O que tem atrás do “belo”: Investigações artístico-científicas sobre o políptico da coleção Ferreira das Neves, Museu D. João VI (EBA-UFRJ)

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I Carlo Pagani, Benvinda de Jesus Ferreira Ribeiro, Ricardo Tadeu Lopes, Davi Ferreira de Oliveira, Soraia Rodrigues de Azeredo, Arno Fritz das Neves Brandes, Renato Pereira de Freitas, Valter de Sousa Felix, Áurea Lage, Fernanda da Silva Santos, Keyna Ferreira Proença, Anderson Oliveira I

As pinturas sobre madeira, de diferentes tipologias, são parte importante dos acervos de museus, instituições privadas e de colecionadores, seja no exterior ou no Brasil. Uma abordagem mais contemporânea visa entender as obras no seu conjunto, considerando a sua univocidade, que inclui além da sua camada pictórica, analisada do ponto de vista do historiador de arte, do cientista da conservação (Conservation Scientist) e do conservador-restaurador, os suportes e as eventuais molduras. Isso, através de pesquisa das antigas técnicas construtivas e dos seus materiais, como parte, não somente da história da arte, mas também da história dos saberes tradicionais, do saber fazer e da evolução tecnológica colocando os suportes em madeira no apropriado lugar de documento histórico. Consideramos que não seja possível, sem um profundo conhecimento do suporte, entender as pinturas sobre madeira onde os aspectos estéticos e artísticos das camadas de preparação e pictóricas deixam em segundo plano os aspectos históricos, mas também práticos e metodológicos referentes aos suportes e a suas produções.

A pesquisa proposta abrange o período compreendido entre os séculos XV e XVI, considerando o fato que poucas obras de arte com estas tipologias, produzidas em épocas anteriores, chegaram até nós e que as pesquisas e informações no Brasil são poucas e fragmentárias.

Desde a Idade Média até a vulgarização do uso das telas, a madeira permanece como suporte principal utilizado em diferentes países europeus, mas com espécies de madeiras e tecnologias construtivas nem sempre iguais.

Uma abordagem inicial sobre as pinturas dos quatros santos que se encontram no acervo Ferreira das Neves do Museu Dom João VI (MDJVI) (Fig. 1) considera as informações obtidas em pesquisas bibliográficas e que estão à disposição nos textos e artigos produzidos ao longo dos últimos anos pelas historiadoras de arte da Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro (EBA-UFRJ) e pela contribuição de José Roberto Teixeira Leite, Paul Coremans e de Vítor Serrão.

As diferentes interpretações destes estudiosos nos levam a tentar resolver questões fundamentais que ajudem a confirmar atribuição e datação, sem desconstruir os processos de análises iconográficas, de estilo e históricas feitas pelos pesquisadores citados acima, mas que talvez possam ser confirmadas através de uma análise dos pigmentos e aglutinantes e, a nosso ver, com um estudo atento e dirigido aos suportes de madeira sobre os quais foram pintados os quatros santos.

Fig. 1. Na ordem de esquerda para direita: São Pedro, São Paulo, São Bartolomeu e São Estevão, 2019 (fonte: Handerson da Silva Oliveira).

As informações obtidas no próprio Museu Dom João VI (MDJVI) são fragmentárias, não existindo, por exemplo, os registros de intervenções de restauração anteriores, como elucidaremos mais à frente.

As informações mais atuais são de Vitor Serrão [1] que, nos Anais do VIII Seminário do Museu D. João VI / IV Colóquio Internacional Coleções de Arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX, ao apresentar a sua pesquisa sobre o mito do “Grão Vasco” no Brasil traz importantes informações de como as quatros pinturas sobre madeira foram adquiridas e chegaram ao Brasil no século XIX. Segundo Serrão, o Eng. António Maria Fidié foi quem vendeu a Ferreira das Neves os quatro painéis «primitivos» que hoje se encontram no MDJVI juntos ao acervo com o nome do antigo proprietário.

