A postura do conservador restaurador diante das instâncias estética versus histórica: um estudo de caso

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I Flávia Andrea Siqueira Dias I

Desde o século XIX, teóricos e estudiosos de áreas distintas estabeleceram conceitos em forma de textos, cartas e recomendações que consolidaram a história evolutiva da conservação e do restauro em diversas partes do mundo, conforme mostra Quites (2019), no Quadro 1 [1]. O intuito aqui não é discorrer sobre tais teorias, mas apresentar, na prática, alguns desses conceitos, num estudo de caso em que as instâncias estética versus histórica foram a tônica para se definir alguns critérios de intervenção.

Quadro 1. Quadro Cronológico: teóricos, estudiosos e instituições (fonte: elaborado por Maria Regina Emery Quites e Aline Ramos, 2019).

Nesse sentido, destacamos a obra de Cesare Brandi (1906-1988), um dos estudiosos mais importantes da teoria do restauro no século XX: “a restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo”. [2]

Para se definir o diagnóstico de uma obra, bem como sugerir procedimentos de tratamento e estabelecer critérios técnicos de intervenção, é imprescindível conhecer alguns desses conceitos na teoria, no intuito de conectá-los à prática e restabelecer a obra de forma ética e assertiva. Para exemplificar a reflexão sugerida, será apresentado um estudo de caso em que o principal entrave foi ponderar entre manter a passagem do tempo sobre a obra e ao mesmo tempo devolver a leitura estética em sua unidade potencial.

A imagem de São Benedito em questão, apresentava perda significativa de policromia, além de desprendimento ativo (Fig. 1 e 2). Para o tratamento, o desafio foi estabilizar o que restava e ao mesmo tempo reintegrar esteticamente, para uma fruição satisfatória do objeto sem perder sua passagem no tempo. Para melhor compreensão dos procedimentos adotados no restauro da imagem, apresentamos a seguir a identificação da obra e as análises formal, estilística (valendo-se da evolução estilística dos séculos XVI ao XIX) e iconográfica, a técnica construtiva, o estado de conservação, a proposta de tratamento e, por fim, o tratamento realizado.

Identificação da obra

Título: São Benedito

Autor: Desconhecido

Técnica: Madeira policromada

Época: Presumível séc. XIX

Dimensões: 20 x 12 x 8 cm.

Origem: Desconhecida

Procedência: São Paulo

Coleção Particular


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Fig. 1 e 2. Imagem de São Benedito antes do restauro (fonte: fotos da autora, 2020).

Análise formal

Figura masculina, adulta, de pé sobre base octogonal, em posição frontal. Fisionomia serena, cabeça levemente voltada para a esquerda, rosto redondo, olhos médios, nariz médio, boca cerrada, lábios médios, queixo médio arredondado, cabelos curtos encaracolados, orelha em ‘C’, imberbe. Pescoço médio, tórax reto sob vestimenta, braços dobrados junto ao corpo em posição de carregar, mãos abertas com os dedos unidos em posição de apoio, pernas estendidas sob vestimenta, pés em ângulo e descalços. Veste hábito longo preto com frisos dourados e capuz. Carrega sobre as mãos um tecido em que se apoia uma figura masculina, criança, desnuda, na posição deitada.

Análise estilística

Imagem de talha simples, composição leve e linhas verticais. O eixo central divide a imagem simetricamente, passando entre os pés e possui sete módulos. Apresenta expressão serena, cabelos entalhados junto à cabeça, olhos de vidro, panejamento verticalizado com pregas retas, sem movimentação. Policromia simples, monocromática, sem efeitos decorativos e pouco douramento. Base octogonal chanfrada, marmorizada e padronizada, em linhas retas. Tais características a inserem no contexto estilístico possivelmente da segunda metade do século XIX, de acordo com os quadros 2, 3 e 4: quadros evolutivos da imaginária, apresentado por Ramos (1996) [2], que traçam um comparativo acerca das características gerais da imaginária ao longo dos séculos.

Quadro 2. Quadro evolutivo da imaginária (fonte: Adriano Reis Ramos, 1996).Quadro 3. Quadro evolutivo da imaginária (fonte: Adriano Reis Ramos, 1996).Quadro 4. Quadro evolutivo da imaginária (fonte: Adriano Reis Ramos, 1996).

