelas capitais no país, por sua elegância e também por suas vantagens técnicas [7]. E ao longo dos anos seguintes, muitas ruas da região foram recebendo a devida pavimentação.

Durante o século XX, Florianópolis, nome dado à cidade em 1894 em homenagem ao Marechal Floriano Peixoto, cresceu lentamente, mesmo assim parte de seus lugares históricos foi preservada. É certo que muitas edificações do tecido urbano foram substituídas por outras mais modernas durante o século XX, mas o lugar mantém bastante íntegra sua malha urbana e a sua ambiência. A integridade do traçado e de outros elementos urbanos se deve à prática da preservação na cidade, que começou a se estruturar no final da década de 1970, início da década de 1980. Em 1979 o órgão municipal de preservação passou a compor a estrutura do Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), o que conduziu os trabalhos de preservação para uma questão mais voltada aos conjuntos e ambiências urbanas do que para monumentos isolados. Segundo a arquiteta e pesquisadora Betina Adams [8] “inaugurando a prática de tombamentos para a preservação ambiental urbana, ainda em 1980 foi preservado o pequeno conjunto oitocentista localizado na Praça XV de Novembro, composto por seis tradicionais sobrados com uso comercial no térreo e residencial no superior.” Adams destaca ainda que “a transferência do órgão de preservação para o IPUF traz uma nova abordagem: a manutenção do substrato antigo com o crescimento da cidade. São tombados 10 conjuntos na área central”. [9]

A autora relata que as ações de preservação no município evoluíram rapidamente e que na área central foram priorizados alguns conjuntos arquitetônicos que poderiam testemunhar a evolução urbana do município, entre eles, o “Centro Histórico” que abarca parte da área em questão. Há ainda um Decreto Municipal, nº 190/1990, que preserva nominalmente a malha urbana do conjunto histórico localizado à leste da Praça XV de Novembro, a Praça da Matriz.

A integração entre o órgão de planejamento urbano e de preservação do patrimônio, na cidade, fez com que na construção dos Planos Diretores, a partir dos anos de 1980, fosse incorporada a figura da APC – Área de Preservação Cultural, destinada à preservação de sítios de interesse histórico, antropológico e arqueológico. Tal ferramenta é uma alternativa eficaz de proteção do patrimônio, pois é alinhada aos demais aspectos que tangem o planejamento urbano. Neste sentido, a versão mais recente do Plano Diretor de Florianópolis (Lei 482/2014) mantém e amplia as APCs, reforçando a proteção do setor à leste da Praça XV de Novembro.

Fig.1. Pavimentação de paralelepípedo em bom estado de conservação na Praça XV de Novembro em frente ao Palácio Cruz e Souza, antigo Palácio do Governo, bem tombado como patrimônio cultural do Estado (fonte: foto de Gustavo Pires de Andrade Neto, 2021).

Em 2020, a Prefeitura Municipal de Florianópolis apresentou uma primeira versão de um projeto urbanístico para o chamado setor leste do Centro Histórico. O projeto em questão traz como argumento a necessidade de realizar melhorias urbanas na região, que há anos vinha sofrendo com o abandono das instituições públicas e um suposto esvaziamento do comércio. É fato que a área carece de melhorias e que um projeto urbanístico seria muito bem-vindo por toda a comunidade se não propusesse uma completa descaracterização da pavimentação histórica de um dos mais íntegros conjuntos urbanos da cidade.

A proposta prevê a substituição da pavimentação de grande parte do leito carroçável da área, hoje em paralelepípedo de granito, por bloco de concreto tipo paver. Em versões posteriores, o projeto passou a prever manutenção de trechos de paralelepípedo nas bordas das vias, junto às sarjetas, e em frente a alguns prédios tombados pelo órgão estadual de preservação, a Fundação Catarinense de Cultura (FCC). A substituição do piso histórico proposta parece ignorar que estes são parte integrante do patrimônio urbano da cidade e, portanto, os materiais dessas pavimentações guardam relação direta com o conjunto de edificações, bem como com o tempo histórico que representam. São elementos como esses que, devidamente preservados, conferem aos lugares sua identidade cultural, que os diferenciam das demais cidades ou regiões. No caso do setor leste do Centro Histórico de Florianópolis, trata-se de sítio fundacional, uma das primeiras regiões ocupadas na cidade, onde não apenas os edifícios históricos compreendidos por seus valores individuais são relevantes. 

