Sergio Rodrigues em Brasília de 1959 a 1968

I Entrevista com Marcelo Mari e grupo de pesquisa, por Priscila Rossinetti Rufinoni e Yuri de Lavor I

Esta entrevista trata da pesquisa intitulada “A influência do design brasileiro e os móveis institucionais de Sergio Rodrigues de 1959 a 1968”, levada a cabo pelo grupo multidisciplinar coordenado pelo professor e crítico de arte Marcelo Mari. O grupo, sediado na UnB, atualmente vem mapeando a participação do designer nas construções da Capital. A entrevista foi idealizada por Priscila Rossinetti Rufinoni, a partir de algumas perguntas norteadoras, e contou com a participação do coordenador do projeto, Marcelo Mari, bem como de seus alunos e orientandos, cujas apresentações constam desta entrevista, revelando a atuação de várias áreas do conhecimento e métodos de abordagem para a consecução da pesquisa. O atual projeto de pesquisa é financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP- DF) e pretende resultar em um livro.

A entrevista foi concedida a Priscila Rossinetti Rufinoni em julho de 2022 por reunião online. A transcrição, revisão e a edição para evitar possíveis repetições do texto ficaram a cargo de Yuri de Lavor. 


Priscila Rossineti Rufinoni: Há algum tempo Marcelo Mari vem se dedicando ao projeto moderno e à participação do mobiliário nesse contexto de modernização, notadamente em Brasília e na UnB. Já há publicações sobre o mobiliário da UnB organizadas pelo professor. Este novo projeto visa aprofundar a participação de Sergio Rodrigues tanto nas construções da nova capital, como na UnB. Vocês poderiam fazer uma breve apresentação do projeto? 

Marcelo Mari: Na verdade, este projeto é um desdobramento de uma pesquisa inicial, quando saímos pelo campus procurando móveis e nos informando das fontes do material bem esparso que havia aqui na Universidade de Brasília (UnB). Passamos mais de um ano fazendo esse trabalho – em 2013 e 2014 –, lidando com imagens e fontes. A experiência resultou no livro Mobiliário moderno: das pequenas fábricas ao projeto da UnB [1], que lançamos junto a diversos colaboradores – como Flávio Tavares e Cecília Loschiavo – em um seminário voltado à história da UnB e ao impacto do golpe militar sobre ela. Depois, houve uma proposta de dar continuidade à pesquisa sobre o patrimônio da UnB, contemplando quadros, esculturas, gravuras e móveis. Fui colocado nessa função, mas não pude ficar porque sairia do Brasil para fazer um pós-doutorado.

Nesse pós-doutorado em Bolonha, na Itália, pude acessar muitas coisas da história de Sergio Rodrigues e Carlo Hauner que não tinha visto aqui no Brasil. Então pensei em, quando voltasse, desenvolver um projeto sobre Sergio Rodrigues. Com o passar do tempo, fui executando trabalhos pequenos com alunos, como duas iniciações científicas com estudantes do Departamento de Artes Visuais com o objetivo de mapear o mobiliário na UnB. Uma das estudantes foi Stéfani Lima Araújo, que tirou fotos de um mobiliário que não estava no livro e fez um relatório de suas características. Na época, o Wryel, que é estudante de Letras, ajudou na pesquisa. Outro orientando e eu fomos atrás de novas fontes no Centro de Documentação (CeDoc) e pegamos imagens do campus, do mobiliário e tudo mais. Infelizmente esses projetos não foram para a frente naquela época. Os alunos têm muitos interesses e seguem com linhas de pesquisa diferentes na pós-graduação; por isso, não consegui aglutinar um grupo em torno da pesquisa de mobiliário. Continuei com minha outra linha de pesquisa com alunos de pós-graduação, sobre a história da crítica de arte no Brasil.

Na pós-graduação demoraram a vir os frutos das pesquisas. O projeto do mobiliário ainda está um pouco deslocado, talvez por conta do programa. Dentro do Programa de Artes Visuais, o mobiliário possui uma pegada própria, o que até explica os integrantes do grupo: tanto o Flávio [Yukata Oshiro] quanto a Beatriz [Leivas de Medeiros] são arquitetos formados e estão fazendo o curso [de Teoria, Crítica e História da Arte] como segunda graduação. O público de mobiliário é ainda muito específico, de modo que por enquanto o assunto não tem muita aderência nem no programa do departamento nem no programa da pós-graduação. Mas aos poucos vejo que a coisa está amadurecendo.

Como já tinha feito toda uma pesquisa desde aquelas iniciações científicas, resolvi concorrer a uma bolsa de demanda espontânea da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP-DF), parte do Edital 04/2021. Foi aprovado o projeto, que tinha o título “A influência do design brasileiro e os móveis institucionais de Sergio Rodrigues de 1959 a 1968”. O objetivo geral do trabalho era pegar aquilo que Sergio Rodrigues fez em Brasília para além da UnB, que já tínhamos estudado quando elaboramos o livro Mobiliário Moderno. Como tínhamos visto esse capítulo da história do mobiliário na obra de Sergio Rodrigues para a UnB, pensei em ampliar o tema para estudar sua contribuição no aparelhamento dos prédios públicos de Brasília, durante um recorte temporal um pouco maior. O projeto tem certa originalidade. A pesquisa ainda não foi feita de maneira mais sistemática, a fim de congregar toda a produção de Sergio Rodrigues em Brasília, mas fizemos diversos estudos – alguns pontuais e bem interessantes, sobre o Palácio Itamaraty e a UnB. Optamos inclusive por aumentar um pouco o recorte temporal, contemplando desde a inauguração do Catetinho até a produção das poltronas dos auditórios do Teatro Nacional Claudio Santoro e do Cine Brasília.

