Uma reflexão sobre Charles Buls e sua obra “Esthétique des Villes”
I Maria Helena Azevedo e Maria Berthilde Moura Filha I
Acontecimentos como a Revolução Industrial (iniciada em 1760) e a Revolução Francesa (1789) trouxeram a reboque uma série de transformações de natureza econômica, social e política que foram repercutindo na estruturação do espaço urbano ao longo do século XIX e até mesmo no início do século XX, quando muitas cidades tiveram o seu tecido modificado. Ao lado das transformações urbanas, aquele tempo foi marcado, também, pelo aparecimento dos estudos de Marx e Engels sobre a economia e a classe trabalhadora e pelo surgimento dos estados nacionais europeus, com repercussões nas artes, na arquitetura e na própria estética.
Por aqueles idos, algumas cidades foram alçadas à condição de metrópole, necessitando de redes viárias, sistema de transporte público, instalações técnicas ou portos bem equipados. Diante dessas mudanças espaciais e de suas consequências na estrutura urbana e na vida dos habitantes, configurou-se a necessidade de intervir para responder a esse quadro e tornar a cidade um espaço minimamente habitável.
As muitas demolições e descaraterizações de edifícios conduziram a um estado de degradação física das ruas e bairros, o que levou alguns estudiosos a teorizarem sobre o fato, despertando olhares para se compreender os núcleos urbanos antigos como um artefato com valores históricos, estéticos e memoriais. Tal contexto coincide com o desenvolvimento e consolidação de vários campos do conhecimento a exemplo da geografia, da economia, da sociologia urbana e, especificamente, da restauração, preocupada com o patrimônio, seus conceitos e intervenções, e do urbanismo, procurando responder às necessidades de transformação e adaptação das cidades em decorrência do rápido crescimento, da necessidade de infraestrutura urbana e de novas construções.
Entre 1852 e 1870, Georges Haussmann realizou uma série de reformas em Paris, onde ruas retilíneas foram rasgadas sobre a trama urbana da cidade medieval. Essas intervenções repercutiram mundo afora e várias outras cidades passaram por situações semelhantes, tendo a substituição de suas muralhas por anéis viários ou o isolamento de seus edifícios singulares para acentuá-los como monumentos. Esses eram os resultados que há muito desapontavam Charles Buls (1837-1914), prefeito de Bruxelas entre os anos de 1881 e 1899, até que ele se viu diante de uma proposta de intervenção apresentada para a sua cidade e que iria destruir um bairro antigo.
A partir daí, buscando despertar gestores urbanos, arquitetos e engenheiros sobre como compatibilizar as exigências do progresso às precauções com os aspectos estéticos dos ambientes urbanos, Buls colocou no papel algumas reflexões sobre a modernização das estruturas físicas aliada à conservação das cidades. Em 1893, ele publicou Esthétique des Villes em cujo prefácio foi explicada a intenção do livro: reunir assuntos relacionados à transformação da cidades antiga, que precisava se adaptar às exigências dos novos tempos.
Sensível a esses princípios, Buls iniciou o livro com uma afirmação a respeito do quão as cidades e as ruas antigas são prazerosas, tendo mesmo um charme especial e havendo nelas uma desordem agradável, fruto do crescimento natural das habitações, ao formarem caminhos sinuosos que acabavam sendo elevados à categoria de rua. Além de trazer aportes valiosos para a estética urbana, o livro em questão apresenta contribuições para a preservação do patrimônio urbano e, para discuti-lo, este artigo inicia tratando da vida de Buls, por meio de passagens que ajudam a entender como se deu o seu envolvimento com a política e de onde vieram muitas das ideias defendidas na publicação aqui estudada.
Pesquisar sobre a vida de Buls foi fundamental, então, para entender como se deu o seu percurso enquanto cidadão e também enquanto político. A sua história pessoal tem situações que ajudam a explicar muitos dos pontos de vista e das tomadas de decisão que serão feitas em sua atuação profissional. Aliás, em suas pesquisas nos arquivos em Bruxelas, Naretto teve a oportunidade de ler os inéditos Carnets de Voyages com apontamentos, reflexões, desenhos e fotografias produzidos por Buls, deixando-a com a impressão de que o pensamento dele foi marcado pela ética, pela estética e pela transposição de instâncias políticas, didáticas e sociais para com a dimensão urbana, encarada como um fato antropológico [1].