Os quatro painéis foram (1958-1961) inicialmente analisados por Paul Coremans do Centre National de la Recherche des Primitifs Flamands, em Bruxelas, que considerou as pinturas de autoria do chamado Mestre de Morrison. Segundo Serrão [2], considerando técnica e estilo, a autoria das quatros pinturas sobre madeira não poderia ser atribuída à escola flamenga nem ao estilo “Grão Vasco” e menos ainda ao Mestre de Morrison. A hipótese de Serrão é de que seria produção lisboeta da época de D. João III e deveriam ser atribuídas à “Escola dos Primitivos Portugueses” e a parceria entre Cristóvão de Figueiredo e Garcia Fernandes, os chamados Mestres de Ferreirim, entre 1525 e 1530. Segundo Serrão (apud Gomes Pereira) [3] as pinturas devem ter pertencido a um mesmo conjunto do retábulo do altar do Relicário do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra “de que restam, na sacristia desse mosteiro, cinco pinturas com idênticas dimensões, o mesmo tipo de suporte e características composicionais muito similares: São Vicente, São Lourenço, Santo António de Lisboa, São Sebastião e São Roque”.

Para corroborar esta hipótese, Serrão [4], traz a comparação com outras obras atribuíveis aos Mestres de Ferreirim além de citar as investigações de Vergílio Correia há um século sobre os três retábulos do mosteiro de Santo Antônio de Ferreirim atribuídos a “Cristóvão de Figueiredo, pintor do Cardeal Infante D. Afonso, e seu amigo Garcia Fernandes”.

O trabalho de assemblagem das tábuas para fabricação dos painéis também tinha características diferentes dependendo dos países e da época na qual era feito. Em geral, na produção europeia, encontramos como tipologias mais comuns as uniões em junta viva, geralmente coladas com cola de caseína ou animal, sistemas de cavilhas ou talas geralmente usadas para alinhar as tábuas na hora da colagem. Em outros tipos de assemblagem eram usadas juntas de meia madeira de diferentes tipos, caudas de andorinha, talas travadas por cavilhas perpendiculares ao plano das pinturas ou sistemas de macho e fêmea. Em alguns casos eram utilizados reforços estruturais por meio de travas de madeira colocadas na traseira do painel presa com pregos ou cavilhas de madeira. Algumas técnicas mais apuradas previam um rasgo nas traseiras dos painéis com um perfil em rabo de andorinha no qual se encaixava a travessa com o mesmo perfil sem nenhuma trava que impedisse os seus movimentos. A intenção do marceneiro era dar maior estabilidade aos painéis evitando futuras distorções que poderiam provocar danos à camada pictórica. Em alguns casos, as molduras com função estéticas eram também utilizadas como reforço das estruturas e nesses casos a maioria dos painéis era chanfrado ou rebaixado nas bordas para encaixar nos rebaixos das próprias molduras. A falta de camada pictórica e a redução da espessura da madeira nas bordas dos painéis ou a diferença no estado de conservação em relação à parte central da pintura, pode indicar a presença de molduras utilizadas quando as pinturas eram expostas individualmente ou em retábulos.

O tamanho das tábuas dependia do tamanho final do painel, podendo ser uma única tábua ou mais de umas assembladas para alcançar as medidas necessárias. Em geral a medida das pranchas variava entre vinte e quarenta centímetros e nos painéis mais largos eram assembladas considerando o desenho que seria desenvolvido, demonstrando que existia uma relação estreita entre o fabricante dos painéis e o artista que os encomendava. Podemos observar que, na maioria dos casos encontrados na literatura consultada, as juntas entre uma tábua e a outra eram feitas colocando-as de forma a evitar a formação de eventuais fissuras, causadas pelas variações termo higrométrica ou por outros fatores, que poderiam interferir na iconografia principal da pintura. Eventuais defeitos encontrados nas pranchas, como por exemplo nós, eram resolvidos com eventuais substituições através de enxerto da mesma madeira e com a disposição das fibras na mesma direção.

A espessura das pranchas era também em função do produto desejado. Em pinturas maiores a espessura maior, entre três e quatro centímetros, garantia uma maior estabilidade enquanto com as espessuras menores eram encontrados normalmente sistemas de trava de diferentes tipos que tinham como função evitar problemas de embarcamento ou empeno. Nota-se que, demonstrando os conhecimentos empíricos dos marceneiros e pintores da época, as pranchas eram utilizadas com a face interna, que é a parte da tábua mais próxima da medula da tora da qual foi retirada, para camada pictórica, garantindo em caso de encanoamento, uma deformação convexa que traria menos problemas de uma deformação côncava. Considerando o nosso estudo de caso, a partir destas informações iniciais, ponderamos sobre os resultados das análises efetuadas nos painéis dos quatros santos atribuídos aos Mestres de Ferreirim.