O estudo então conta com esse recorte temporal e se volta à atividade de Sergio Rodrigues em dois momentos: o primeiro é o momento da fundação de Brasília. Nesse período, seus móveis têm um caráter experimental e mesmo artesanal. O Flávio Oshiro e eu também chegamos à conclusão de que precisamos incluir no livro que pretendemos publicar, cujo título provisório é “Sergio Rodrigues em Brasília”, algo que fale sobre o sistema construtivo de Sergio Rodrigues. Trata-se de um capítulo importante de sua obra, e mais importante ainda em Brasília, porque os projetos – as maquetes apresentadas a Juscelino Kubitschek na famosa exposição do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) em 1960, a habitação individual montada no terreno próximo ao prédio do MAM, no Aterro do Flamengo – foram realizados efetivamente aqui. Temos dois exemplares fundamentais: a sede do Iate Clube de Brasília e a residência dos professores no campus da UnB. Foi a primeira vez que esse sistema foi testado. A UnB tinha a característica de ser um campo experimental de exemplos que pudessem ser produzidos em série, quase como um espaço de experimentação de alternativas mais baratas para produção em série de casas populares – algo de que Sergio Rodrigues fala na revista Módulo. Esse aspecto de seu sistema construtivo, feito aqui em Brasília, é uma novidade e integra a primeira época, assim como o mobiliário produzido para o Auditório Dois Candangos. Já tive relatos de que ele teria feito móveis para o Catetinho, mas não encontramos nada a respeito; pelo menos o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) não catalogou nenhum móvel. Esse é um dos nós da pesquisa que ainda não conseguimos resolver.

A fase inicial da obra de Sergio Rodrigues é importantíssima para sua carreira porque lhe dá a oportunidade de fazer coisas no exterior, como no Palazzo Doria Pamphilj – na Embaixada do Brasil em Roma –, e de meados dos anos 1960 em diante uma de suas produções mais importantes no registro de Brasília: sua contribuição para o Itamaraty, que faz parte de todo um corpo de síntese das artes. Quem de certa forma auxiliou a entrada de Sergio Rodrigues no Itamaraty foram Olavo Redig e Wladimir Murtinho.

A segunda fase é aquela da Oca [2] pós Sergio Rodrigues, por assim dizer. As poltronas do Teatro Nacional, por exemplo, foram feitas pela Oca a partir do desenho de Sergio Rodrigues, mas ele não era mais sócio-proprietário da loja. Então, embora nessa nova fase ele tenha projetado as poltronas, ele não as executou; foram empresas que as executaram, mesmo porque Sergio não tinha mais fábrica. A ideia é contar um pouco dessa história.

Priscila: Pelo que Marcelo descreve, já se percebe que uma das características do grupo é a multidisciplinaridade, incluindo arquitetos e estudantes de diversas áreas, o que, necessariamente, implica multiplicidades de métodos e abordagens. Vocês poderiam apresentar o grupo de trabalho e os métodos de pesquisa?

Marcelo: O grupo pretende ser interdisciplinar. Eu sou da área de Filosofia. Outro integrante é o Wryel, que é da área de Letras. Em 2019, Wryel acompanhou a Stéfani no processo de medir móveis, tirar fotos, toda essa parte de classificação. Já o Flávio [Yukata Oshiro]  tem formação em Arquitetura pela Universidade de São Paulo (USP). Ele é um estudante do curso altamente qualificado, porque já é formado em arquitetura e pretende fazer uma pesquisa sobre o mobiliário para produzir o capítulo sobre o Teatro Nacional do livro. Temos trocado figurinhas; não iniciamos ainda o texto porque estou ocupado com muitas coisas, mas nossa pesquisa já está bastante avançada.

A Beatriz [Leivas de Medeiros], também formada em Arquitetura e aluna do Departamento de Teoria, Crítica e História da Arte, entrou no projeto depois. Estávamos conversando sobre o Cine Brasília e comentei com ela que não tínhamos nenhuma fonte primária para esse trabalho. Ela foi ao arquivo e achou um material superbacana das plantas, viu que seria a Herman Miller que faria as poltronas. Esse material inclusive contribui muito para a pesquisa do Flávio, porque se volta praticamente ao mesmo período em que Sergio Rodrigues não tem mais fábrica. Assim, ele faz o desenho, mas quem executa são outras empresas. No caso específico do Teatro Nacional foi a Oca pós-Sergio; no caso do Cine Brasília, tudo leva a crer que tenha sido a Herman Miller, que era a representante da marca aqui no Brasil e cuja sede estava em São Paulo, mas isso ainda estamos pesquisando.

Fig. 1 – Planta do auditório do Cine Brasília, feita por Milton Ramos, com detalhamento de poltrona, plateia e piso, c. 1974 (fonte: Arquivo público do DF, Novacap).

