Memória do lugar: estudo de caso da Igreja de Santo Antônio, Poços de Caldas, Minas Gerais

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I Gabriela Cristina de Freitas Silva e Mariana Queiroz Fornari I

O presente artigo analisará a situação urbana da Igreja de Santo Antônio, patrimônio cultural da cidade de Poços de Caldas, Minas Gerais, à luz da fenomenologia. O imóvel possui relevância histórica por tratar-se da primeira Igreja Matriz construída em 1882, na área central do município. Devido às consequências do adensamento urbano, a edificação apresenta problemas estruturais e comprometimento de sua visibilidade, ambos decorrentes da implantação invasiva de construções vizinhas. A conclusão do trabalho busca entender a permanência e a relevância da Igreja de Santo Antônio em meio ao urbano, ainda que sem uma Zona de Amortecimento ou destaque, e sua importância para a memória afetiva local.

Tornar um bem Patrimônio Cultural significa atribuir-lhe valor de herança social e relevância histórica, valores intimamente ligados às memórias de seus usuários. A preservação e conservação de um bem vai além da materialidade que é vista, relaciona-se à interação do sujeito com o espaço, ao respeito de sua história e ao reconhecimento daquele local como seu, ou seja, à noção e ao sentimento de pertencer. Atrelado à proteção de bens históricos, o conceito de Zona de Amortecimento mostra-se um forte instrumento para a preservação dessa dimensão espacial. Visto que se trata de uma delimitação para além do entorno ou limite de um bem tombado, pode ser uma forma de auxiliar na redução de impactos sobre os imóveis protegidos.

Diferente da maioria das cidades mineiras, Poços de Caldas não se desenvolveu a partir de um núcleo religioso, mas, sim, consolidou-se como cidade em consequência do termalismo. Para o município, a construção da primeira Igreja Matriz ocorreu em 1881, com a Igreja de Santo Antônio [1]. Contudo, devido ao crescimento urbano central, o local tornou-se imperceptível em meio às demais edificações, acarretando-lhe diversos problemas. Nesse contexto, o presente artigo busca compreender a permanência desse bem em meio à malha urbana, o qual resistiu no decorrer do tempo ao sufocamento oriundo de implantações vizinhas, visto que foi tombado 100 anos após sua construção. A ausência de uma zona de amortecimento após o perímetro da Igreja comprometeu a visibilidade do imóvel e motivou questões atreladas ao desaparecimento da memória local, à perda do genius loci e do sentimento de pertencimento por parte dos cidadãos.

Genius loci é um conceito romano para expressar a ideia de que todo lugar tem um espírito guardião, que acompanha as pessoas e os lugares do nascimento à morte. A experiência fenomenológica de ver pela primeira vez, identificar e perceber o espaço, é estudada na arquitetura por Christian Norberg-Schulz, que fala sobre como a identificação é a base do pertencer [2]. Contudo, as sociedades modernas concentram sua atenção na função prática do lugar em detrimento da identificação pessoal, sentimento esse que faz com que as pessoas se sintam pertencentes a um lugar. Se o homem não sente pertencimento ao lugar em que vive ou não o frequenta, contribui para a degradação e ruptura do ambiente. Neste contexto, questiona-se como a invisibilidade da Igreja de Santo Antônio pode afetar a percepção das pessoas em relação ao lugar e busca-se compreender a relação entre contexto, percepção e memória, indagando sobre as consequências do intenso crescimento urbano no entorno de um bem cultural.

Transformação do espaço e memória local

A origem do traçado urbano de Poços de Caldas remonta às principais estâncias termais da época, onde visitantes buscavam a cura para suas enfermidades [3]. O procedimento não se limitava ao uso das águas sulfurosas, compondo-se de passeios a céu aberto e da excepcional ambiência do município. Portanto, apesar de a cidade não ter tradição religiosa, existe nela um inconsciente coletivo fiel à questão da cura que, de certa forma, acredita e valoriza o processo, tendo em vista que a eficácia dos tratamentos termais nunca fora comprovada cientificamente. A relevância dos imóveis e paisagens que se encontram nesta área vai além de sua importância material enquanto patrimônios arquitetônicos, compondo esse imaginário que ainda permanece na cidade.