As análises

Fotografia em luz visível

As fotografias em luz visível foram feitas com luz direta, luz rasante e luz transmitida. A análise das fotografias dos painéis, nas três modalidades, com o programa Photoshop permitiu identificar:

  • Na parte traseira são visíveis, seja nas fotografias a luz direta que a luz rasante, marcas indicando a utilização de instrumentos de corte manuais rudimentares, provavelmente enxó ou machado para o corte e desbaste dos painéis;
  • No painel de São Paulo observa-se, com luz transmitidas, a presença de uma línea mais clara em correspondência da junção de duas tábuas revelando um afastamento entre elas;
  • Em todos os painéis a camada pictórica com luz rasante e direta se observam diferentes descolamento, levantamentos e lacunas, a maioria na direção das fibras, provavelmente provocados pelas variações termo higrométricas que ao longo dos anos foram responsáveis pelas mudanças volumétricas da madeira;
  • Nas imagens da parte traseira, em cada painel, podemos observar a presença de dez retângulos com margens irregulares de uma massa avermelhada cuja constituição foi analisada com as técnicas de XRF e Raman sendo os resultados apresentados a seguir.

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Radiografia digital

Analisando as radiografias digitais podemos verificar que a assemblagem das tábuas foi feita, topo a topo, por união em junta viva. Em todas as uniões entre as tábuas foram utilizadas três cavilhas, colocadas às mesmas distâncias entre elas e das bordas superior e inferior. Entre os painéis temos algumas pequenas diferenças de medidas das cavilhas, entre as cavilhas e entre as cavilhas e as bordas superior e inferior. As cavilhas foram colocadas aproximadamente a meia espessura e, no painel de São Pedro, parte de uma das cavilhas pode ser observada pelo verso devido à redução da espessura da madeira pelo ataque de insetos xilófagos.

Em todos os painéis foram detectadas, por serem radiopacas, umas áreas mais claras todas recobertas de um estuque, cuja composição foi analisada sucessivamente e a presença embaixo do estuque de uma placa de metal com alguns pinos ou talvez parafusos que a seguram na madeira (Fig. 2). Estas placas foram provavelmente acrescentadas, em épocas recentes, para substituir madeiras de junção cuja forma poderia ser em rabo de andorinha ou retangular e para reforçar a união das tábuas que compõem os painéis.

Na bibliografia consultada verificamos que, nos suportes para pinturas em madeira, este tipo de placa, em metal, não era usado na época da provável fabricação (século XVI) não tendo encontrado até agora exemplos deste tipo.

Fig. 2. Placa de metal com parafusos abaixo da massa que a recobre, 2019 (fonte: Handerson da Silva Oliveira).

Nas pesquisas feitas nos laboratórios de pinturas, na bibliografia e no acervo (relações de restauro, fotos etc.) da restauradora Brambilla Pinin Barcilon, no Centro de Conservação e Restauro “La Venaria Reale” (Universidade de Turim), foram encontrados registros de colocação de placa em metal de diferentes tipos para reforço dos suportes, mas todas aplicadas em época sucessiva a sua produção. Não encontramos nenhum registro, nos arquivos do MDJVI, que possa confirmar esta hipótese para as pinturas dos quatro santos.

As medidas verificadas com o auxílio do Photoshop são aproximativas, mas indicativas de repetições constantes em todos os painéis que provavelmente foram fabricados pelo mesmo marceneiro ou na mesma oficina (Fig. 3). As diferenças de medidas são atribuíveis a diferentes fatores:

  • os erros devidos à aproximação intrínseca do próprio sistema de medição e a medida de referência de 65 cm utilizada para os painéis;
  • as cavilhas foram colocadas em furos com pequenas diferenças nas distâncias entre eles;
  • o tamanho das cavilhas sofreu provavelmente redução, em alguns casos, pela ação de ataque de insetos xilófagos;
  • a distância das cavilhas da margem superior e inferior apresentam diferenças devidas, em alguns casos, ao desgaste das margens dos painéis de madeira por fatores conservativos;
  • as placas de metal estão recobertas com uma massa radiopaca que dificulta a identificação precisa das bordas e a consequente medição.

