I Vanice Jeronymo e Marcelo R. A. Augusti I
O que a impermanência e a transitoriedade têm a ver com as questões relativas ao patrimônio material edificado? Esta é a reflexão que se pretende neste artigo, a partir da explanação de diferenças filosóficas entre o Ocidente e o Oriente no que diz respeito às práticas e formas de compreender a matéria e a necessidade de preservá-la ou não. Assim, iniciamos o debate com um breve comparativo entre o entendimento da tradição filosófica ocidental e a perspectiva budista sobre a natureza da realidade. Estes se constituem nos indícios que nos levarão às particularidades entre o Ocidente e o Oriente na questão dos desejos, necessidades e angústias para lidar com a perda ou com a preservação da matéria. Para ilustração da questão, será utilizada como exemplo ocidental, ainda que sem aprofundamento teórico, a condição material de alguns remanescentes da arquitetura ferroviária e industrial do interior paulista.
O impermanente e o transitório: diferenças filosóficas entre o ocidente e o oriente
Vento alto não dura a manhã toda. Nem chuva repentina dura o dia todo. Céu e Terra não estão preparados para fazer coisas que durem para sempre. Assim, como é possível para o homem? [Provérbio Taoísta].
Os termos impermanência e transitoriedade parecem não pertencer às questões filosóficas do mundo ocidental moderno. Uma busca em um dos mais conceituados dicionários de filosofia da atualidade [1] não constatou referências a tais conceitos. Dentre tantas as definições para a filosofia, em Francis Bacon (1561-1626) talvez se encontre a razão pela qual os ocidentais, de um modo geral, não incluem em suas reflexões e contemplações a questão da impermanência e da transitoriedade. Para Bacon, “a filosofia é o conhecimento das coisas pelos seus princípios imutáveis (grifo nosso), e não pelos seus fenômenos transitórios” (grifo nosso) [2].
Bem se entende que a filosofia ocidental moderna parece ter se dedicado às coisas imutáveis da natureza (considerada como as causas de suas formas), deixando de lado tudo o que é transitório [3]. Assim, as leis da natureza (suas causas) são entendidas como a essência da própria natureza e dispostas ao conhecimento objetivo pelo ser humano. Esse conhecimento, então, é algo mais que a experiência humana pode comprovar subjetivamente, pois é possível de ser averiguado pela observação das leis da natureza e, principalmente, passível de ser traduzido em linguagem conceitual e, assim, tornar-se inteligível e universal. Seria esta, portanto, a finalidade da filosofia ocidental moderna, ou seja: investigar a natureza em sua permanente imutabilidade (suas leis objetivas), desprezando tudo que é exposto à mudança e se dissipa no tempo e espaço, para dela extrair o conhecimento universal que a tudo abarca.
Para a filosofia ocidental moderna, logo, a essência imutável constitui-se das leis físicas da natureza. Porém, o que é a natureza? Seria, ao contrário dessa imutabilidade essencial, o mundo dos “fenômenos transitórios”, ou seja, o tempo / espaço onde tudo surge e se dissipa, onde miríades de coisas nascem, crescem, permanecem por determinado período e desfalecem? Como disse, no século XVIII, o filósofo luso-brasileiro, Matias Aires,
(…) a cada passo que damos no decurso da vida, vamos nascendo de novo, porque a cada passo vamos deixando o que fomos, e começamos a ser outros. Cada dia nascemos, porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos deste modo, tanto mais nos fica perto o fim que nos espera. [4]
É certo, todavia, que a filosofia ocidental da Antiguidade Clássica já havia tratado da questão da impermanência a partir do conceito de devir. Em Heráclito de Éfeso (540 – 470 a.C.), “o pensador da mudança”, “o Obscuro”, encontram-se as referências primeiras sobre a questão da realidade da natureza, a mudança que se perpetua ao longo do tempo que, longe de seguir uma lógica constante, preza pela inconstância, pois tudo muda, inclusive a própria mudança. Este ‘vir-a-ser’ que, a todo o momento, transforma a natureza, não permite que qualquer mudança possa ser apreendida pelo ser humano, pois no ato da mudança já se encontra em curso outro processo de mudança. Como diria o poeta, “a firmeza somente na inconstância” [5].