 

Fig. 2 – Vista do Cine Brasília, recém-inaugurado, 1975. (fonte: Arquivo público do Distrito Federal).

 

Fig. 3 – Visão da plateia do Cine Brasília, após finalização de reforma conduzida por Milton Ramos a pedido de Wladimir Murtinho, onde se encontravam as poltronas de Sergio Rodrigues, 1975. (fonte: Arquivo público do DF, Novacap).

 

Fig. 4 – Vista geral da disposição do mobiliário de Sergio Rodrigues no Auditório do Cine Brasília, ao fundo, painel de Athos Bulcão, 1975 (fonte: Arquivo público do DF, Novacap).

Marcelo: O Átila [Gregório Franco Rocha], que é formado em Museologia, está desde o começo no projeto, e nosso trabalho juntos começou de uma pista meio equivocada. Tive uma informação no Instituto Sergio Rodrigues de que Sérgio Rodrigues havia trabalhado no mobiliário do Ministério da Justiça. Fomos lá e fizemos uma reunião com os responsáveis pelo patrimônio, mas não achamos nada. Quando fui visitar o instituto, eles pediram desculpas pela informação imprecisa; o mobiliário era da Justiça do Paraná [risos]. Com isso, mudamos o foco. Átila está tentando achar algo no Senado, porque no Senado sabemos ter muitas coisas de mobiliário que foram compradas nos anos de 1960 e de 1970, principalmente. Alguns senadores fizeram seus gabinetes com móveis de Sergio Rodrigues; uns dois ou três anos atrás houve uma exposição desse mobiliário no Senado. Vamos fazer uma reunião com o museólogo do Senado para ver o que é possível pesquisar por lá agora. O Marcos [Antony Costa Pinto], escultor e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, conhece muito sobre madeira e se interessou por Sergio Rodrigues por conta desse assunto, vendo os encaixes da madeira, as cadeiras da UnB. Há também toda uma relação afetiva com a universidade.

Priscila: A seguir os integrantes do grupo poderiam se apresentar?

Beatriz Leiva de Medeiros: Me formei em Arquitetura há um ano. Eu iniciei o curso de Teoria, Crítica e História da Arte em paralelo ao curso de Arquitetura em 2017, mas tive de parar quando comecei a trabalhar. Depois de ter me formado arquiteta, voltei para terminar o curso, porque são duas graduações complementares. Gosto muito da área de patrimônio, então, pretendo seguir esse caminho. Logo quando estava me matriculando, vi o anúncio do projeto de pesquisa no portal da UnB; mandei uma mensagem para o professor, ele me respondeu e entrei logo em seguida. Ele me apresentou a vertente de pesquisa do Cine Brasília, e então comecei a focar nessa área. Tenho encontrado um material muito interessante. Estou aos poucos me inteirando cada vez mais do projeto e chegando a resultados interessantes.

Flávio Yukata Oshiro: Também estudei Arquitetura. Estive distante da academia por um tempo, mas mais recentemente decidi estudar Teoria, Crítica e História da Arte como segunda graduação. O período modernista sempre me chamou a atenção, desde quando estudava Arquitetura, e o mobiliário vem me interessando já há algum tempo. Tenho um hobby com alguns amigos de, eventualmente, fazer móveis. Quando soube da pesquisa do professor Marcelo, fiquei muito interessado em poder aprender mais sobre o mobiliário modernista, e Sergio Rodrigues era uma figura que eu não tinha estudado muito. Sou de São Paulo e vim para Brasília. A produção de Sergio Rodrigues se inicia no Rio de Janeiro, com uma passagem rápida por São Paulo, mas eu sinceramente não a conhecia. Então foi um conjunto de interesses que me trouxe à pesquisa.

Wryel Lima de Jesus: Sou estudante de Letras – Português. A princípio me interessei pelo assunto por conta da pesquisa que tinha feito com a Stéfani, ex-orientanda de Iniciação Científica do professor Marcelo Mari. Foi um processo muito rápido; ela vinha tirar fotos do mobiliário da UnB e acabei participando do processo de tirar fotos com ela, para ajudá-la, pois algumas salas estavam trancadas, algumas portas estavam emperradas. E como somos amigos, por companheirismo. Meu interesse se deu principalmente porque, no período em que ingressei no projeto, vinha fazendo algumas matérias relacionadas, transversalmente, ao tema, como modernismo brasileiro e uma matéria de literatura contemporânea. Nesse momento, a Stéfani comentou da possibilidade de participar do projeto, e, em seguida, falei com o professor e entrei. Não conhecia muito sobre o Sergio Rodrigues, mas ingressei também porque pretendo fazer o curso de Teoria, Crítica e História da Arte depois de finalizar Letras, e acabei me interessando muito pela produção de Sergio Rodrigues e ainda mais pelo curso futuro.