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Análises da madeira

A identificação das espécies foi realizada através da análise da anatomia da madeira. A identificação foi realizada através de comparação com descrições anatômicas em obras bibliográficas de referência e comparações com amostras de coleções de madeira (xilotecas).

As análises anatômicas mostram que a madeira predominante nas peças dos painéis e nos enxertos é o carvalho (Quercus sp.) pertencente ao grupo carvalho branco (white oak). As características observadas que permitiram a identificação foram: anéis de crescimento distintos; anéis porosos com mais de três linhas de vasos no lenho inicial; vasos do lenho inicial grandes e pouco numerosos com tilos abundantes; vasos do lenho tardio pequenos, pouco distintos a indistintos sob lente, muito numerosos, com arranjo radial, interligados por parênquima axial; parênquima axial em linhas; raios largos visíveis a olho nu e raios estreitos pouco visíveis sob lente.

Três peças e as molduras foram identificadas como Pinus sp. Essas peças compunham a margem de alguns dos painéis. As características observadas foram: anéis de crescimento distintos, madeira não porosa (ausência de vasos), presença de canais resiníferos mais abundantes no lenho tardio, raios estreitos.

Espécies do gênero Quercus são chamadas de carvalho, essas podem ser separadas em dois grupos: carvalhos vermelhos e carvalhos brancos. A identificação das amostras foi realizada em nível genérico, contudo permitiu verificar que a espécie pertence ao grupo carvalho branco (white oak). Os enxertos foram realizados utilizando o mesmo tipo de madeira que compunha as peças principais (Quercus sp.). As peças identificadas como Pinus sp. compunham a margem dos painéis, o que pode indicar uma intervenção posterior nos painéis (Fig. 3 e 4).

Fig. 3. Identificação das madeiras de cada tábua, 2019 (fonte: Arno Fritz das Neves Brandes, Carlo Pagani).

Fig. 4. Identificação e numeração das tábuas e sarrafos. Na ordem de esquerda para direita: São Pedro, São Paulo, São Bartolomeu e São Estevão, 2019 (fonte: Arno Fritz das Neves Brandes, Carlo Pagani).

Outros dados que seriam fundamentais para identificar a época aproximativa de fabricação poderiam ser obtidos com a análise dendrocronológica ou do carbono 14. Estas análises são de difícil execução e serão objeto de um possível trabalho futuro.

Pela coloração, as tábuas são provenientes do cerne. O Oak tem o alburno bem claro e as amostras têm coloração castanha escura.

O lenho inicial (primaveril) e o lenho tardio (outonal) são facilmente reconhecíveis nas amostras. No carvalho onde observam-se os vasos grandes é o lenho inicial e onde observam-se os vasos pequenos é o lenho tardio. No Pinus a região clara do anel de crescimento é o lenho inicial e a região escura o lenho tardio.

Quanto ao posicionamento das pranchas de madeira no tronco, temos como inferir pela curvatura do arco dos anéis de crescimento (mais próximo da medula mais curvados e quanto mais na periferia menos curvado), pelo raio parenquimático e pela presença de medula. Olhando as fotos das pranchas, a maioria são radiais e não chegam perto da medula, ou seja, apresentam menos deformação quando mudam as condições termo higrométricas. Algumas são bem próximas ao plano radial.

Fluorescência de Raios X (XRF), Espectroscopia no Infravermelho por Transformada de Fourier (FT-IR) e Espectroscopia Raman

As análises foram dirigidas principalmente aos suportes, às massas e às placas de metal encontradas nas análises radiográficas. Análises XRF foram feitas também sobre a camada pictórica da pintura que representa São Paulo, deixando para uma fase sucessiva as análises nas outras pinturas. Neste caso, ainda que não seja especificamente o objetivo deste trabalho, as análises da camada pictórica para identificação dos pigmentos, da base de preparação, dos aglutinantes e dos eventuais vernizes, serão de extrema valia para a contextualização dos acréscimos em Pinus sp. encontrados nas análises da madeira, assim como base para as propostas conservativas e de restauração futuras.