Mas em Heráclito, a beleza e perfeição da natureza estão, exatamente, em seus opostos: dia e noite, calor e frio, água e fogo etc. É esse jogo incessante dos contrários, esse enigma proposto pela natureza que, paradoxalmente, permite que alguém atravesse um rio (um nome, um conceito) inúmeras vezes, porém, nunca sobre as mesmas águas que fluem na inconstância das estações (a realidade da natureza, o devir). É deste modo que, em Heráclito, o devir e seu contrário, isto é, a permanência, possibilitam que as transformações se perpetuem, sendo isto a essência da realidade [6].
Heráclito parece ter bebido da fonte da sabedoria oriental. Na tradição filosófica inaugurada por Sidarta Gautama, o Buda (Séc. VI a. C.), os fenômenos da natureza, incluindo todos os seres vivos e tudo o mais que constitui o Universo, não se originam independentemente; porém, sua gênese é dependente, isto é, tudo segue o princípio da causa, condição e efeito. Se algo existe, algo preexistiu anteriormente e assim, sucessivamente. Portanto, nada existe no mundo por si mesmo; os fenômenos, a natureza, logo, não possuem uma essência imutável, mas, impermanecem na transitoriedade. Se há uma imutabilidade, esta é a própria impermanência das coisas. Deste modo, se tudo surge devido a causas e condições, tudo também se dissipa pela mesma razão: se as causas e condições que sustentam um fenômeno forem removidas, o fenômeno cessa de existir. Pois é na interação das causas e condições que o mundo, a natureza, ora se sustentam, ora se dissipam [7].
Para a compreensão da gênese condicionada a questão da impermanência é fundamental. No mundo da existência material, “todos os fenômenos interagem constantemente uns com os outros, sempre se influenciando mutuamente e todo o tempo levando a mudanças” [8]. Tudo que existe no mundo fenomênico, portanto, segue o processo inexorável do surgimento, da permanência temporária e da dissipação. Na visão budista, não apenas a matéria sofre transformações, mas a impermanência se dá, inclusive, com as percepções mentais, que se alteram de um momento para outro, afirmando que os pensamentos e emoções fluem incessantemente, sucedendo-se ininterruptamente, alternando-se do agradável para o desagradável até a indiferença. Para a filosofia budista, “os fenômenos não apenas passam de um estado para outro, mas realmente se transformam sem cessar, a tal ponto que, depois de longos períodos de tempo, nenhum de seus aspectos terá permanecido o mesmo” [9].
Em linhas gerais, tecemos as considerações sobre o impermanente e o transitório e as diferenças filosóficas entre ocidente e oriente. Que tudo muda, que tudo se transforma, parece não ser difícil perceber. A impermanência – o movimento, o transitório – parece ser a única lei imutável que à realidade se aplica. Assim,
Vimos ao mundo a mostrar-nos, a fazer parte da diversidade dele; parece que as coisas nos vão fugindo, até que nos vimos a desaparecer também. Somos formados de inclinações opostas entre si, e temos em nós uma propensão oculta que, sob a aparência de buscar os objetos, só procura neles a mudança. A inconstância nos serve de alívio, e nos desoprime, porque a firmeza é como um peso que não podemos suportar sempre, por mais que seja leve: e, com efeito, como podem as nossas ideias ser fixas, e sempre as mesmas, se nós sempre vamos sendo outros? [10]
Tudo o que existe, portanto, carrega em si a marca do devir, do impermanente. A existência, pois, é movimento, um fluxo incessante de vir-a-ser e desaparecer. Tal fluxo, contudo, é imprevisível, ora proporcionado pela própria natureza, ora pelas inclinações e a inconstância dos seres humanos, sempre se modificando no processo do existir. Mas o que a impermanência e a transitoriedade tem a ver com as questões relativas ao patrimônio material edificado, é o tema a ser desenvolvido a seguir.
O patrimônio material edificado e suas relações com a impermanência e a transitoriedade
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. [Luís Vaz de Camões (Século XVI)]
Parece ser próprio da natureza humana antecipar o fim da vida útil das coisas devido ao seu desinteresse por elas, à ânsia pelas novidades ou às possibilidades de lucros. Nas palavras do filósofo, “perdemos as coisas, primeiro pela nossa indiferença, que pelo fim delas; primeiro porque se acaba em nós o gosto, do que nelas a duração” [11]. Assim, teorias como a da obsolescência programada procuram explicar tais tendências pelo viés do fomento ao consumo. Porém, damos fim ou entregamos ao abandono muitas outras coisas: relacionamentos antigos são encerrados, pessoas são substituídas, objetos em boas condições são descartados e prédios demolidos. Dessas trocas e descartes, quantos seriam necessários, de fato, se o foco fosse sua durabilidade, funções e, claro, a possibilidade de manutenções periódicas?
