Conhecer o Brasil e o sentido do patrimônio pelo Parque Nacional da Serra da Capivara

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| Deborah Neves |

Em dezembro de 1997, aos 13 anos, embarquei numa viagem entre São Paulo e a pequena Corrente, cidade do interior do Piauí, na primeira grande viagem que faria, e sem minha família. Modo de dizer, porque na verdade viajava com a família da minha melhor amiga, que sempre chamei de irmã, Cibelle. A bordo de um ônibus convencional, fui passar as férias – incluindo Natal e Ano Novo – com a família Cavalcanti, que ali me ensinou tanto que ainda me surpreendo ao constatar. A mais recente foi compreender a importância de ter atravessado o país em um ônibus de viagem comum e com pouco dinheiro para conhecer uma cidade que eu só sabia da existência por causa de Cibelle, que sempre passava férias por lá. 

Em dezembro de 2020, decidi que passaria minhas férias de 2021 finalizando um projeto iniciado em março de 2018: conhecer o Rio São Francisco no Nordeste, desembarcando em Petrolina, última cidade a oeste do Pernambuco e incluí no roteiro a Serra da Capivara, distante pouco mais de 300km. Naquele momento eu experimentava a esperança de que a pandemia estava arrefecendo e que em pouco tempo poderíamos viver sem tanto medo. Nada mais errado. Tive receio do cancelamento das passagens ou que o parque estivesse fechado. Vivia um momento muito intenso no trabalho e ansiava pelo momento de me desligar. No caminho para o aeroporto, cruzei com o a construção do maior prédio da cidade no bairro do Tatuapé e seus desnecessários 172m de altura.

E por que eu faço esse percurso contando de coisas tão aparentemente desconexas em uma revista que trata de patrimônio cultural? Porque este texto é sobre compreender o que é patrimônio cultural, e a síntese é o Parque Nacional da Serra da Capivara. Não sei quando ouvi a primeira vez sobre o maior parque de pinturas rupestres do mundo, mas desde que soube, eu quis conhecer. O nome Niède Guidon se tornou conhecido para mim a ponto de eu só citar o primeiro, como se eu fosse íntima de uma das maiores arqueólogas da história. 

O caminho entre Petrolina e a Serra da Capivara reservou paisagens deslumbrantes da caatinga. Eu conhecia o sertão em períodos de verão – tempo de chuva – e não fazia ideia de que o início do inverno – o tempo “seco” – era de uma beleza ainda mais peculiar. As altas temperaturas permanecem, mas o azul do céu é algo intenso a ponto de me sentir em Paris, Texas ou Bagdad Café. Lembrei-me do meu encanto com o deserto de Nevada e a barragem Hoover Dam ter sido muito menos empolgante pelo fato simples de 9 meses antes eu ter conhecido Paulo Afonso (BA) e a Usina da Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a Chesf – patrimônio da Eletrobrás, prestes a ser privatizado. 

Wim Wenders e Percy Adlon, dois cineastas alemães que nos anos 1980 retrataram os desertos dos Estados Unidos, construíram um imaginário que eu reconheci no sertão Pernambucano-Piauiense. Um céu azul anil com poucas nuvens tão distantes que pareciam miragem, um sol para cada um, o ocre da terra que se mimetizava com o dourado das folhas da vegetação que transiciona entre o tempo úmido e o seco. Montanhas baixas no horizonte, poucas vezes atravessadas, pequenos vilarejos com casas de uma porta e janela e altura de não mais que 2,5 metros. No índigo céu reinavam os carcarás imponentes – pega, mata e come! Nenhum dos diretores previu as cabras que reinam nas beiras da estrada e que sempre deixam o ato de dirigir menos tranquilo pelas intermináveis e muito bem conservadas retas da BR-235. Tampouco imaginaram a população de Dirceu Arcoverde que ocupa as pistas simples da BR-324 ao cair do sol para correr e caminhar usando máscaras para se prevenir da Covid. Afinal, só o sertão do Brasil tem essa gente potente e dona de si que faz o que precisa ser feito.