Na análise da massa que reveste as placas foram encontrados como elementos majoritários Ca, Fe, Zn e Pb. Nas análises por Espectroscopia Raman foram detectados espectros associados aos pigmentos Branco de Zinco (ZnO), Branco de chumbo (PbCO3)2·Pb (OH)2) e Calcita (CaCO3). Enquanto nos espectros de Fluorescência de Raios X somente das placas, foram detectados como majoritários os elementos Cu e Zn, indicando que é uma liga de latão.

Análises microbiológicas

As análises microbiológicas foram feitas sobre a camada pictórica com a retirada em loco e sucessivo envio das amostras para cultura e identificação ao Instituto Oswaldo Cruz (IOC) / Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) no Rio de Janeiro. Os resultados:

  • São Pedro – no 001244 – foi isolada uma levedura;
  • São Estevão – no 001245 – nas partes superiores e inferiores não houve isolamento de fungos enquanto no centro da pintura foi isolada uma cepa fúngica identificada como uma Mycelia sterilia (Dematiaceae);
  • São Bartolomeu – no 001246 – foi isolada uma Mycelia sterilia (Dematiaceae);
  • São Paulo – no 001247 – foi isolado um Trichoderma aureoviride.

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Os fungos Demáceo encontrados e o Trichoderma sp. indicam agentes de degradação, sendo que ambos são degradadores de celulose.

Conclusões: estado de conservação, materiais e técnicas construtivas

O estado de conservação das quatros pinturas é diferente para cada uma delas e podemos resumir os aspectos principais considerando a camada pictórica e os suportes de madeira. No que tange à camada pictórica, as considerações são parciais devido ao objetivo principal deste projeto que se propõe contextualizar as técnicas construtivas e os materiais usados na fabricação dos suportes em madeira dos quatros santos e seus estado de conservação.

Problemas conservativos

Diferentes problemas foram detectados ao analisar os suportes de madeira destas pinturas, que podemos resumir em:

  • evidentes ataques de insetos xilófagos;
  • situação particularmente grave na pintura de São Pedro que tem várias galerias provocadas pelos xilófagos que produziram a perda de várias áreas da camada pictórica que se encontra, nas áreas adjacentes, extremamente fragilizada;
  • presença em todos os painéis de fungos ou leveduras;
  • presença de uma massa de serragem e cola ainda não identificada para enchimento das galerias provocadas pelos xilófagos;
  • provável utilização de resinas para consolidação dos painéis em restauros anteriores, hipótese que poderá ser confirmada através de análises sucessivas;
  • perda e levantamento da camada pictórica produzidas pela ação dos xilófagos;
  • levantamento da camada pictórica pela contração e expansão natural da madeira considerando inclusive a mudança de situação climática ocorrida na transferência para o Brasil;
  • desprendimento das juntas com a abertura de frestas em alguns dos suportes de madeira;
  • presença de enchimento de defeitos originais da madeira com enxertos em Qercus sp. ou massas não identificadas;
  • presença de placas de metal utilizadas para manter as tábuas juntas que foram colocadas em possíveis intervenções de conservação e restauro;
  • presença de parafusos e pregos, visíveis nas radiografias, utilizados para segurar os acréscimos de madeira de Pinus sp. e Quercus sp.;
  • presença de restos de pregos, visíveis nas radiografias, utilizados em intervenções anteriores;
  • sujidade, particulado coevo, amarelamento em todos os painéis;
  • Não foram encontradas evidências de redução da espessura das bordas dos suportes para colocação de molduras nem de marcas na camada pictórica que comprovem esta possibilidade.

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Materiais e técnicas construtivas

Segundo Serrão, sobre as pinturas do MDJVI (apud Gomes Pereira, 2010):

Podemos defender a hipótese de estas pinturas deverem ter pertencido ao mesmo conjunto retabular do altar do Relicário do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, de que restam, na sacristia desse mosteiro, cinco pinturas com idênticas dimensões, o mesmo tipo de suporte e características composicionais muito similares: o São Vicente, o São Lourenço, o Santo António de Lisboa, o São Sebastião e o São Roque … próximas, em termos morfológicos, a pinturas como as da Sacristia do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. São peças que revelam a mesma homogeneidade de “receitas” e a mesma inspiração em modelos antuerpianos: modelos afins (tecidos, fundos, casario, trechos arquitetônicos, armaria, gestos, perfis de cabeças), poses decalcadas, nervosa pincelada de tecidos, cromatismo cálido e luminoso etc. Todas essas “receitas de oficina” são comuns a várias pinturas deste ciclo (…). Tudo aponta para a probabilidade de estas nove pinturas haverem feito parte de um mesmo conjunto para Santa Cruz de Coimbra. [5]