A Igreja de Santo Antônio está inserida nessa ambiência da área central. Localizada nas imediações do Complexo Hidrotermal e Hoteleiro, a antiga Igreja Bom Jesus da Cana Verde simboliza a materialização da resistência em meio às diversas mudanças de seu entorno, visto que é a edificação mais antiga ainda presente no centro da cidade. Construída no século XVIII, pela devoção portuguesa ao Bom Jesus da Cana Verde, o local resistiu à imigração italiana do século XIX e passou-se a chamar “Santo Antônio”, o “Santo Protetor das Terras” [4]. O inconsciente religioso associado ao edifício foi um forte motivo para não ser demolido, mas sim adaptado.

A urbanização da área central transformou a Rua São Paulo, onde está situada a Igreja de Santo Antônio. O leito carroçável foi pavimentado, as antigas casas e áreas de cultivo deram lugar ao comércio e aos serviços e amplos calçamentos foram planejados para compor o eixo arborizado.

Fig.1. Vista central, provavelmente na década de 1940. Em vermelho, o Complexo Hidrotermal e Hoteleiro; em amarelo, a Igreja de Santo Antônio; e com a seta em azul, a localização da rua São Paulo (Fonte: Acervo da Divisão de Patrimônio Construído e Tombamento com edição autoral, 2021).

Anteriormente vizinha a singelas residências, a Igreja em questão agora está em meio a hotéis e árvores, sendo dificilmente notada. A surpresa de encontrá-la é um contraste especial, um sentimento de paz e silêncio em meio ao caos e diante das velocidades do urbano. Quem a vê como ambiente apertado, pequeno e sem interesse, não enxerga seu verdadeiro valor, não a percebe como um remanescente do inconsciente urbano intrínseco daquela área.

Fig. 2. Comparativo entre a visibilidade da Igreja de Santo Antônio entre o final do séc. XIX e início do séc. XX em relação aos dias atuais. (Fonte: Acervo pessoal do professor Antonio Carlos Lorette. Google Earth Pro, 2021. Edição autoral, 2021).

Christian Norberg Schulz aborda o conceito de Genius Loci como um espírito guardião que dá vida e essência às coisas [5]. Esse é resultado do processo de formação e consolidação de um espaço, agregando tudo e todos que o fizeram. Proteger o genius loci implica manter sua essência em meio à nova urbanização. A Igreja faz parte das concretizações dessa essência emanada pela área central. Seu tombamento, em 1992, justifica-se muito além do viés arquitetônico e histórico, relacionando-se à conservação de uma memória afetiva composta por camadas de períodos históricos, que continuam vencendo os desafios da contemporaneidade.

Não foi encontrada uma data exata de instalação da rede de hotéis Dan Inn ao lado da Igreja. Porém, por meio do estudo de iconografias antigas, nota-se que a implantação invasiva de edificações vizinhas à igreja ocorreu, provavelmente, no final do século XX. O impacto dessa proximidade prejudica a qualidade tanto da igreja como dessas novas edificações, além de restringir a percepção do patrimônio.

É uma agradável surpresa andar pela rua São Paulo e se deparar com a porta da igreja aberta. Adentrar naquele espaço sagrado é sentir a carga de tempo e de memória. É sujeitar-se ao silêncio transcendental, à anulação dos ruídos da cidade, transmitindo leveza e paz à alma. É um verdadeiro refúgio em meio ao caos. Porém, quando sua porta está fechada, torna-se quase imperceptível, o sagrado esquecido no urbano. O campanário não costuma tocar com frequência e a copa das árvores impede a nítida visualização de sua torre e interfere na visualização pelo outro lado da rua.

Fig. 3. Situação atual da Igreja, evidenciando a proximidade entre edificações (Fonte: Acervo pessoal de Mariana Fornari, 2021).

A situação do imóvel é evidente para os cidadãos e pode ser sentida por todos que tenham memória afetiva com o espaço, impactando no sentimento de pertencimento destes para com a cidade. Cervini, Ferreira e Pereira discorrem que os significados da cidade são resultado das interações do sujeito com o espaço, compondo, por sua vez, a memória do lugar [6]. Portanto, ao não se evidenciar o patrimônio, perde-se muito além da materialidade do edifício em si. Quando um lugar não resiste às mudanças do tempo, o testemunho da memória de seus cidadãos é perdido.