Fig.2. Pavimentação em paralelepípedo no entorno da Praça XV de Novembro. A pavimentação contribui para garantir a continuidade da ambiência urbana histórica do conjunto urbano (fonte: foto de Gustavo Pires de Andrade Neto, 2021). 

É fundamental que se tenha consciência de que um conjunto modesto como o do setor leste tem seus valores – entre eles o histórico/cultural –, e que não pode ser submetido a um conceito temporal de beleza e funcionalidade, justamente, nas várias camadas de solo que se sobrepuseram, no traçado de suas ruas, no desenho de seus espaços públicos, nos diversos tipos de piso que o compõem. Todos estes elementos devem ser devidamente estudados e analisados antes da elaboração de qualquer projeto de intervenção. Esse estudo prévio deve avaliar a necessidade de melhorias, de recuperação, de permanências e possíveis substituições.

Outro aspecto fundamental para ser debatido em relação à possibilidade de substituição do piso histórico por blocos industrializados de concreto é o valor dos saberes atrelados à sua existência: o laboro observado desde o processo de escolha da rocha a ser “picada”, passando pela criação de cada unidade pelos artesãos, seu transporte e finalmente a instalação. São elementos naturais assentados por antigos mestres que dominavam técnicas manuais muito precisas. Esses saberes são hoje um patrimônio muito relevante a ser preservado, uma tecnologia aplicada por gerações passadas, as quais se deve respeitar com o mínimo de dignidade. Tais pedras representam, em grande medida, a materialidade dos saberes, das técnicas, dos desejos de um determinado período histórico.

As diferentes camadas históricas que se situam entre valores materiais e imateriais da cultura de um povo ou de um lugar são fundamentais para darem unidade e harmonia ao conjunto patrimonial. Os edifícios, se preservados de forma isolada, perdem sua ambiência, tornam-se ilhas no meio de uma cidade estranha, que não consegue mais reconhecer neles os valores que outrora o fizeram ser preservados. Eles se esvaziam, se tornam apenas um objeto de apreciação estética. A preservação dos diversos elementos de um conjunto urbano não é relevante apenas por seus valores estéticos. Há que se considerar toda a história e os conhecimentos que são representados por tais elementos. 

No caso da pavimentação em paralelepípedo do setor leste do Centro Histórico de Florianópolis há ainda o valor material da pedra de granito, abundante na região. O setor leste, inclusive, já abrigou uma pedreira e parte da região foi conhecida no passado como “bairro da Pedreira”. Este material, além de mais resistente e duradouro que os blocos industrializados de concreto, é colocado com uma técnica que permite uma boa permeabilidade do solo e uma drenagem mais rápida das águas pluviais. A existência de pavimentações centenárias realizadas com essas pedras, que durante décadas não receberam nenhuma manutenção, demonstra sua resistência e sustentabilidade, pois tipos de pavimentações mais recentes colapsam facilmente com a ocorrência de qualquer chuva mais intensa.

O argumento para a implantação de tal projeto transita também na possibilidade de tornar a região mais acessível e atrativa ao pedestre. Contudo, os paralelepípedos históricos estão assentados apenas no leito carroçável. As vias para veículos, com a retirada das pedras naturais e colocação dos blocos de concreto, aumentariam significativamente a velocidade do tráfego na região e, ao invés de promover a ampliação da circulação de pedestres e maior acessibilidade, tornariam o local mais inseguro. Soluções de acessibilidade são possíveis e já existem experiências em diversas partes do mundo e do país. Especialistas em desenho urbano acessível acreditam que é possível que um projeto bem estruturado identifique os pontos de fluxo mais intenso de pedestres, propondo faixas específicas de circulação com trechos de nivelamento do piso executados com placas maiores de granito. A utilização do mesmo material histórico, mas em grandes formatos, vem se mostrando uma alternativa que viabiliza a circulação das pessoas nas cidades, em especial, nos centros históricos. É possível que a pavimentação histórica seja reassentada e aparelhada melhorando a circulação de forma geral. 