Para seguir pelo caminho da prolongação da vida útil do que se quer manter, nos parece interessante conhecer os recursos que se dispõem, financeiros ou não, para que isso se concretize. Talvez a atenção devesse estar na nossa capacidade de avaliação sobre o real estado de existência das coisas e sobre nosso interesse para mantê-las. Pois mudanças, em todos os sentidos, não significam necessariamente substituições. Do existente, é possível extrair muitas possibilidades e, com isso, alongar a vida útil de um objeto, de uma edificação, até o momento em que algo maior a encerre definitivamente. Vejamos, então, as inovações que garantiram ao século XIX a visibilidade como tempos modernos e possibilidades de muitas mudanças.
A Revolução Industrial e as grandes inovações que emergiram a partir dela trouxeram alterações significativas aos modos de vida das sociedades. As ferrovias despontaram na Inglaterra e consagraram-se como símbolos da modernidade, rapidamente se espalhando pelo mundo e transformando todo o entendimento que se tinha até aquele momento sobre espaço, tempo e velocidade [12]. No contexto da industrialização, entre as várias possibilidades permitidas pelas novas tecnologias, materiais e serviços, emergiram novas formas de comunicação, de produção, de transportes, higienização, medicalização, fixação, entre tantas inovações. Ergueram-se novos edifícios para acomodar as instituições, os locais de trabalho, as novas moradias etc. No Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, conjugadas à expansão das produções agrícolas, sobretudo cafeeiras, tais transformações começaram a ocorrer com a implantação do primeiro trecho ferroviário e, posteriormente, com sua expansão [13].
A proibição da mão de obra escrava e a substituição gradativa pelo trabalho assalariado ampliou a difusão das atividades industriais, especialmente durante a década de 1880. Viu-se emergir uma sociedade industrial fundamentada em uma nova ordem e racionalidade, baseada nas transformações econômicas e tecnológicas e na criação de novas regras econômicas, políticas e de convivência. As ferrovias e a grande indústria foram fundamentais nas transformações da sociedade e das cidades brasileiras ao possibilitarem suas expansões e melhorias urbanas, como é o caso da fundação de inúmeros núcleos fabris e vilas operárias [14].
Entretanto, no século seguinte, mudaram-se os interesses e o Brasil passou a investir e privilegiar novas formas de locomoção e na construção de rodovias, com intuito de criar alternativas ao transporte de cargas por ferrovia e possibilitar a formação de polos automobilísticos. Mecanismos para dar vazão ao projeto de abertura de estradas foram criados e, aos poucos, com a falta de investimentos, as ferrovias, antes tidas como as principais responsáveis pela explosão do desenvolvimento e do progresso brasileiro, foram sucateadas, deixadas para trás e esquecidas.
As transformações criam as diversas camadas que formam as cidades, possibilitando percebê-las como espaços de diálogos ou conflitos, diferenças e disputas e, assim, constroem suas narrativas. Neste sentido, a figura 1 exemplifica as transformações como registros de diferentes tempos – ferrovias e avenidas – e um aproveitamento interessante de remanescente ferroviário como área de convívio. A figura 2 aponta para futuras mudanças, das quais se espera o aproveitamento criterioso e sustentável das antigas instalações, ainda que o bem não seja tombado [15]. Porém, quando há o abandono das antigas formas de produzir, morar e gerenciar dá-se força à formação de um cenário composto por toda sorte de edifícios que, sem manutenção, investimentos e incentivos seguem a trilha das ruínas, mesmo que a eles recaiam proteções e salvaguardas após exaustivos processos de análise de suas materialidades e possíveis valorações culturais [16].
Também muito dos casarões que serviam às necessidades de moradia da aristocracia brasileira permaneceram em situação semelhante. Os casarões, assim como as instalações fabris, devido às suas peculiaridades – geralmente grandes edificações de difícil manutenção localizadas em áreas centrais da cidade – permaneciam na zona de vulnerabilidade com tendência ao abandono ou à demolição. Ainda que não sejam tombados, mas que não exerçam suas funções originais ou não recebam mais incentivos, o fim dos bens dotados de peculiaridades passíveis de valorações tem sido o mesmo, especialmente, quando inseridos em áreas que potencializam crescimentos verticais: possíveis demolições (Fig. 3). Ou, quando localizados em áreas afastadas: o abandono (Fig. 4 e 5).