De criança autodidata a autor de livros sobre a preservação das cidades antigas
Filho de uma dona de casa e de um joalheiro da província de Antuérpia, Charles François Gommaire Buls nasceu em 13 de outubro de 1837, em Bruxelas, na Bélgica. Criança frágil, em busca de melhoras para a saúde, aos oito anos de idade foi enviado para viver na companhia de um tio, general do exército belga, que habitava em um castelo na zona rural de Limburgo, uma área próxima à fronteira com os Países Baixos.
Por conta dessa situação, o menino Buls não passou por uma formação convencional, já que não frequentou escolas na primeira fase do ensino fundamental, tendo adquirido conhecimentos a partir da leitura dos livros existentes na biblioteca do castelo. Aos doze anos, ele retornou a Bruxelas para frequentar as aulas do Ateneu Real dessa cidade, tradicional escola fundada em 1777. Como cresceu autodidata, o menino enfrentou dificuldades para se adaptar ao ensino tradicional que exigia dos alunos, por exemplo, decorar textos por completo ou adotar padrões de comportamento muito rígidos. Diante dessas imposições, Buls nunca conseguiu se distinguir na escola. Foi a partir de amizades construídas em sala de aula que ele começou a dar atenção às lacunas existentes em sua formação, aproximando-se da literatura, da história e da filosofia.
Em 1858, Buls foi enviado a Paris, por seu pai, para frequentar uma escola de joalheria. Lá, recebeu uma formação artística que envolveu aulas de desenho, gravura, pintura, escultura e história da arte. Por esse tempo, a França era governada por Napoleão III e o Prefeito Georges Haussmann desenvolvia as suas reformas na cidade, o que despertou no jovem belga uma aversão à radicalidade das transformações parisienses, aguçando, ao mesmo tempo, o seu interesse por questões patrimoniais. Em 1860, Buls seguiu em viagem de estudos para a Itália, que era um destino comum a quem escolhia uma profissão ligada às artes, tendo vivido ali por um ano, em meio a cidades repletas de obras artísticas em seus espaços públicos.
Ao retornar para a Bélgica, Buls passou a trabalhar como joalheiro no ateliê do pai, situado na Rue Marché-aux-Herbes [2]. Ao mesmo tempo, ele começou a se posicionar publicamente, através de textos publicados na imprensa, sobre questões ligadas à educação, defendendo veementemente reformas de ensino na Bélgica em prol de uma educação obrigatória, gratuita e que mantivesse o ensino da língua neerlandesa. Nos seus escritos, Buls também alertava para uma espécie de imobilismo das altas classes sociais da Bélgica que não despertavam para os problemas do seu tempo e a quem faltava interesse intelectual, aceitando passivamente modelos culturais estrangeiros.
As suas opiniões foram ganhando destaque, principalmente, após ele ter fundado a Ligue de L’Enseignement (1864) à qual irá se dedicar até o fim da vida. A partir daí, o interesse e a defesa por uma educação de qualidade foram a motivação do seu engajamento político, afastando-o da profissão de joalheiro. Buls, afinal, tinha consciência sobre o papel da educação, entendendo que a instrução pública associada a bibliotecas populares, círculos de autores e conferências poderiam trazer transformações sociais bem-vindas ao seu país. Na sua visão, a Bélgica precisava formar um senso patriótico, já que absorvia muito os aspectos culturais oriundos da França em função de uma classe dominante que insistia em falar apenas a língua francesa.