Átila Gregório Franco Rocha: Me formei em Museologia em 2020 e enveredei para a área de conservação e restauro. Em 2021, tive a oportunidade de trabalhar na Câmara dos Deputados, na Coordenação de Preservação de Bens Culturais, e lá tive o primeiro contato com o acervo de Sergio Rodrigues. Fiquei fascinado de conhecer tête-à-tête seus modos de produção, as técnicas e encaixes que ele desenvolvia. Posteriormente, uma colega que fazia parte do grupo me mandou um convite pelo WhatsApp; entrei em contato com o professor e fui admitido. Como estou trabalhando na Esplanada dos Ministérios, fiquei com a missão de investigar os órgãos próximos dali. Como o professor Marcelo já mencionou, investigamos a questão do Ministério da Justiça; agora estamos focando o Senado – e os bons contatos da Câmara também ajudam a desenvolver a pesquisa.

Marcos Antony Costa Pinheiro: Sou doutorando em Artes Visuais, na linha de pesquisa de Métodos e Processos. Minha produção envolve marcenaria e intervenção urbana. Dentro do meu processo, revisito o processo de construção de Brasília, principalmente a construção da capital e como se deu a dispersão nos arredores, na geração das periferias. Meu objetivo é traçar o contraste entre dois pontos antagônicos na esfera do urbanismo: por um lado, o mais orgânico da periferia; por outro, Brasília enquanto processo, enquanto algo mais formal, consagrado na arquitetura. Estagiei durante alguns anos na Maquete, um laboratório atrelado ao Departamento de Artes, e tive contato com muitos móveis de Sergio Rodrigues que estavam por lá, de certa maneira, jogados. Eles iam para lá em determinado momento para serem restaurados, mas, como não existia mais essa política, um cuidado com esses materiais, eles ficaram lá abandonados. Depois de algum tempo, foram retirados todos e enviados para o almoxarifado central. Havia certo controle: os móveis não poderiam desaparecer – e era impossível que eles não desaparecessem, pois faltava um cuidado no confinamento dos mesmos –, estavam lá para conserto, mas ao mesmo tempo eles não retornavam para o uso. Por isso foi feito um levantamento e eles foram para o almoxarifado. Meu contato com algumas peças do mobiliário veio da experiência de reconstruir os móveis para serem utilizados no espaço da maquete, uma preciosa oportunidade de aprender a artesania presente na construção dos móveis, por convivência com esse mobiliário testemunhei muita coisa ser perdida. Aspectos da obra de Sérgio Rodrigues que mais me tocam é o uso da madeira, seus encaixes de maneira sucinta e simples. Outro é a questão da linha de produtividade destes, procuro traçar nessa pesquisa em curso, como se deu a entrada dos móveis de Sergio Rodrigues na questão de nicho de mercado, a criação das lojas, então estou pesquisando a parte da Oca em Brasília, como foi seu processo de abertura, por meio de conversas com pessoas que fizeram parte disso. Tenho feito contato com Gisele Schwartsburd e com outros designers daqui para recontar essa história, tentando entender o declínio desses móveis bem elaborados para o consumo de massa.

Maria Clara Rocha, apresentada por Priscila Rossinetti Rufinoni: a Maria Clara também faz parte da pesquisa, mas não pôde estar presente. Ela é mestranda em Filosofia, e estuda algo mais voltado para o romantismo, para a estética, sobretudo Walter Benjamin. Mas nós trabalhamos juntas na UnB, em um projeto de extensão, sobre a cidade a partir da noção de utopia, então líamos Thomas Morus, A república de Platão, e visitávamos escolas perguntando sobre qual deveria ser a comunidade ideal. Essa pode ser a relação que se estabeleceu entre o projeto “utópico” filosófico e os projetos modernistas de Brasília.

Priscila: Sobre a pesquisa propriamente, qual é a importância do design de móveis para a arquitetura e mesmo para o pensamento do urbanismo moderno? E, dentro dessa perspectiva geral, como se localiza a figura de Sergio Rodrigues?

Beatriz: A importância do design de móveis para a arquitetura se dá por uma relação quase que complementar entre os dois. O próprio Sergio Rodrigues trabalha muito esse ponto. Para ele, o design de móveis aparece como um elemento capaz de contribuir com o partido arquitetônico, atendendo às necessidades de uso dos espaços e destacando um valor conjunto entre o edifício e o seu interior. Um pode valorizar o outro: para chegar ao melhor resultado, um projeto arquitetônico necessita de um bom mobiliário, assim como um bom mobiliário necessita de um bom projeto para chegar às suas funções finais. Já a relação do urbanismo moderno com o mobiliário se dá na ideia de um novo jeito de viver nas cidades que surge com as inovações tecnológicas. O mobiliário faz parte desse modo de viver a cidade em um novo estilo de vida, a partir das possibilidades construtivas trazidas pela Revolução Industrial. No livro “Fortuna crítica” [3], que estamos lendo, Sergio Rodrigues afirma que o mobiliário entra neste conceito de universalidade do modernismo, de maneira que essa ideia forte do urbanismo também vinha sendo aplicada ao mobiliário. Acredito que nesse ponto Sergio Rodrigues surja como inovador. Ao mesmo tempo que quer utilizar desses novos elementos, dessas tecnologias, de tudo que a Revolução Industrial proporcionou, ele pretende trazer um caráter brasileiro, fugindo um pouco dessa universalidade do modernismo. Sergio aparece como um designer, como um arquiteto de interiores que quer ligar a tecnologia à cultura de origem do mobiliário, aos materiais, ao jeito brasileiro de viver. Sergio Rodrigues ficou conhecido mundialmente – quase como um precursor do design brasileiro – por ser capaz de realizar essa intenção, levando o design brasileiro à escala industrial sem tirar dele suas características brasileiras.