Assistir o definhar ou a substituição das formas e da matéria, e ao não compreender o fenômeno da impermanência e da transitoriedade, isso nos causa sofrimento, que geram lamentos pelas perdas. Não queremos aceitar o fim e, assim, produzimos alguma imagem de algo que seja permanente e a ela nos agarramos. Porém, ao nos depararmos com a dissolução do que antes parecia tão sólido e eterno, nos sobrevém uma sensação de desespero. Todavia, ainda que nada se perpetue pela eternidade, o descaso e a negligência poderiam ser evitados, não permitindo que o abandono se tornasse no mais triste dos fins (Fig. 6 e 7). Afinal, as coisas do mundo podem se transformar em outras coisas.
O cenário decadente que se observa em zonas urbanas e rurais do Estado de São Paulo, por exemplo, poderia, no mínimo, nos provocar uma reflexão acerca das nossas ações: ou encontramos um caminho coerente para alinharmos o estado geral das coisas e nossa possibilidade de recuperá-las ou mantê-las, ou assistiremos à multiplicação dos escombros a cada momento de transitoriedade.
A sensação de desespero e impotência que nos assalta ao constatarmos um “mundo que se desfaz”, seja pela negligência ou intenção do ser humano, pela força da natureza ou ambos, apenas é a expressão do nosso medo diante da morte. Desde criança observamos o quanto a matéria é frágil e se destrói com facilidade. Roupas, brinquedos, calçados, animais, pessoas – tudo o que se encontra diante de nós, em um momento se desmancha, se corrói, chega ao termo derradeiro, desaparece. Mesmo assim, convivendo diariamente, ano após ano com o impermanente e o transitório, ainda duvidamos que o nosso próprio corpo um dia vá se deteriorar e, por fim, falecer. Acreditamos que estamos seguros, que nossas casas de tijolos e cimento jamais ruirão, e que as técnicas e materiais utilizados em sua construção, perpetuarão suas paredes e telhados.
Portanto, conforme as nossas crenças e valores, não é de se estranhar que tenhamos ficado pasmos e aterrorizados quando, em 9 de março de 2001, Mohamed Omar, então chefe supremo do Talibã, ordenou a destruição de duas estátuas budistas em Bamiyan, no Afeganistão. Essas estátuas, de 53 e 37 metros de altura, respectivamente, foram esculpidas, entre tantas outras, nas rochas do Vale Hazarajat, entre os séculos IV e V a.C., época em que vários monges budistas habitavam as cavernas locais [17]. Sem dúvida, um patrimônio cultural da humanidade fora abatido por meio de uma decisão arbitrária de um líder de nação que fora contrariado pela falta de reconhecimento internacional do regime político-religioso ao qual servia com total confiança em suas leis e valores. Uma retaliação que se estendeu pelos três anos seguintes, deixando atrás de si o rastro da destruição de todas as representações históricas de uma cultura que lhe era avessa [18], (Fig. 8).
Embora o fato tenha se direcionado, posteriormente, para as questões econômicas e sociais relacionadas ao turismo local como meio para a reconstrução [19], o que o budismo, em si, pode nos ensinar sobre esses acontecimentos? Afinal, estátuas milenares de seu mestre maior foram derrubadas com violência. É na arte budista de fazer mandalas na areia que podemos extrair um valioso ensinamento sobre a filosofia de vida dos adeptos do budismo. Construídas com areia colorida sobre uma plataforma, os monges tibetanos utilizam-se de técnicas que fazem parte do seu aprendizado, como memorizar textos que especificam sobre proporções e posições que servem de guias para formatar a estrutura básica da mandala. Dedicam-se horas a essa construção, com muita atenção e concentração.
Porém, imediatamente após a conclusão, onde muitos ocidentais ficam deslumbrados com tanta dedicação e beleza, ocorre o desmantelamento das mandalas. Simplesmente são destruídas (Fig. 9). Este é o principal ensinamento da arte de fazer mandalas na areia: tudo na vida é impermanente, e o apego a qualquer objeto, coisa, pessoa, animal, ideia, costume, estilo de vida, conhecimento – enfim, o apego a tudo o que está sujeito à gênese condicionada, gera sofrimento, aflição, angústia, preocupação, ansiedade [20].