Outro aspecto defendido por Buls era a renovação das artes industriais. E aqui é possível destacar que, diferentemente da atuação de John Ruskin e William Morris junto ao Movimento do Arts and Crafts, ele não percebia problemas em aproximar a produção artesanal dos processos industriais. Embora fosse descendente de uma família de artesãos que trabalhavam com joias, ele não tinha uma posição conservadora. Engajou-se, então, na renovação das artes industriais por meio da criação de escolas de ofícios que, no seu entender, seriam capazes de transmitir o conhecimento por procedimentos sistematizados e de um modo mais amplo, abrangendo um número maior de aprendizes na formação de mão de obra qualificada. Por sua vez, tal mão de obra estaria habilitada a dar continuidade a trabalhos que poderiam desaparecer com o correr dos anos. A atitude de Buls revela que ele concebeu um processo de renovação, aproximando a produção artesanal e as inovações tecnológicas trazidas pela industrialização, tendo como intenção deflagrar um movimento social, construído culturalmente a partir do amálgama entre arte, ciência e pensamento político.
A sua dedicação às causas da educação e a sua visão de mundo o levaram a se tornar membro do Partido Liberal. Foi, então, solicitado a se candidatar a Conselheiro Comunal de Bruxelas, cargo para o qual foi eleito em junho de 1877 [3]. A partir daí, Buls ocupou vários postos na gestão da cidade até que foi lançado candidato e eleito prefeito em 1881, tendo sido reeleito em 1887 e 1895.
Durante a sua gestão como prefeito, em 1893, ao se deparar com uma proposta de projeto urbano elaborada para um bairro de Bruxelas nos moldes de uma intervenção haussmaniana, Buls começou a escrever o livro Esthétique des Villes. Essa publicação foi destinada a gestores urbanos, arquitetos e engenheiros, com reflexões sobre a modernização das estruturas físicas alinhadas à conservação das cidades, compatibilizando as exigências do progresso às precauções com os aspectos estéticos dos ambientes urbanos.
A argumentação de Buls foi construída a partir da observação dos lugares existentes, da identidade visual de Bruxelas como uma cidade medieval, dos valores por ela emanados e das necessidades de adaptação à chegada das inovações tecnológicas. Não tendo uma formação em urbanismo, ele se interessou pelo espaço público como cidadão e, principalmente, como prefeito. Reconhecendo que Buls não era um especialista, Donatella Calabi afirmou que foi a partir do seu diletantismo, construído pelas múltiplas carreiras abraçadas em sua vida profissional, que ele passou a fazer parte do círculo restrito que dominava a cena do urbanismo europeu no início do século XX [4].
Em dezembro de 1899, por discordâncias com o rei Leopoldo II (que reinou de 1865 a 1909) relacionadas a questões urbanas de Bruxelas, Buls renunciou ao cargo e retirou-se da política, tendo passado a se dedicar à divulgação das ideias abordadas em seus livros, especialmente em congressos de arquitetos realizados no estrangeiro.
“Esthétique des villes” em quatro pontos de vista
Escrita em francês, a primeira edição de Esthétique des Villes esgotou rapidamente e, em 1894, foi publicada a segunda. Além de ser repleto de comentários positivos, houve outro fator que ajudou na distribuição do livro: a tradução para o alemão (em 1898, Äesthetik der Städte), para o inglês (em 1899, publicado na Revista City Aesthetics, em Nova York) e para o italiano (em 1903, Estetica della Città), permitindo a sua entrada no contexto internacional e aproximando Buls do campo da teoria urbana.
A boa aceitação da publicação levou Buls, que era poliglota, a ser convidado para apresentar suas ideias em palestras, eventos e congressos internacionais onde se discutiam os problemas das cidades. Alguns anos mais tarde, em 1910, Buls tornou-se presidente do Comité du Tracé des Villes, que fazia parte da Societè Centrale d’Architecture de Belgique [5]. Ao ocupar este posto, ele trabalhou intensamente junto aos jovens arquitetos, informando-os sobre as discussões que ocorriam nos demais países a respeito de temas como cidades, patrimônio e planejamento urbano, tornando-se, dessa forma, um multiplicador dos conteúdos com os quais havia tido contato em suas viagens.