Cheguei a Cel. José Dias, cidade base para visitar o Parque Nacional, quando já era noite. A pequena vila em que fiquei, com poucas casas, permitiu que toda a imensidão do céu negro se revelasse como adornado por impressionantes de milhões de estrelas – um espetáculo público e gratuito, mas que não tem preço. Pela manhã, descortinei o que estava no entorno invisível à profunda noite. A estrada, as cabras, a vegetação em transição, e a indefectível chapada ao fundo: era a Serra da Capivara (Fig.1).

Fig.1. Estrada de acesso ao Parque Nacional Serra da Capivara, no bairro de Vargem Grande. Foto: Deborah Neves, 2021.

Eduardo Coelho era o guia de turismo que iria apresentar tudo que podia em 3 dias. E ele preparou o que o parque tinha de melhor para oferecer em meio à pandemia, que forçou seu fechamento por seis meses, e quando de sua reabertura com o acesso apenas a parte dos sítios. No encontro com Edu, ele usava uma máscara estampada com a reprodução das pinturas e começou a contar como o Parque faz parte da vida das pessoas, em especial as mulheres, que moram em Cel. José Dias e o quanto foram transformadas com a chegada de Niède Guidon e a instituição do Parque Nacional em 1979.  Guidon, que já relatou aqui a importância e todos os enormes desafios que estão sendo impostos ao parque desde, pelo menos, 2016, primeiro adquiriu terras com o próprio dinheiro para preservar os sítios que conheceu depois que viu fotografias apresentadas por um ex-morador da região. E quando conseguiu a criação do Parque, estabeleceu um método de trabalho com a comunidade que é um exemplo a todos que trabalham com o patrimônio cultural. 

Edu, o guia, nos contou que foi por escolha e determinação de Niède que todas as portarias do parque têm mulheres da região trabalhando. Por cada uma das portarias que passamos, fomos recebidos com sorrisos, alegria, curiosidade em saber sobre nós e também disposição em nos contar sobre o trabalho no Parque e o cotidiano. Tudo muito limpo, organizado, com método – todos recebem um formulário para avaliar as instalações do Parque e orientados a entregar ao final do dia – e a oferta, sempre aceita, de um café fresquinho. Ouvimos as histórias dessas mulheres que já cruzaram com onças, enfrentaram a seca e as dificuldades de morar no sertão. Mas também ouvimos e sentimos o carinho e o apreço de cada uma delas que trabalham lá e defendem o espaço como a própria casa, vendem miniaturas dos animais talhadas em madeira e panos de prato bordados com temas das pinturas rupestres. O souvenir do Parque tem a essência e o saber imaterial de quem mora e gosta do lugar.

O primeiro roteiro foi a Trilha do Hombu e o contato com os primeiros sítios arqueológicos e rupestres a serem pesquisados pela equipe de Niède Guidon (Fig.2). O destaque cabe para a imensidão das serras e chapadas, desbravadas por meio de trilhas muito bem conservadas, os paredões de rocha sedimentares que nos remetem ao que um dia também foi mar.

Fig.2. Pinturas no Sítio das Emas. Foto: Deborah Neves, 2021.

Mas nada substitui a emoção de ouvir Edu nos contar a estória sobre o Xique-xique, um dos cactos que habitam a região, e a relação que as pessoas construíram com ele. Conta Edu que em consequência da histórica seca de 1932, muitas crianças nunca tinham presenciado chuva na vida e mesmo quem viveu para ver chover mal se lembrava de como era. Então, com toda a criatividade e sensibilidade de quem sabe o que é amar, o povo do sertão piauiense descobriu que o cacto fazia chover. Em silêncio, observamos Edu deslizar seus dedos pelos longos espinhos do cacto (Fig.3); esse contato entre produziu o som que remete à chuva. Não houve como segurar a emoção ao sentir também, em meio à trilha sob o sol quente, o conforto de ouvir a água mesmo sem que fosse a chuva. O sentimento criou uma conexão com o meio que nos cercava e com as pessoas que nem conhecemos. Água, o recurso fundamental para nossa vida e que vertia de nossos olhos.

Fig.3. Edu Coelho fazendo o Xique-xique chover. Foto: Larissa Melo, 2021.

Ainda tocados pela experiência que nenhuma descrição é capaz de remeter, continuamos a caminhada por entre a vegetação da caatinga, maravilhados com as dezenas de coroas-de-frade ao longo do caminho, chegamos ao topo de uma das chapadas que presenteou com vista panorâmica para o Vale do São Francisco de tirar o fôlego (Fig.4).