Marcelo: Houve uma geração de arquitetos que não se preocupava muito com a questão do interior. Sergio Rodrigues foi um dos primeiros a dizer que deve haver um pensamento sobre o interior para que ele funcione da melhor maneira possível, para que ele converse com a arquitetura e atenda às necessidades reais da pessoa que viverá naquele espaço. Sua preocupação sempre foi alinhar o espaço interior às necessidades individuais, subjetivas. Quando curou o livro “Fortuna crítica” pelo Instituto Sergio Rodrigues, Afonso Luz teve a visão de selecionar textos inéditos de Sergio Rodrigues – publicados pela revista “Senhor”, atual “IstoÉ” – em que o designer faz um tipo de crítica da arquitetura, do pensamento das necessidades cotidianas, da modernização, mostrando qual seria a nova função do design de interiores, algo requisitado e que no Brasil era muito inicial. Nos anos 1950, 1960, ainda não havia algo do tipo estruturado no país, e os textos de Sergio são seminais na discussão desse assunto com um público de classe média, tentando justamente debater a questão do gosto público, do gosto pela arte e pela arquitetura modernas.

Priscila: Sergio Rodrigues teve uma ampla atuação em Brasília como já comentamos. Quais seriam os aspectos principais a serem ressaltados a partir da pesquisa in loco nos arquivos locais?

Flávio: No âmbito do Teatro Nacional, o professor já tinha trazido a informação de que o desenho das poltronas era de Sergio Rodrigues. Por meio de nossas pesquisas e leituras – conversamos também com um pesquisador que estudou o Teatro Nacional mais a fundo –, buscamos descobrir como essas poltronas chegaram ao Teatro Nacional. Inicialmente, imaginávamos que elas teriam pertencido ao período inicial, mas as pesquisas mais recentes nos levaram a verificar que elas foram implantadas no período de 1976 a 1978, na reforma do teatro. Agora estamos partindo da premissa de que o projeto de Oscar Niemeyer – ainda que date de 1958, e ainda que o teatro tenha funcionado, mesmo que provisoriamente, em 1966 e 1976 – funcionou de outra maneira, com outras poltronas. Apenas em 1976 foi escolhido o projeto de Sergio Rodrigues, que já não era mais sócio da Oca; as poltronas foram produzidas na Oca, mas sem que Sergio tivesse participação como sócio proprietário.

Fig 5 – Vista geral da sala Martins Penna do Teatro Nacional Claudio Santoro (fonte: Laudo técnico Teatro Nacional, SUPAC-SECEC, GDF, 2014).

 

Fig 6 – Aspectos do estado de conservação do mobiliário da Sala Martins Penna do Teatro Nacional Claudio Santoro, 2014 (fonte: Laudo técnico Teatro Nacional, SUPAC-SECEC, GDF, 2014 ).

 

Fig 7 – Vista lateral ressaltando o aspecto de conservação da Sala Villa Lobos do Teatro Nacional Claudio Santoro (fonte: Laudo técnico Teatro Nacional, SUPAC-SECEC, GDF, 2014).

 

Fig. 8 – Teatro Nacional Claudio Santoro, 2022 (fonte: foto de Flávio Yukata Oshiro).

Marcelo: Uma das coisas importantes que você trouxe é que a retomada da reforma e a finalização do Teatro Nacional só foram feitas depois do Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília, cuja primeira edição ocorreu em 1974 no Senado.

Flávio: Por meio da dissertação de Eduardo Soares [4], que estudou o Teatro Nacional, vimos que a decisão pela retomada das obras do teatro, que estava funcionando de maneira provisória desde 1966, teria ocorrido nesse seminário. Formou-se lá uma comissão que discutiu os problemas urbanos de Brasília, e Lúcio Costa foi convidado a fazer uma fala. Lemos as transcrições de sua fala e, aparentemente, decidiu-se pela retomada de algumas obras importantes que estavam abandonadas. Lúcio Costa faz um comentário muito relevante a respeito das escalas de Brasília. A escala gregária, na qual está inserido o Teatro Nacional, tinha ficado pendente desde a implantação, embora a escala residencial já estivesse funcionando, ainda que provisoriamente e de uma maneira um pouco diferente do plano inicial. Portanto, todas as dimensões do Plano Piloto estavam mais ou menos encaminhadas, exceto a escala gregária. Esse foi o momento que teria motivado a retomada das obras. O arquiteto Milton Ramos, que já havia trabalhado na construção original do Teatro Nacional e do Itamaraty, foi indicado para coordenar as obras de reforma e, mais do que isso, fazer o projeto do Anexo, que data de 1976, com execução de 1976 a 1978. A inauguração só ocorreu em 1981, já com as poltronas de Sergio Rodrigues e os painéis de Athos Bulcão, mais próximo do formato que vemos hoje – embora o Teatro Nacional esteja interditado desde 2014.