O ensinamento budista sobre impermanência, transcendência e diferentes percepções sobre a materialidade é ilustrado também na história – verdadeira ou não – dos monges tibetanos que teriam queimado uma estátua de Buda entalhada na madeira. A peça seria tão perfeita que era tida como a própria encarnação do mestre iluminado. Durante um rigoroso inverno, para garantir a sobrevivência, os monges já desabastecidos de lenha, teriam queimado a estátua e dado fim ao objeto sagrado, de exímia materialidade, seguramente apto a se tornar patrimônio cultural.
Entretanto, para os monges budistas, mesmo destruída a matéria, a representação de Buda continuou intacta, pois sua essência não estava ali, mas dentro de cada um dos seres. A necessidade de sobrevivência e o desapego fizeram com que os monges tivessem consciência, naquele momento, de que a matéria é apenas a matéria e seus significados dependem da contemplação de cada um [22]. Da mesma forma, o crucifixo sagrado do cristão, objeto de devoção e respeito, nada seria além de dois pedaços de madeira cruzados se a ele não lhe fossem atribuídos, por olhares específicos, uma simbologia e valores além da matéria [23].
Esse sentido atribuído à matéria que ultrapassa suas características evoca, portanto, seus valores simbólicos e assim, dá início a construção da cultura [24]. Nesta conjuntura, o símbolo pressupõe uma competência imaginária expressa por uma capacidade de ver as coisas “tais como elas não são”, criando-se um sentido cultural para além de sua constituição física [25]. As discussões que se estabeleceram sobre a relevância da matéria original que constituem os objetos de valor cultural, fomentaram novos entendimentos sobre a questão de suas autenticidades, tornando-a mais ampla [26]. É nesta conjuntura que podemos inserir o reconhecimento em 1994 do pavilhão dourado, parte do templo zen budista Rokuon-ji, localizado em Kyoto, e que se tornou conhecido pelo nome Kinkaku-ji. Construído em 1397, destruído e reconstruído diversas vezes, tornou-se Patrimônio da Humanidade, sem que para tanto as alterações da matéria lhe causassem prejuízos (Fig. 10).
Enfim, seja como for, da impermanência e da transitoriedade, ainda não escaparemos e haveremos de encontrar solução para o destino dos nossos bens culturais com seriedade, bom senso e respeito às nossas tradições [27]. Estejamos atentos, pois, às palavras do mestre budista, Tarthang Tulku, nas quais a sabedoria transcendental se faz presente: a vida é impermanente. Desperte!
Notas
[1] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª ed. brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução dos novos textos Ivone Castilho Benedetti. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Obra original publicada em Turim, Itália, 1971)
[2] MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Traduzido do espanhol por Antonio José Massano e Manuel Palmeirim. Lisboa: Publicações Quixote, 1978, p. 111.
[3] Sem maiores aprofundamentos nesta questão, talvez isto seja uma herança da filosofia ocidental clássica. Parmênides de Eleia (530-460 a.C.) afirmava que a realidade é atemporal, uniforme e indestrutível. Para Parmênides, a mudança era algo impossível, pois esta pressupõe uma alteração na natureza da realidade. Assim, a existência, em Parmênides, não muda, pois a realidade é única e imutável, sendo a substância que a constitui, isto é, sua essência, algo que jamais se altera com o tempo. (SANTOS, José Trindade. Parmênides: Da natureza. Leituras Filosóficas. São Paulo: Loyola, 2002).
[4] AIRES, Matias (1705-1763). Reflexões sobre a vaidade dos homens. (1ª ed.1752). São Paulo: Martins Fontes, 1941, p. 126.
[5] Referência a Gregório de Matos Guerra (1636-1696), em seu soneto A inconstância das coisas do mundo.
[6] SANTOS, Maria Carolina Alves dos. A lição de Heráclito. Trans/Form/Ação, São Paulo, 13: 1-9, 1990.
[7] YÜN, Hsing. Budismo: significados profundos. São Paulo: Escrituras Editora, 2011.
[8] Idem, p. 88.
[9] Ibidem, p. 89.
[10] AIRES, op. cit, p. 104.
[11] Idem.
[12] HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
[13] KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo: reflexos sobre sua preservação. São Paulo: Ateliê Editorial, Fapesp, Secretaria da cultura; 1998.
[14] JERONYMO, Vanice. Conflitos, impasses e limites na preservação do patrimônio industrial paulista: o caso da Perus (CBCPP). Tese de doutorado. São Carlos, 2016.
[15] As Indústrias Müller de bebidas produziram a aguardente 51 que deu visibilidade internacional à cidade de Pirassununga tornando-a conhecida como terra da cachaça.