Fig.4. Vista a partir do topo, na trilha do Hombu. Foto: Deborah Neves, 2021.

Por mais uma miríade de pinturas que representam o cotidiano de nossos antepassados, encontramos os mocós, espécie endêmica da Serra da Capivara que ocupa as fendas e pequenos abrigos formados nas rochas. Os mocós são muito ágeis e parecem pequenas capivaras, que já habitaram a região no tempo em que também havia mata atlântica por lá. Embora muito simpáticos, os mocós hoje se constituem um problema no Parque, que sem recursos para manutenção de equipe de conservação, corre risco de perder parte das pinturas em função da reação entre fezes e urina dos animais com as rochas. 

Deslumbrados com toda a experiência, paramos para almoçar na Pousada e Restaurante Cerâmica Serra da Capivara, outro empreendimento de Niède Guidon. A partir da disponibilidade de três tipos de argila na região, foi feita uma combinação ideal para a fabricação de peças de cerâmica que vão desde pratos e copos até panelas, filtros, vasos e esculturas. Tudo adornado com motivos presentes nas pinturas dos sítios rupestres da Serra. A cerâmica emprega mais de 100 pessoas da região e é fonte de renda para as famílias. As peças são vendidas com desconto em sua loja ou pelo site, além de fazer parte da linha de grandes lojas de decoração do Brasil. Durante a pausa longa de mais de 3 horas entre meio dia e 15h para almoçar, recuperar as energias e esperar o sol dar uma trégua, equipei minha casa com o que tem de mais belo produzido pelas mãos de cada trabalhador e trabalhadora da Cerâmica, além de desfrutar de um farto e saboroso almoço.

Recuperados, rumamos à entrada do circuito Baixão das Andorinhas. Mais uma das vistas inesquecíveis, que possibilita ver a Serra Vermelha se destacando entre as serras cinzas de arenito desse circuito (Fig.5); e recentemente, vi esta imagem decorar o salão de entrada de um edifício comercial em São Paulo, me remetendo a uma das mais lindas experiências da vida. É deslumbrante ver a rica vegetação contrastar com o cinza da rocha e o azul do céu de inverno sertanejo. Um pouco mais adiante está a serra que batiza o circuito: baixão das andorinhas. Por volta das 17h, todo dia, centenas desses pássaros se reúnem em um balé fluído para nosso deleite, sentados à beira dos abismos que não assustam. Enquanto dançam no ar com leveza e destreza é possível ouvir seu alvoroço seguido de silêncio; é nesse instante que se ouve o ar sendo rasgado pelo barulho de centenas de pares de asas recolhidas num mergulho livre rumo ao fundo do vale pleno de árvores. É um espetáculo sensorial pleno diante de um céu degradê com tons de azul e amarelo associados ao cinza das montanhas e o verde das árvores, enquanto as andorinhas encerram fechando as cortinas do dia. É hora de se recolher.

Fig.5. Vista da Serra Vermelha a partir do Circuito Baixão das Andorinhas. Foto: Deborah Neves, 2021.

O tipo da formação de granitos favoreceu que vento e chuva esculpissem nas serras abrigos que favoreceram a ocupação e permanência humana e também animal. Sua coloração que vai do tom terroso ao rosa quando observado de perto, traz um dos mais belos contrastes entre o já descrito céu e os monumentos naturais que a natureza tratou de construir com primazia e harmonia, como na Pedra Furada. Nos abrigos e boqueirões destas serras nossos antepassados fizeram suas casas, aldeias e deixaram o cotidiano registrado por meio de pinturas. Não há certezas sobre o que está ali representado, já que a cultura oral se perdeu com o tempo; os registros, portanto, nos permitem a liberdade de imaginação: festas, cenas de caçada, sexo, animais que dividiam o espaço – e aí se inclui a megafauna.

A megafauna está representada no Museu da Natureza, construído muito próximo da portaria de Cel. José Dias, mas estava fechado em função da pandemia. O edifício, construído em terreno em cota mais alta que a estrada, se mimetiza na paisagem e seu porte passa despercebido. A arq. Elizabete Buco Ano, mais uma mulher do Parque, soube expressar sua criatividade, atender às necessidades da instituição sem negar ou se destacar de seu entorno. A harmonia com a paisagem é impressionante e pode ser conferida em uma visada panorâmica a partir do sítio do Boqueirão (Fig.6).