Contendo 47 páginas, Esthétique des Villes tratou, principalmente, de questões relacionadas às cidades antigas, não deixando de abordar praças, plantações, subúrbios, construções privadas e públicas. Argumentando que tais cidades não deveriam ser submetidas apenas às exigências práticas, Buls contestava as opiniões daqueles que diziam que as necessidades de salubridade e de fluxo de tráfego eram apenas de ordem técnica, esquivando-se de preocupações com a estética urbana. Ao organizar seu livro, ele definiu princípios norteadores para orientar as intervenções urbanas e também a articulação dessas cidades com novos quarteirões, em caso de crescimento urbano. O autor classificou esses princípios em pontos de vista técnico, estético, arqueológico e administrativo.
Aos arquitetos, Buls recomendou que era importante desenhar a cidade na altura do observador, preocupando-se com a vista horizontal. Essa sua recomendação ocorreu ao se dar conta que muitos projetos eram repletos de detalhes percebidos apenas na perspectiva em voo de pássaro, na qual eram desenhados, dificultando que o olhar do pedestre os vislumbrasse ao caminhar pelas calçadas.
Sob o ponto de vista técnico, foi ressaltando o trabalho do engenheiro belga M. Van Mierlo, ao apontar as suas preocupações com a circulação e daí com o traçado de artérias arborizadas (alamedas) que deveriam tornar os bairros distantes mais acessíveis como também tirar partido das ruas existentes, realizando conexões entre elas, aproveitando as diferenças de nível, buscando mediar pontos de visadas e respeitando os edifícios.
Era comum aos prefeitos de então o desejo de distanciar muitas das cidades europeias de um passado medieval, caraterizado morfologicamente por ruas estreitas e sinuosas, em busca de uma modernização urbana. Ao entender que, no seu tempo, os projetos urbanos primavam pelo desenho de ruas com traçado e arquitetura simétricos, Buls argumentou que, ao invés de se demolir o construído, os bairros com configurações diferentes deveriam ser edificados nas áreas livres, situadas no entorno, e em cuja direção os núcleos urbanos deveriam se expandir [6]. Desse modo, com a experiência de quem esteve à frente de Bruxelas por anos, ele fez várias recomendações sobre conservar as partes antigas das urbes. A associação entre prática e prudência era algo defendido em seus textos e palestras para inspirar os gestores das cidades a conservar o caráter local e nacional das mesmas sem destruir a memória.
Entendendo que uma cidade próspera se transforma, Buls chamou atenção para a adaptação às necessidades de circulação, de higiene e de conforto, como também para as diferenças de nível nos sítios geográficos onde muitas cidades se implantaram, a exemplo de Bruxelas, Lisboa, Edimburgo e Constantinopla. Não aplainar os terrenos permite criar surpresas no ambiente urbano para o pedestre ao se subir uma ladeira ou virar-se numa curva, sendo possível ter visadas privilegiadas do panorama urbano entre os bairros altos e a parte baixa.
Outra das preocupações de Buls era com o desmantelamento do entorno de edifícios singulares, a exemplo de igrejas e palácios, para que fossem destacados como monumentos isolados. Em seu ponto de vista é essencial manter o entorno formado por habitações modestas, já que, ao se promover o isolamento, na realidade, retira-se a referência de escala do edifício, acentuando-se a percepção de que o mesmo seria menor. Assim, na sua concepção, a beleza das cidades estava associada aos valores históricos presentes no conjunto urbano, envolvendo ainda as ruas e as praças. Este é um dos pontos, em seu trabalho, onde fica muito clara uma aproximação entre o urbanismo e a conservação das cidades:
Os velhos monumentos e as casas antigas apresentam um caráter artístico ou reminiscências de uma memória histórica, precisando também serem preservados da picareta dos niveladores, não se devendo hesitar em desviar uma rua para preservá-los [7].
O desaparecimento de muitas das portas que existiam na muralha medieval de Bruxelas é lamentado por Buls ao tratar de questões sob o ponto de vista arqueológico. Ele também afirma que muitas prefeituras permitiram a demolição de ruínas de antigas construções, ao entenderem que a conservação delas não seria interessante por demandar despesas na restauração.