Fig.3. Intervenção realizada no entorno da Alfândega, também no Centro Histórico de Florianópolis, na qual a pavimentação histórica foi preservada. Nesse caso, as melhorias na acessibilidade não implicaram a remoção dos paralelepípedos de granito, como é proposto no projeto para o setor leste (fonte: foto de Gustavo Pires de Andrade Neto, 2021).

Por fim, há ainda a questão econômica. Os recursos investidos na substituição das pedras, que são de boa qualidade e podem passar apenas por manutenções, poderiam ser investidos em outros projetos urbanos também fundamentais para a valorização da região, como o embutimento das fiações elétrica e de comunicações. Esse embutimento permitiria a retirada dos postes das estreitas calçadas, facilitando o fluxo dos pedestres. São muitos os exemplos no mundo, em pequenas e grandes cidades, que utilizam pavimentação em pedra natural, realizam as devidas manutenções e desenvolvem soluções compatíveis de acessibilidade. Assim, camadas importantes da evolução urbana das cidades são preservadas, resguardando valores que as distinguem dos demais, as tornam únicas.

Fig. 4. Pavimentação em paralelepípedos na cidade de Poblenou, Barcelona, com passeios laterais acessíveis executados também em pedra (fonte: foto de Gustavo Pires de Andrade Neto, 2021).

As discussões sobre o projeto urbanístico para o setor leste elaborado pela Prefeitura de Florianópolis foram iniciadas em 2020. Desde então, há uma grande mobilização de diversos agentes públicos, instituições e profissionais de variadas áreas de conhecimento, preocupados com a preservação do patrimônio, que buscam alertar a Prefeitura sobre a importância de estudos amplos antes de qualquer tipo de intervenção naquela área, especialmente críticos com a retirada dos paralelepípedos históricos. Há também o debate sobre irregularidades na tramitação do projeto urbanístico da Prefeitura por conta da necessidade de aprovação deste nas três instâncias governamentais de preservação. Isto porque, além das proteções municipais, o conjunto conta com bens tombados pela instância estadual, a FCC, e está no entorno de bens tombados pelo IPHAN, portanto, deveria ter sido submetido à todas as instâncias governamentais de preservação, o que nem sempre ocorreu nas diferentes versões do projeto. Há que se considerar também que à FCC recai o poder de agir na preservação do patrimônio cultural, de acordo com o previsto na constituição Estadual, o que não limita seu dever tão somente aos bens por ela tombados.

A preservação do setor leste do Centro Histórico e de sua pavimentação é, sobretudo, uma questão de respeito. Respeito às pessoas que, há séculos, abriram as ruas, lutaram por sua qualificação e por sua manutenção. Respeito às leis de preservação instituídas há décadas na cidade e aos bens tombados pelas diferentes instâncias governamentais. E respeito aos proprietários de bens tombados que preservam suas propriedades em nome do direito coletivo. Respeito ao erário, cujas expensas com manutenção dessas ruas praticamente inexiste. Os gestores públicos deveriam ser os primeiros a dar o exemplo de como intervir com cautela e sensibilidade em regiões com tanto significado e valores tão relevantes para a comunidade local.


Notas:

[1] Texto elaborado com a colaboração do arquiteto Gustavo Pires de Andrade Neto e do historiador Rodrigo Rosa.

[2] PAULI, Evaldo. A fundação de Florianópolis. Florianópolis: Lunarderlli, 1973, p.15.

[3] VEIGA, Eliane Veras da. Florianópolis: Memória Urbana. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 2008, p. 24.

[4] VEIGA, op. cit., p. 27.

[5] Idem, p. 257.

[6] Idem, Ibidem.

[7] Idem, p. 2.

[8] ADAMS, Betina. Preservação Urbana: gestão e resgate de uma história. Florianópolis: UFSC, 2002. p. 67.

[9] ADAMS, op. cit., p. 135.


Vanessa Maria Pereira

Arquiteta e Urbanista (UFSC). Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade – PPGAU/UFSC. Doutoranda do PPGAU/FAUFBA. Bolsista CNPQ. E-mail: vanessamariapereira@gmail.com


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