Marcelo: Esse é um dado muito importante, assim como as modificações que Milton Ramos teve de fazer dentro do Teatro Nacional. Na atual etapa da pesquisa, estamos investigando como Sergio Rodrigues foi contratado, informação que ainda não temos.

Flávio: Sim, estamos na busca. Encontramos uma carta em que Sergio Rodrigues entrega o primeiro projeto das poltronas, mas ainda estamos mapeando seu vínculo desde a contratação, o fornecimento dos projetos e a aprovação até o fornecimento final dos móveis.

Marcelo: Outro detalhe importante é o paralelo que Eduardo Soares faz entre aquilo que foi buscado em termos de síntese das artes no Itamaraty e aquilo que se tentou fazer no Teatro Nacional.

Flávio: Mesmo os personagens se repetem. Aparentemente o próprio Wladimir Murtinho teria indicado a participação de Milton Ramos, que já havia trabalhado no Itamaraty. Os princípios projetuais também acabaram seguindo uma linha desde o Itamaraty – com a integração entre arquitetura, mobiliário, artes, paisagismo – até o Teatro Nacional, algo que não estava tão detalhado nos traços iniciais de Niemeyer, por exemplo. O jardim interno do Teatro Nacional parece uma decisão de um segundo momento, em que o paisagismo adentra o edifício; a lâmina de vidro o permite, e há uma ventilação permanente. Lá se encontram diversas obras de arte de Athos Bulcão e Alfredo Ceschiatti. Trata-se de obras de arte importantes em lugares privilegiados da arquitetura, o que mostra uma integração muito presente entre arte, arquitetura, paisagismo e design de mobiliário, mas na linhagem que vem desde o Itamaraty; as poltronas de Sergio Rodrigues – talvez um pouco avançadas pelas cores e tudo mais – são um tanto diferentes do ponto de vista plástico, mas a lógica projetual persiste, com uma integração plena herdada do Itamaraty.

Marcelo: Esses resultados de pesquisa são extraordinários para pensar a trajetória de Sergio Rodrigues e o significado de sua obra aqui em Brasília.

Beatriz: Embora esteja situado na escala residencial, o Cine Brasília, enquanto ponto de encontro e ações culturais, também se associa a este resgate e valorização da escala gregária da capital. Sua reforma ocorreu em 1974, um pouco antes da reforma do Teatro Nacional, mas integra o mesmo período. Com a pesquisa, pudemos constatar que as poltronas do Sérgio Rodrigues não foram executadas durante o projeto original da década de 60, mas sim durante o projeto de reforma, também liderado pelo arquiteto Milton Ramos. Durante a pesquisa, fui primeiro ao IPHAN, mas os documentos não estavam lá. Então fui ao Cine Brasília, conversei com alguns funcionários que me informaram que essas informações haviam sido transferidas para o Arquivo Público do Distrito Federal. No arquivo, existem desde as plantas do projeto original de Niemeyer, os primeiros croquis, até o projeto da reforma de 1974. Em uma das pranchas do projeto, está o detalhamento da poltrona de Sergio Rodrigues, que deveria ser feita pela Herman Miller. Só confirmamos que a poltrona era de Sérgio porque comparamos a planta – em que consta apenas “Herman Miller” – ao desenho técnico original das poltronas, que o professor tinha conseguido com o Instituto Sergio Rodrigues. Apenas em 1974 as poltronas foram executadas, além de um painel grande de Athos Bulcão. O fenômeno do Teatro Nacional se repete em menor escala no Cine Brasília. Estamos no ponto de entender o que aconteceu e a relação do Cine Brasília na escala urbana, como ele se enquadra no contexto de superquadras – ele inclusive está inserido na quadra-modelo, um local muito importante e icônico de Brasília. É nessa perspectiva que entenderemos o Cine Brasília daqui para a frente.

Marcelo: Estamos avançando na tentativa de saber se o projeto foi de fato executado pela Herman Miller, o que é uma informação ainda vaga. No caso do Teatro Nacional, temos certeza de que a Oca – então de outros proprietários – executou as poltronas, porque ganhamos um depoimento de Freddy Van Camp, arquiteto que fez a prototipagem da poltrona na Oca. Para o Cine Brasília, estamos buscando essas informações para fazer o melhor levantamento possível dos dados e fornecer uma resposta consistente. Beatriz observou bem que há ali um projeto cultural também ligado à figura de Wladimir Murtinho, então secretário de Cultura. Ele foi responsável pela retomada desses espaços culturais em Brasília. Também nesse caso é preciso pensar o tema da integração entre artes visuais, mobiliário e arquitetura, aspecto que parece endereçar a construção do todo do Cine Brasília e que vem da experiência do famoso Seminário de Estudos dos Problemas Urbanos de Brasília. Nessa ocasião, inclusive, Lúcio Costa volta a Brasília depois de ter ficado muito tempo sem visitar a cidade. Tendo a impressão de que as pessoas queriam desistir do Plano Piloto, ele retorna com sua fala de autoridade, por assim dizer, reforçando a importância do Plano Piloto, sugerindo uma série de obras e insistindo na necessidade de ações a fim de que o projeto seja de fato implementado. Um dos elementos foi a cinta verde, que vimos ser insistentemente comentada por ele nas transcrições. O Flávio mesmo disse que Brasília parecia uma maquete, sem nenhuma árvore. Essa é uma pesquisa paralela ao nosso tema principal, mas que conflui para a recuperação da história de Brasília na época.