[16] Aos bens que se deseja proteger como patrimônio tombado, geralmente atribuem-se valores ligados à sua historicidade, antiguidade, autenticidade, entre outros.
[17] BENEVIDES, Gilmara; ROBICHEZ, Juliette. A destruição intencional do Patrimônio Cultural no Afeganistão. Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Disponível em: <https://www.ibdcult.org/post/a-destrui%C3%A7%C3%A3o-intencional-do-patrim%C3%B4nio-cultural-no-afeganist%C3%A3o>. Acesso: 19 out. 2021.
[18] A destruição dos Budas de Bamiyan em nome do Islã gerou comoção e revolta na comunidade internacional. Na ocasião da destruição das duas estátuas, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Talibã afirmou que não recuariam e que nada seria poupado, sendo tal ordem de caráter irreversível. Após o ocorrido, a paisagem cultural e os vestígios arqueológicos do Vale Hazarajat foram inscritos na Lista do Patrimônio Mundial e na Lista do Patrimônio Mundial em Perigo, no ano de 2003.
[19] Cf. Países dividem-se sobre reconstrução dos Budas de Bamiyan. Disponível em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2014/04/paises-dividem-se-sobre-reconstrucao-de-budas-de-bamian-4464512.html>. Acesso em: 19 out. 2021.
[20] Cf. A criação e dissolução de uma mandala de areia, exemplo da impermanência. Disponível em: <https://www.budavirtual.com.br/criacao-e-dissolucao-de-uma-mandala-de-areia-exemplo-da-impermanencia/>. Acesso em: 19 out. 2021.
[21] Idem.
[22] BRITO, Luciana Oliveira de. O permanente e o efêmero: o conceito de patrimônio nas perspectivas do Ocidente e do Oriente. Trabalho de conclusão de curso. Universidade do Rio Grande do Sul. Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação. Curso de Museologia. Porto Alegre, 2011. Disponível: <https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/40080/000827136.pdf>. Acesso em: 20 out. 2021.
[23] LACERDA, Norma. Valores dos bens patrimoniais. In: ZACHETI, S. M.; LACERDA, Norma (org). Plano de gestão da conservação urbana: conceitos e métodos. Olinda: CECI – Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2012, p. 44-54.
[24] ARIAS, Patricio Guerrero. La cultura. Estrategias Conceptuales para comprender a identidad, la diversidad, la alteridad y la diferencia. Escuela de Antropologia Aplicada UPS-Quito. Quito: Ediciones Abya-yala, 2002. Disponível: <https://digitalrepository.unm.edu/abya_yala/10/?sequence=1>. Acesso: 20 out. 2021.
[25] LACERDA, op. cit., p. 48
[26] A partir do encontro ocorrido em 1994, no Japão, que culminou na Carta Patrimonial de Nara, a noção de Autenticidade tornou-se mais flexível e abriu possibilidades de reconhecimento, sobretudo, dos bens de origem oriental (JERONYMO, op. cit., 2016)
[27] Na filosofia Vedanta, inscrito na Taittiriya Upanishad (escritos que revelam a Verdade Absoluta da Realidade Transcendental), um dos estágios da existência humana é denominado Vanaprastha ou Compreensão Intelectual. Vanaprastha indica a necessidade de mudanças no padrão de continuidade dos processos sociais. Assim, quando a base de sustentação de algo se torna insustentável, se faz necessário deixar o passado comum e olhar para o futuro comum. Isto quer dizer que quando algum dever social já não corresponde à manutenção de sua continuidade, esta perturbação na continuidade de um processo (que tem por base o dever com o passado) precisa ser restabelecida, ou seja, modificada em suas bases. Somente assim, com reflexão e consciência, será possível não interromper a continuidade que, no caso, será renovada pela compreensão de que um novo fluxo de circunstâncias se fazem presentes (MEHTA, Rohit. O chamado das Upanixades. Brasília: Teosófica, 2014).
Vanice Jeronymo
Arquiteta e Urbanista, doutora em Arquitetura e Urbanismo, USP – São Carlos / SP. Especialista em Patrimônio Arquitetônico: Preservação e Restauro. Formação e Aperfeiçoamento em Yoga. E-mail: vanice.j@terra.com.br
Marcelo R. A. Augusti
Mestre em Ciências do Movimento, UNESP – Rio Claro/SP. Especialista em Yoga e Didática da Meditação. E-mail: marceloaugusti@uol.com.br