Fig.6. Entardecer a partir do sítio do Boqueirão, com o Museu integrado à paisagem. Foto: Deborah Neves.

A arquitetura também se faz presente na Praça São Pedro, em Cel. José Dias. Fileiras de casas simples, mas bem acabadas criam a atmosfera que acolhe as crianças que brincam no fim de tarde (Fig.7) enquanto os adultos sentam à porta para aproveitar a brisa e o céu rosa do fim de tarde (Fig.8). É uma sensação de tranquilidade e de que a vida precisa de um ritmo cadenciado para ser vivida e apreciada.

Fig.7. Crianças brincando na Praça São Pedro. Foto: Deborah Neves, 2021.

Fig.8. Adultos aproveitando o fim de tarde. Foto: Deborah Neves, 2021.

A atração mais desejada pela maioria dos visitantes é a Pedra Furada (Fig.9), presente no imaginário e nas redes sociais. E justamente ali, Niède decidiu criar um palco tendo como teto o céu do Piauí, abrindo espaço para apresentações artísticas humanas que se completam com a paisagem que a natureza nos presenteou.

Fig.9. Pedra Furada. Foto: Deborah Neves, 2021.

O monumento natural mais impressionante é a Panorâmica das Mangueiras (Fig.10). Nunca havia visto a formação rochosa conglomerado, que é composta por pequenas rochas sedimentares visíveis a olho nu, dando a impressão que estamos no fundo do mar rodeado de corais por sua aparência porosa e rugosa. Apelidei este local de “Grécia”, em virtude das rochas quase brancas cuja formação alude a ocupações das encostas; o Piauí, no entanto, é muito mais antigo e muito menos conhecido. Eu poderia ficar ali por horas, sem que nem mesmo o vigor do sol me demovesse da ideia.

Fig.10. Serra da Panorâmica das Mangueiras. Foto: Deborah Neves, 2021.

E por fim, a melhor experiência: sítio do Boqueirão – um dos mais antigos encontrados e mais pesquisados (Fig.11). A visita foi realizada no período noturno, quando refletores são acesos para iluminar não apenas o espaço físico, mas numa metáfora do que é o conhecimento: uma luz para a humanidade. Ali, as pesquisas arqueológicas comandadas por Niède Guidon comprovaram a ocupação humana com mais de 50 mil anos, questionando a teoria de pesquisadores dos Estados Unidos sobre o estreito de Behring. Uma verdadeira revolução na arqueologia mundial, contestada por décadas e hoje irrefutável. A história do sítio com centenas de pinturas de temporalidades diferentes contada por Edu Coelho em tom de voz baixo, tranquilo e reverente fez me sentir em um lugar sagrado, de respeito e contemplação. Ali eu refleti sobre toda a viagem e no que Maurício Tapajós e Aldir Blanc constataram: O Brazil não conhece o Brasil. 

Fig.11. Sítio do Boqueirão, pela noite. Foto: Deborah Neves, 2021.

A monumentalidade do parque não me causou a sensação de pequeneza, mas sim da grandiosidade da humanidade. Ali, no Piauí, eu me religuei aos meus antepassados imediatos, avô, bisavô e também aos ancestrais milenares. Fomos muitos, somos muitos e deixamos nossas marcas para que nos reconhecêssemos ao longo dos milênios. Essa viagem me fez questionar qual o tipo de marca estamos deixando para o futuro. Já provamos nossa capacidade de mudar a natureza para atender aos caprichos do homem, e as barragens do São Francisco provam isso. Mas domar a natureza é ultrapassado e nos leva a um caminho sem volta. Vivenciar a Serra da Capivara nos mostra que não precisa muito para deixarmos nossa marca através dos tempos, mostra que o prédio do Tatuapé é despropositado. O ser humano já é monumental. Basta compreender que somos mais um elemento da natureza, e não o contrário.


Deborah Neves
Doutora em História e técnica da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico / Condephaat – São Paulo
E-mail: h.deborahneves@gmail.com


logo_rr_pp      v.5, n.9 (2021)

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