Wryel: Minha pesquisa é mais teórica do que prática, voltada a mapear informações em jornais e revistas. São muitas informações, mas que, às vezes, giram em um espiral; o que encontramos nesses jornais e nessas revistas são informações sobre a vida do arquiteto e o itinerário de suas produções: o Palácio, a Câmara, o Itamaraty. Nas informações, se fala muito da Câmara dos Deputados ter passado por uma grande retirada do mobiliário de Sergio Rodrigues, sobre as cadeiras do Cine Brasília, desconfiguração de móveis. Neste momento estou focando no “Índice de Arquitetura Brasileira”, que o Flávio me enviou para análise de alguns artigos.

Marcelo: O Wryel começou seu trabalho com uma pesquisa de periódicos em geral, mas mais relacionada à base de dados da Biblioteca Nacional, a Hemeroteca, em que constam os jornais. Trata-se normalmente de notícias episódicas, de colunas sociais [risos], o que não traz grandes novidades. Agora ele está consultando textos de revistas especializadas. Ele já havia pesquisado a revista Módulo e a revista Casa e Jardim, e agora está procurando outros artigos de Sergio Rodrigues dentro de um inventário sobre bibliografia de arquitetura feito pela USP.

Átila: Quanto ao meu trabalho, inicialmente investigamos o Ministério da Justiça. Entramos em contato com o arquivista do ministério e fizemos a visita, mas não achamos nada no prédio. Uma coisa interessante foi nossa ida ao auditório; apesar de não termos certeza, o professor e eu pensamos que as poltronas poderiam ser de Sergio Rodrigues, mesmo por toda a formação do interior do auditório, que possuía algumas características marcantes do modernismo. Passada a fase do ministério, agora focaremos o Senado e o Congresso como um todo, que abriga grande parte do acervo de Sergio Rodrigues em muitos tipos: estantes, mesas de centro, mesas de trabalho, luminárias, expositores… Lá — assim como no Palácio do Planalto — existem algumas peças bastante inusitadas, como a Poltrona Beto, que usa predominantemente o metal – um elemento pouco marcante no trabalho do designer, que é sempre rememorado por sua atuação com a madeira. Sergio Rodrigues também mostra sua brasilidade com o uso da palhinha, como na Poltrona Oscar e na Cadeira Lúcio, itens também encontrados como acervo do nosso Palácio Legislativo.

Priscila: Os móveis e os projetos de Sergio Rodrigues não só estavam em consonância com projetos contemporâneos universais, mas também traziam notas locais. Como entender essa equação do que há de mais universal e contemporâneo com o que há de tradicional e brasileiro?

Flávio: Na arquitetura da época em que Sergio Rodrigues começou sua produção, o modernismo já tinha adquirido características brasileiras. Todos aqueles preceitos internacionais já tinham vindo para cá, a interação com Le Corbusier já tinha sido feita nos anos 1930; logo, já havia a leitura de uma arquitetura moderna e brasileira. Isso pode ser visto na produção de Niemeyer em Brasília, que, apesar de contar com características do modernismo internacional, possui uma linguagem muito brasileira. O mesmo vale para Lúcio Costa: em suas ideias para o Plano Piloto vemos justamente seu conhecimento de uma tradição internacional de longa data, de toda a história da produção de cidades, mas sempre acompanhado de uma brasilidade muito característica. Sergio Rodrigues está nesse contexto e, apesar de ter uma percepção do que era produzido internacionalmente, sempre fez um desenho muito brasileiro. Podemos falar da Poltrona Mole, seu primeiro sucesso internacional. Ele ganha com essa poltrona um concurso na Itália em 1961, momento em que a Europa produzia móveis com outra linguagem: muito esbeltos, muito finos, de estrutura metálica. A Poltrona Mole é robusta, é algo diferente. Assim, Sergio Rodrigues consegue projeção com uma linguagem brasileira, quase oferecendo um jeito brasileiro de interagir com os móveis, um jeito brasileiro de se sentar, de ter uma mesa. Essa distinção é perceptível do ponto de vista de projeto, ergonomia etc. – aspectos com os quais Sergio Rodrigues era muito preocupado e que conseguia manusear bem em seus projetos – e também do ponto de vista dos materiais, com madeiras brasileiras, o couro – muito identificado com a tradição brasileira –, a palhinha trançada, elementos que dão brasilidade, embora dentro de um contexto internacional. Sergio sabia ver qual era o gosto internacional e como ele se rebatia no Brasil. Há aí também um aspecto histórico: Sergio entendia qual era o modo de produção brasileiro. A Europa já contava com uma produção de fato industrializada, em série, em escala, por métodos industrialmente mais avançados. O Brasil estava no momento de uma industrialização ainda muito incipiente, em que os móveis eram produzidos de maneira artesanal. Nessa transição de uma produção artesanal para uma produção que queria ser industrial, em série, em escala, Sergio Rodrigues – por meio de seu desenho, seu projeto, sua concepção, considerando a forma e o processo produtivo – consegue fazer uma síntese disso tudo e oferecer produtos que têm vida longa, que de fato foram eficientes nesse sentido.