A permanência da Igreja no urbano

Aldo Rossi discorre sobre a posterioridade do conceito de planejamento urbano com relação à arquitetura na formação das cidades [7]. Por isso, as principais discussões sobre um fato urbano são a individualidade, o lócus, o desenho e a memória. A forma física da cidade altera-se no decorrer dos anos, mas a presença do monumento vai contra esse processo dinâmico. Tal qual outros bens culturais, a Igreja de Santo Antônio sobreviveu sem ter sido demolida, sobreposta pelo tempo, reformas e processos de restauro. Porém, o fato desta sobreposição se iniciar antes do reconhecimento daquele espaço enquanto Patrimônio Cultural, torna sua história tão relevante.

As políticas patrimoniais ganharam força e representatividade em Poços de Caldas na década de 1980 com a criação da antiga Diretoria do Patrimônio Histórico, Turístico e Artístico Municipal (DPHTAM) [8] e, apenas em 1992, 10 anos após a criação do DPHTAM, a Igreja de Santo Antônio foi reconhecida como patrimônio cultural da cidade, resistindo durante 110 anos sem qualquer proteção legal [9]. Sua sobrevivência em meio ao desenvolvimento urbano evidencia como seu significado está atrelado a um inconsciente urbano coletivo. Apesar de ter sido apagada da paisagem, nunca foi apagada da memória. É essa permanência que a faz existir, que de fato justifica sua importância.

Por meio de assimilação com a análise feita por Cícero Jucier Costa Lima acerca da Intuição do Instante Poético de Gaston Bachelard, percebe-se que a Igreja de Santo Antônio, pequena diante da área central, produz a mesma experiência que os espaços descritos por Bachelard no conceito de Casa das Coisas, como um armário, um cofre, uma gaveta ou uma concha [10]. Espaços habitáveis, protetores e produtores de devaneios. No início, a grande construção em meio às pequenas casas e espaços da Vila, com o tempo deixou de ser destaque em meio aos edifícios da cidade e passou a ser a miniatura. Frequentar a miniatura nos causa a mesma experiência de adentrar a Casa das Coisas, a sensação de abrigo e proteção. Por permitir o devaneio e a intimidade, a miniatura evidencia o que há de grande no pequeno.

Contudo, para a manutenção deste sentimento de pertencimento atrelado à relevância histórica e à sensação de intimidade com a cidade, é evidente que a Igreja precisa de maior visibilidade. Com isso, o presente estudo apresenta alternativas que buscam evidenciar o imóvel em relação ao seu espaço, utilizando-se de estratégias que não interfiram no entorno consolidado, tais como: sinalizações e placas informativas; realização de eventos religiosos; retorno das festividades a Santo Antônio; iluminação externa adequada; e inserção da Igreja no projeto de decoração natalina, dado o destaque que a Rua São Paulo apresenta nesse período. Além dessas alternativas, deve-se considerar que a Igreja possui projeto de restauro aprovado pelos órgãos competentes, com previsão de início para o presente ano.

Dentre as propostas, o projeto de restauro com autoria do escritório Lorette Associados – Arquitetura e Urbanismo propõe alterações pontuais na arborização da rua São Paulo e criação de uma faixa elevada em frente ao local. As intervenções reforçarão a presença do bem cultural e auxiliarão na sua preservação e visibilidade [11].

Fig. 4. Imagem virtual do projeto, evidenciando a visualização a nível do pedestre, para o exterior da Igreja de Santo Antônio (Fonte: Caderno de Restauração do projeto realizado pelo escritório Lorette Associados – Arquitetura e Urbanismo, 2021).

Visto que se trata de uma construção diferente das demais, o destaque reforçará a permanência do patrimônio no urbano e influenciará positivamente na capacidade de subjetividade das pessoas que por ali transitam. Além disso, a importância do restauro não refletirá apenas no imaginário da cidade para com seus moradores, mas também impactará como um agente promotor do turismo e comércio local, importantes pilares econômicos do município.