Pensando de modo diferente, Buls se envolveu diretamente na luta contra a destruição da Tour Noire, um edifício que pertenceu ao sistema defensivo da segunda muralha medieval de Bruxelas [8]. Ele defendeu a ideia de que aquelas pedras contavam sobre sofrimento, glória, luta e triunfo dos antepassados do povo belga, devendo ser ela mesma personagem e cenário das crônicas para despertar a curiosidade dos mais jovens, sendo necessário conservá-la como testemunho do passado.
Explanando seus argumentos sobre os aspectos administrativos e com a experiência de um prefeito que esteve no cargo por 16 anos, Buls discorreu sobre o quão era necessário que os administradores públicos resistissem aos empreendimentos precipitados, que tivessem um espírito prático e uma prudência para intervir nas cidades. Reconhecendo que as obras públicas são pagas com os tributos recolhidos junto à população, afirmou que não se deve negligenciar os interesses públicos, reconhecendo que “quanto aos contribuintes, eles têm o direito certo de reclamar daqueles que gerenciam as finanças da cidade e que proporcionam as obras e o embelezamento com recursos públicos” [9]. Dentro deste pensamento era preciso evitar demolir e construir sem se discutir sobre o assunto, procurando priorizar as obras que atendessem aos interesses da coletividade.
Considerações Finais
Como vimos, no século XIX, a cidade estava em foco e, sob diferentes pontos de vista, ela se mantinha no centro das discussões. Um dos temas abordados girava em torno das reformas urbanas que modificavam brutalmente as configurações morfológicas e tipológicas das cidades. Diante dessas transformações, temas relacionados à dissolução da cidade antiga em face à implantação da cidade industrial e a convivência do preexistente com as intervenções trazidas pela modernidade ganharam espaço nos escritos de médicos, literatos, geógrafos, engenheiros e arquitetos, dentre outros profissionais.
Junto a esses olhares analíticos, é possível situar o surgimento das ideias de Charles Buls e do seu livro Esthétique des Villes com recomendações pautadas por preocupações com o espaço urbano, a conservação da cidade antiga, o respeito ao patrimônio cultural, a cooperação entre profissionais, a educação patrimonial e a consciência com o erário público.
O cuidado em aproximar o urbanismo da conservação patrimonial é tão presente nas linhas do seu texto que, por vezes, os pontos de vista técnico, estético e arqueológico possuem interesses comuns, gerando zonas de intersecções em torno da ideia de um progresso que não destrói as cidades antigas. Quanto aos pontos de vista administrativos, eles são de uma atualidade salutar ao alertar os gestores sobre as suas obrigações com o patrimônio cultural, com os recursos públicos e com as responsabilidades sociais de seus cargos.
As ideias de Buls anteciparam-se em anos aos propósitos contidos em muitas cartas patrimoniais que serão escritas no decorrer do século XX e, após a leitura de Esthétique des Villes, algumas constatações saltaram-nos à mente. Primeiramente, foi possível compreender a importância dos seus escritos, trazidos a público em momentos nos quais era comum colocar abaixo a cidade antiga para realizar reformas de modernização no espaço urbano. A inovação social e intelectual abordada pela sua obra permite, então, situá-lo ao lado de estetas urbanos como Camillo Sitte ou Joseph Stübben, que foram seus contemporâneos.
Sendo Buls um prefeito, é notável a sua sensibilidade em sair na defesa das estruturas urbanas sem congelá-las, buscando conciliar as suas demandas de modernização junto a preocupações com a cidade existente. Dono de um respeitável cabedal de conhecimentos, ele também afirmou que era possível buscar, para cada caso, uma solução mais adequada. Lembrando que as atitudes sobre o destino da sua cidade levaram-no, muitas vezes, a entrar em conflito com o rei Leopoldo II, cheio de ânsias por imprimir a sua marca sobre Bruxelas, derrubando ali as velhas ruas e construindo novos bairros em comum acordo com os parâmetros estéticos então vigentes. Outro aspecto importantíssimo observado na trajetória de Buls foi o papel desempenhado na formação dos jovens arquitetos belgas, o que reforça a sua responsabilidade como cidadão.