Análise iconográfica

Representação de São Benedito (Sicília, 1526 – Palermo, 1589), nascido em uma família pobre e descendente de africanos escravizados na Etiópia, era chamado de “mouro” pela cor escura de sua pele. Na juventude foi lavrador, aos 18 anos consagrou-se a serviço de Deus e aos 21 já era monge dos irmãos eremitas de São Francisco. Fez votos de pobreza, obediência e castidade e era muito requisitado pelo povo, que lhe pedia conselhos e orações. Passou quase a sua vida inteira no Convento Franciscano de Santa Maria de Jesus de Palermo, designado a princípio como cozinheiro. Apesar de analfabeto e leigo, foi eleito Superior, por sua piedade, sabedoria e santidade. Os irmãos o consideravam iluminado pelo Espírito Santo, por suas profecias. Benedito morreu aos 65 anos e, na porta de sua cela, há uma placa indicando que habitou ali. Em 24 de maio de 1807, São Benedito foi canonizado pelo papa Pio VII e pode ser conhecido também pelos nomes de Benedito, o Mouro; Benedito, o Negro; Benedito, o Africano e Benedito de Palermo. Dentre seus principais atributos, podem aparecer: coração jorrando sete gotas de sangue (sete virtudes); coração na mão e rasgo no hábito indicando o local de seu coração; menino Jesus nos braços; cruz na mão e coração inflamado ou uma ferramenta de lavrador. Em Portugal, assim como no Brasil, Benedito é tradicionalmente venerado como o santo dos negros, por sua relação ao período de escravidão e suas raízes africanas e está relacionado à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Celebrado pela comunidade católica em 03 de abril e 13 de maio, a festa é realizada em homenagem e devoção ao santo considerado padroeiro dos afrodescendentes, cozinheiros e donas de casa.

Análise da técnica construtiva

Suporte Imagem de vulto em madeira entalhada, composta por três blocos encaixados: um bloco principal para a imagem, um bloco para a base e um bloco para o menino.

Camada pictóricaComposta por base de preparação branca, tinta a óleo representando a carnação e têmpera no panejamento e base, douramento nas bordas, camada de proteção transparente.

Análise do estado de conservação

Suporte – Encontra-se em bom estado de conservação, com perda total dos membros do menino: braços e pernas.

Camada pictórica – Sujidade generalizada, superficial e aderida, com bastante presença de poeira, ocasionada possivelmente pela passagem do tempo e forma de acondicionamento. Pequenas abrasões pontualizadas, causadas por impactos. Perda generalizada da policromia, principalmente no planejamento (Fig. 3 e 4), com desprendimento ativo, provavelmente causado por encolagem insuficiente do suporte ou variações climáticas ao longo do tempo. A carnação da imagem também apresenta perdas significativas e, embora não comprometa a estrutura (Fig. 5), prejudica bastante sua leitura, já que as cores da policromia e base de preparação aparente divergem bastante, causando ruído visual.           


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Fig. 3 e 4. Detalhe do panejamento com grande perda de policromia, frente e verso (fonte: fotos da autora, 2020).

Fig. 5. Detalhe da perda de policromia na carnação, com base de preparação aparente (fonte: foto da autora, 2020).

Proposta de tratamento

Suporte – Em conjunto com o proprietário da imagem, optou-se por não fazer a complementação de suporte faltante, localizada nos braços e pernas da imagem criança, para que a passagem do tempo esteja presente na imagem, assim como em toda coleção particular a que ela pertence. Ainda sobre o suporte aparente, devido à grande perda de policromia do panejamento, a opção foi de tratá-lo esteticamente, para mantê-lo à mostra.

Camada pictórica – Antes de qualquer intervenção estética nessa área, é fundamental cuidar de sua estrutura, portanto a proposta é de fixação da policromia em desprendimento, em seguida prosseguir com a higienização química em toda a policromia. Em relação à apresentação estética, a proposta se deu de forma distinta entre carnação e panejamento, já que cada uma apresentava níveis diferentes de degradação. Nesse sentido, baseada em critérios técnicos estabelecidos por Brandi, a decisão foi de manter a policromia restante no panejamento da imagem sem a complementação total desta área, por se tratar de mais de 50% de perda.

Tratamento realizado

Suporte – Como o suporte estava estabilizado e foi decidido por não fazer complementações, seu tratamento se deu com uma higienização mecânica simples com trincha e apresentação estética simultaneamente com o tratamento da camada pictórica, por meio da reintegração cromática – que será descrito junto a esse tratamento – e aplicação de camada de proteção.

Camada pictórica – Com desprendimento de policromia ativo, o primeiro procedimento foi realizado de forma emergencial, com a fixação da camada em desprendimento, em duas etapas, com um adesivo natural e outro sintético, para garantir a estabilidade da policromia, já que a decisão foi de não complementar toda a camada pictórica perdida, inclusive sem nivelamento de borda. 