Considerações finais

A fenomenologia fundamenta-se no conhecimento a partir da consciência e da relação estabelecida pelo indivíduo com o meio. Permite inter-relacionar a primeira impressão sobre algo ou a intuição acerca do espaço, com a relação que o indivíduo tem ou terá. Com esse estudo, o presente artigo conclui que a Igreja de Santo Antônio permanece em meio ao urbano não apenas por seu valor como Patrimônio Cultural, mas sim, por ser um lugar simbólico. Tal qual a cidade de Poços de Caldas, que cresceu e se desenvolveu com o simbolismo das águas termais, a Igreja resiste por ser um lugar que desperta subjetividade nas pessoas, sendo responsável pelo sentimento de pertencer. Reconhecer-se enquanto pertencente a um espaço não se restringe ao viver ou crescer ali; mas perpassa, também, uma identificação individual e subjetiva, que pode ser acessada pela memória do lugar.

Fig. 5. Comemoração ao dia de Santo Antônio, 2016 (Fonte: <http://pocoscom.com/santo-antonio-em-grande-estilo/> Acesso 17 jun. 2021).

Seguindo os princípios de Bachelard, a Igreja de Santo Antônio é um local silencioso, seguro e que proporciona o aconchego, favorecendo o devaneio e despertando a subjetividade de seus fiéis e visitantes. Apesar da ausência de uma Zona de Amortecimento, o que colabora para a experiência de miniatura, o projeto de restauro, se implantado, promoverá maior visibilidade a um bem peculiar da cidade, resguardando a experiência do sagrado e da relação intimista do fiel para com ele. Além disso, reforçará a ideia de preservação do patrimônio e proporcionará mais um espaço de visitação, com enfoque no turismo religioso.

Fig. 6. Imagem virtual do projeto, evidenciando o exterior da Igreja de Santo Antônio (Fonte: Caderno de Restauração do projeto realizado pelo escritório Lorette Associados – Arquitetura e Urbanismo, 2021).


Notas

[1] PREFEITURA MUNICIPAL DE POÇOS DE CALDAS, Secretaria de Planejamento, Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente – Divisão de Patrimônio Construído e Tombamento. Dossiê de Tombamento da Igreja Santo Antônio.  Divisão de Patrimônio Construído e Tombamento, Poços de Caldas. 2003. Acervo digital.

[2] NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). Trad. Vera Perreira. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

[3] DIAS, Luciana Valin Gonçalves. Estudo da Morfologia Urbana aplicada à região central de Poços de Caldas. Dissertação (Mestrado em Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, 2016.

[4] LORETTE, Antônio Carlos; ROSALINO, Alisson Tavares. Caderno de Projeto: Restauração da Igreja Santo Antônio, Poços de Caldas/MG. Lorette Associados, São João da Boa Vista. 2020. Acervo digital.

[5] NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965-1995). Trad. Vera Perreira. 2. ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

[6] CERVINI, Esther Aparecida; FERREIRA, Jane Victal; PEREIRA, Renata Baesso. Espaços de Humanização: Simbolismo e Apropriação no Parque José Affonso Junqueira. In: Sessões temáticas 7 do evento XVII Enanpur, São Paulo, 2017.

[7] ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. Trad. Eduardo Brandão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

[8] POÇOS DE CALDAS. Lei nº 3.218, de 12 de abril de 1982. Dispõe sobre a criação da Diretoria do Patrimônio Histórico, Turístico e Artístico Municipal – DPHTAM. Poços de Caldas, Minas Gerais, p. 1-5, 12 abr. 1982.

[9] PREFEITURA MUNICIPAL DE POÇOS DE CALDAS, Secretaria de Planejamento, Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente – Divisão de Patrimônio Construído e Tombamento. Dossiê de Tombamento da Igreja Santo Antônio.  Divisão de Patrimônio Construído e Tombamento, Poços de Caldas. 2003. Acervo digital.

[10] LIMA, Cícero Jucier Costa. A intuição do instante poético de Gaston Bachelard em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB, 2018.

[11] LORETTE, Antônio Carlos; ROSALINO, Alisson Tavares. Caderno de Projeto: Restauração da Igreja Santo Antônio, Poços de Caldas/MG. Lorette Associados, São João da Boa Vista. 2020. Acervo digital.


Gabriela Cristina de Freitas Silva

Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela PUC Minas, campus Poços de Caldas, formada em dezembro de 2021. E-mail: contatogabrielacfreitas@gmail.com

Mariana Queiroz Fornari

Bacharel em Arquitetura e Urbanismo pela PUC Minas, campus Poços de Caldas, formada em junho de 2022. E-mail: marianaqueirozfornari@gmail.com


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