Neste sentido, durante a nossa participação no V Encontro Luso Brasileiro de Conservação e Restauro, tivemos a oportunidade de visitar o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e fazer algumas observações sobre as pinturas citadas acima e comparar os suportes das quatros pinturas do Museu Dom João VI e as cincos pinturas do Relicário do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. No que tange às quatro pinturas do MDJVI podemos concluir que:

  • a fabricação dos suportes, assim como a proveniência das pinturas não é verificável, até agora, através de documentos que possam dar pistas confiáveis para corroborar as hipóteses de atribuição;
  • os painéis são, pelas informações obtidas com a análises das radiografias, muito parecidos no que tange às técnicas construtivas, com muitos dos suportes europeus analisados na literatura encontrada, nos laboratórios do CCR La Venaria Reale (Universidade de Turim) ou nas análises das relações de restauro do acervo doado ao CCR pela restauradora Pinin Brambilla;
  • similaridade nas técnicas construtivas com os suportes de madeiras de pinturas dos primitivos portugueses;
  • painéis assemblados, a partir de três ou quatro tábuas de diferente largura e com espessura de aproximadamente de 3 cm, com as fibras na direção do comprimento maior;
  • junção das tábuas a cantos vivos com a utilização de cavilhas;
  • presença de placas metálicas, detectadas nas radiografias digitais, que colocam uma dúvida sobre a sua utilização na época considerada;
  • madeira de carvalho normalmente utilizada pelas suas qualidades que incluem uma boa trabalhabilidade, uma resistência aos ataques dos insetos xilófagos, uma relativa estabilidade às variações termo higrométricas e a facilidade com que era encontrada nas florestas da região ou com a prática de importação, principalmente em Antuérpia, de carvalho da região do Báltico. Espessura relativamente superior àquela normalmente encontrada nas tábuas utilizadas pelos flamingos;
  • a qualidade e a boa técnica construtivas são identificáveis pelo tipo de madeira utilizada, pelo tamanho e espessura das tábuas, pelo tipo de união a junta viva com a utilização de cavilhas distribuídas de forma regular, pela junção cerne com cerne, pela direção das fibras no sentido longitudinal, pela utilização da parte mais interna da tábua (mais próxima da medula) para camada pictórica (empeno com deformação convexa) e pelo corte, principalmente radial, das tábuas;
  • através da análise em luz visível e rasante, podemos detectar na parte traseira a utilização de ferramenta de corte como enxó ou machado, típicas da época de datação proposta por Serrão, que revelam uma técnica construtiva encontrada em outros suportes portugueses, mas também de proveniência italiana;
  • não foram encontrados vestígios de telas, pergaminhos, fibras vegetais ou animais que eram utilizados, segundo pesquisa bibliográfica realizada, para recobrir os painéis assemblados ou simplesmente as juntas entre as tábuas tentando dar maior estabilidade e evitar movimentações indesejáveis com as inevitáveis mudanças termo higrométricas;
  • os painéis eram frequentemente pintados nas costas ou tratados de alguma forma, entretanto não temos evidências comprováveis que os suportes das quatro pinturas analisadas apresentam, nas costas, vestígios de algum tratamento;
  • a utilização de colas animal ou de caseína, tipicamente usadas na época de fabricação atribuída por Serrão [6], não foi detectada, entretanto não podemos excluir a sua utilização por parte do artesão que fabricou os painéis;
  • O pigmento branco de zinco encontrado nas análises das massas que recobrem a placas de metal revela que a época da sua utilização é certamente após o 1770, ano em que foi preparado pela primeira vez, portanto não faz parte dos pigmentos utilizados na fabricação e pintura dos painéis em exame.