A fim de entender mais sobre as proposições de Buls, recorremos a uma revisão na literatura, procurando por referências que abordem o seu trabalho. Percebemos, então, o quanto sua obra é ainda pouco estudada não apenas por nós, pesquisadores brasileiros, mas também por estudiosos mundo afora, tanto da parte daqueles que se dedicam ao urbanismo quanto dos que tratam do patrimônio cultural. No âmbito internacional, destacamos Smets, que investigou os aspectos da arte urbana no legado de Buls; e Naretto que se dedicou a estudar as viagens à Itália e as proposições feitas por ele a partir do viés da conservação e do restauro. Já no Brasil, destacamos as pesquisas de Manoela Rufinoni [10], Márcia Sant’Anna [11] e Vanessa Figueiredo [12], dentre as pioneiras que ressaltaram a importância dos seus textos. Porém, sua ausência é sentida em importantes publicações como O Urbanismo [13], A Cidade do Século XIX [14] ou History of Architectural Conservation [15].
A resposta para o seu esquecimento talvez esteja associada ao fato de se ter estabelecido para a Bélgica um papel lateral e não tão destacado enquanto país disseminador de ideias em relação a questões teóricas, sejam elas do urbanismo ou da restauração. Portanto, Buls teria administrado uma capital periférica. Acreditamos que há muito o que decifrar nos escritos deixados pelo velho prefeito, os quais ainda precisam ser mais e melhor descobertos como documentos por aqueles que pesquisam o espaço urbano e as teorias da conservação.
Notas
[1] NARETTO, M. Charles Buls el il restauro: antologia critica. Milano: Franco Angeli, 2006, p. 16.
[2] SMETS, M. Charles Buls: Les principes de l’art urbain. Liège: Pierre Mardaga, 1995, p. 28.
[3] Idem, p.77.
[4] CALABI, D. Apresentação. In: SMETS, op. cit., 1995.
[5] SMETS, op. cit.,1995, p.21.
[6] BULS, C. Esthétique des Villes. Bruxelles: Imprimerie Bruylant-Christophe& Cie., 1894, p. 16.
[7] Tradução nossa a partir de BULS, op. cit., p. 22: Les vieux monuments, les vieilles maisons présentant un caractère artistique ou rappelant un souvenir histórique, demandent aussi à être préservés de la pioche des niveleurs, et il ne faut pas hésiter à dévier une rue pour les épargner.
[8] BULS, op. cit., p.23,
[9] Tradução nossa a partir de BULS, op. cit., p. 37: Quant aux contribuables, ils ont certe les droit de réclamer de ceux qui gerente les finances de la cite qu’ ils proportionnent les travaux et les embellissements aux ressources de la caísse communale.
[10] RUFINONI, M. Preservação e Restauro Urbano: intervenções em sítios históricos industriais. São Paulo: Fap. Unifesp, Edusp, Fapesp, 2013.
[11] SANT’ANNA, M. Da Cidade-Monumento à Cidade-Documento: a norma de preservação de áreas urbanas no Brasil (1937-1990). Salvador: Oiti Editora, 2014.
[12] FIGUEIREDO, V. Da Tutela dos Monumentos à Gestão das Paisagens Culturais Complexas: inspirações à política de preservação cultural no Brasil. São Paulo: Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2014.
[13] CHOAY, F. O Urbanismo: utopias e realidades. São Paulo: Perspectiva, 2011.
[14] ZUCCONI, G. A Cidade do Século XIX. São Paulo: Perspectiva, 2009.
[15] JOKILEHTO, J. A History of Architectural Conservation. London: Routledge, 2011.
Maria Helena Azevedo
Arquiteta. Doutora em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória 2 (LPPM 2/ UFPB).
Maria Berthilde Moura Filha
Arquiteta. Doutora em História da Arte pela Universidade do Porto. Professora do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória 2 (LPPM 2/ UFPB).
… v.6, n.12 (2022)
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