Em seguida, a higienização mecânica simples, que geralmente é a primeira etapa em um tratamento, porém, o desprendimento da camada pictórica impediu essa prática e para evitar que houvesse mais desprendimentos, a fixação da camada se procedeu preliminarmente. A higienização química não apenas remove parcialmente a sujidade aderida, como neste caso, mas serviu também para remover resquícios do adesivo utilizado para a fixação. Esta se procedeu com produto específico de base aquosa, após testes de solubilidade, e se mostrou eficaz em toda a superfície policromada: carnação, panejamento e marmorizado. Após a higienização é necessário preparar a camada pictórica, no sentido de nivelar as áreas de perda para o próximo procedimento. Nesta etapa optou-se por massa branca de base acrílica para nivelamento das lacunas apenas no rosto e base da imagem (Fig. 6), onde havia pequenas perdas pontualizadas.

Fig. 6. Nivelamento das lacunas na área de carnação (fonte: foto da autora, 2020).

Para se criar uma camada de isolamento e saturação, foi aplicada uma demão de verniz à base de resina natural como preparação para o seguinte procedimento de reintegração das cores.

Conforme já esclarecido, o que conduziu o tratamento da imagem em questão, foi a relação estética x histórica, ou seja, de um lado o panejamento apresentava área grande de perda, em que era preciso manter a passagem do tempo; e de outro, o rosto da imagem, seu ponto focal, necessitava de uma intervenção estética maior, para devolver sua leitura integralmente. Nesse sentido, o critério adotado para a reintegração cromática foi fundamental para se chegar a um resultado satisfatório que permitisse a fruição do objeto na sua totalidade. No rosto da imagem foram adotadas as técnicas de velatura, seleção cromática e pontilhismo (Fig. 7 e 8), com tintas específicas para restauro à base de resina natural.

Fig. 7 e 8. Detalhes da velatura e reintegração cromática em pontilhismo (fonte: fotos da autora, 2020).

Fig. 7 e 8. Detalhes da velatura e reintegração cromática em pontilhismo (fonte: fotos da autora, 2020).

Em seguida, para a reintegração do panejamento, já que não houve nivelamento de lacunas nem de bordas, a reintegração foi pontualizada na policromia com uma apresentação estética na área da madeira aparente (Fig. 9 e 10), para amenizar a leitura fragmentada que se tinha em decorrência das perdas e fornecer uma leitura fluida e sem ruídos visuais, mesmo com a manutenção das perdas.

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Fig. 9 e 10. Detalhe do panejamento após reintegração cromática e apresentação estética (fonte: fotos da autora, 2020).

Utilizando como parâmetro a definição de Brandi citada no início deste artigo técnico, pode-se concluir que, as instâncias histórica e estética podem ser preservadas numa mesma obra, de maneiras diferentes. O que dá a diretriz do critério a ser utilizado é o resultado estético que se almeja, sempre levando em consideração a permanência da passagem do tempo pela obra e mínima intervenção possível, com o máximo de benefício (Fig. 11 e 12). Por fim, sua função é um item relevante, uma vez que se deve ter consciência de que obras museais, particulares ou religiosas, têm conotações e usos distintos.

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Fig. 11 e 12. Imagem de São Benedito após o restauro, frente e verso (fonte: fotos da autora, 2020).


Notas

[1] QUITES, Maria Regina Emery. Esculturas devocionais: reflexões sobre critérios de conservação-restauração. Belo Horizonte: São Jerônimo, 2019, p. 193-203.

[2] BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kühl. Cotia, SP: Ateliê, 2004, p. 33.

[3] RAMOS, Adriano Reis. Aspectos estilísticos da estatuária religiosa no século XVIII em Minas Gerais. In Revista Barroco nº 17, 1996, p. 26


Referências

COELHO, Beatriz (org.). Devoção e Arte: Imaginária religiosa em Minas Gerais. 1 ed. São Paulo: Edusp, 2017.

CURY, Isabelle (org.). Cartas patrimoniais. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Brasil). 2ª ed. Rio de Janeiro: Iphan, 2000.

LORÊDO, Wanda Martins. Iconografia religiosa: Dicionário Prático de Identificação. Rio de Janeiro: Pluri, 2002.


Flávia Andrea Siqueira Dias

Especialista lato sensu em História da Arte pelo Centro Universitário Claretiano. Técnica em Conservação e Restauro de Bens Culturais pela Fundação de Arte de Ouro Preto – FAOP. Possui Licenciatura Plena em Educação Artística pela Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG – Escola Guignard. Atuou como professora nos cursos técnicos da FAOP e do Templo da Arte (CTTA), e como restauradora nas instituições Museu de Arte Sacra de São Paulo, Grupo Oficina de Restauro, Inhotim e Palácio das Artes. Atualmente ministra cursos livres e possui ateliê próprio. E-mail: diasflaviaas@gmail.com


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