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A oportunidade de estudo e colocação em segurança, com intervenções apropriadas e solução dos problemas evidenciados, permitirá um aprofundamento de nossa pesquisa. A identificação dos materiais encontrados nas obras poderá levar a uma reconstrução do histórico de conservação e restauro. Com uma série de análise científicas pontuais, além das já efetuadas no MDJVI, teremos a possibilidade de chegar a uma definição mais detalhada dos aspectos técnicos até agora parcialmente explicitados e das propostas de conservação e restauro.


Notas:

[1] SERRÃO, V. História da arte e mercados: visão teórico-metodológica sobre um campo de estudos transdisciplinares. o exemplo do ‘Mito Grão Vasco’ em colecções portuguesas e brasileiras. In: Arte e seus lugares: coleções em espaços reais. VIII Seminário do Museu D. João. Rio de Janeiro: A. Cavalcanti, A. Valle, M. J. Neto, M. Malta, S. G. Pereira, EBA, 2017, p. 98- 99.

[2] Idem, p. 99.

[3] PEREIRA, S. G. Fluxo de objetos no tempo e no espaço: a trajetória da coleção Ferreira das Neves. In: Anais do XXX Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte, 2010, p. 888.

[4] SERRÃO, V. Pinturas Dos ‘Primitivos’ nas Antigas Colecções Reais Do Rio De Janeiro e no atual Museu D. João VI. In: Histórias da Arte em Coleções: Modos de ver e exibir em Brasil e Portugal. Rio de Janeiro: Marize Malta, Maria João Neto, Ana Cavalcanti, Emerson Dionisio de Oliveira e Maria de Fátima Morethy Couto (orgs.), Rio Books, 2017,  p. 28.

[5] PEREIRA, op cit., p. 888.

[6] SERRÃO, op cit., p. 27.


Carlo Pagani

Doutor em Políticas Públicas para Formação. Museu Nacional (UFRJ), Rio de Janeiro – carlopagani@mn.ufrj.br

Benvinda de Jesus Ferreira Ribeiro

Doutora em Arquitetura. Laboratório de Estudo e Pesquisa para Conservação e Restauração de Esculturas (LAPECRE-EBA- UFRJ), Rio de Janeiro – benrestauradora@eba.ufrj.br

Ricardo Tadeu Lopes

Doutor em Engenharia Nuclear. Laboratório de Instrumentação Nuclear – LIN (COPPE- UFRJ), Rio de Janeiro – ricardo@lin.ufrj.br

Davi Ferreira de Oliveira

Doutor em Engenharia Nuclear. Laboratório de Instrumentação Nuclear – LIN (COPPE- UFRJ), Rio de Janeiro – davi@lin.ufrj.br

Soraia Rodrigues de Azeredo

Doutora em Engenharia Nuclear. Laboratório de Instrumentação Nuclear – LIN (COPPE- UFRJ), Rio de Janeiro – soraia@lin.ufrj.br

Arno Fritz das Neves Brandes

Doutor em Botânica. Laboratório de Anatomia da Madeira e Dendrocronologia. Departamento de Biologia Geral (UFF), Niterói (RJ) – arnofritz@id.uff.br

Renato Pereira de Freitas

Doutor em Engenharia Nuclear. Laboratório de Instrumentação e Simulação Computacional (LISCOMP/IFRJ-CPAR), Paracambi (RJ) – renato.freitas@ifrj.edu.br

Valter de Sousa Felix

Mestre em Engenharia Nuclear. Laboratório de Instrumentação e Simulação Computacional (LISCOMP/IFRJ-CPAR), Paracambi (RJ) – valter.felix@ifrj.edu.br

Áurea Lage

Doutora em Doutora em Biologia Celular e Molecular. Laboratório de Taxonomia, Bioquímica e Bioprospecção de Fungos do IOC/Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro – aurea@ioc.fiocruz.br

Fernanda da Silva Santos

Tecnologista. Laboratório de Taxonomia, Bioquímica e Bioprospecção de Fungos do IOC/Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro – fernanda.santos@ioc.fiocruz.br

Keyna Ferreira Proença

Tecnologista. Laboratório de Taxonomia, Bioquímica e Bioprospecção de Fungos do IOC/Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), Rio de Janeiro – keyna.proenca@ioc.fiocruz.br

Anderson Oliveira

Fotógrafo / Conservador Restaurador, Rio de Janeiro – handerson.oliveira@gmail.com 


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