Marcelo: Existia um gap entre a capacidade de produção em série que víamos nos países centrais e a capacidade de produção do Brasil. A modernização brasileira foi uma grande aventura que a geração de Sergio Rodrigues assumiu tentando dar conta de algo que faltava ao Brasil: não havia uma indústria nacional que oferecesse os materiais da maneira necessária; sempre houve solução de adaptação. A Poltrona Candango é isso: Sergio Rodrigues pega um aro de motocicleta para fazer o balanço do assento. A solução improvisada faz parte do contexto de industrialização. Pretendia-se seguir o processo de industrialização, mas os móveis de Sergio Rodrigues nessa fase – nos anos 1950, 1960 – ainda são muito artesanais. Alguns chegam a dizer que há diferenças de altura das gavetas em alguns móveis, devido ao fato de esses móveis terem sido feitos como obras únicas. Tentou-se dar um salto para a produção em série; a Oca é um exemplo dessa tentativa. Mas em determinado momento isso não foi possível por deficiências locais da cadeia produtiva, que não fornecia as coisas tal como era preciso. O desenvolvimento da cadeia produtiva brasileira foi um problema para a geração que tentou produzir em série, e não só no mobiliário; o exemplo da habitação individual de Sergio Rodrigues, depois conhecido como SR2, também não foi implementado. Embora tenha sido adotado como uma boa ideia na época de Kubitschek, esse projeto não teve continuidade, porque foi difícil a passagem a um produto de escala industrial para atendimento do mercado de consumo interno.

Priscila: Muitos desses móveis ou não existem mais, ou sequer foram executados, como entender essa característica lacunar da experiência moderna brasileira, mesmo tendo em vista um projeto tão amplo como Brasília?

Flávio: Em relação aos projetos que não foram executados, é muito comum, no processo criativo das artes, da arquitetura e do design, que uma parte do que é imaginado acabe não sendo construído, mas em relação ao mobiliário desse momento, do início de Brasília, parece haver outras questões até mais relevantes, como por exemplo, o fato de haver uma indústria ainda incipiente na produção de móveis (naquela época ainda se estava na transição de uma produção artesanal para a produção industrial, feita em série e em larga escala). Por outro lado, havia uma questão relacionada ao mercado: o gosto pelo móvel moderno ainda estava se disseminando, o público que se interessava por esse tipo de móvel era ainda muito restrito e foi-se ampliando aos poucos. Havia, então, uma grande dificuldade de conexão entre a demanda e a produção. Nos palácios oficiais de Brasília, por exemplo, há notícias de que, inicialmente, o mobiliário adotado constituía-se de peças características do início do modernismo europeu e aos poucos é que foram sendo incorporadas peças de designers brasileiros. Em relação aos móveis de Sergio Rodrigues que não existem mais, chama a atenção a falta de informação a respeito de como foram adquiridos os móveis, suas características, dados técnicos, projetos, registros fotográficos, em que lugares, edifícios ou instituições estavam e por qual período. Não há quase informação sobre esses acervos. E são desconhecidos os destinos desses móveis. Há notícias a respeito de apartamentos e residências funcionais que tiveram sua decoração feita a partir de mobiliário moderno, que acabou, em algum momento, sendo substituído por conta do gosto de seus ocupantes. E não se sabe que destino tiveram essas peças. Ainda em relação à falta de informações desse período: nas pesquisas a respeito do palácio do Catetinho, há notícias de que ali, inicialmente, teriam sido utilizados móveis de Sergio Rodrigues, porém não há muito mais informação do que isto; é difícil saber quais eram os móveis, como chegaram ao palácio do Catetinho, em que momento foram substituídos e para onde foram. Há uma parte desses móveis que acabou ficando em depósitos ou simplesmente fora de uso e que eventualmente são encontrados. Uma parte, por sorte, acaba passando por um processo de restauro, mas neste caso, são iniciativas isoladas; não há um processo sistemático de conservação e de restauro desses móveis.

Priscila: Os móveis e projetos de Sergio Rodrigues ainda existentes sofrem com desfigurações e falta de cuidado? Há um pensamento atual que visa o restauro e a preservação dessas peças? E há especulação de leilões e afins em torno desse legado?

Flávio: Temos pesquisado sobre o Teatro Nacional e o Cine Brasília, além de outros edifícios e instituições em Brasília. O Teatro Nacional é tombado pelo IPHAN e o Cine Brasília no âmbito do Distrito Federal. Em ambos os casos, as poltronas originais eram de Sergio Rodrigues. As do Cine Brasília foram substituídas no processo de reforma e as do Teatro Nacional, até onde temos informações, permanecem lá, porém num certo estado de degradação. O Teatro encontra-se fechado desde 2014 e pelo que pesquisamos até o momento, no projeto de restauro, não há diretrizes específicas para a manutenção e restauro das poltronas e, diferentemente das obras de Athos Bulcão, que estão expressamente protegidas pelo processo de tombamento, o mobiliário não o está, de modo que pode haver sua substituição, o que denota a falta de uma orientação mais clara em relação à necessidade de preservação desse patrimônio. O projeto Oca II, por exemplo, localizado no campus da Universidade de Brasília, originalmente destinado ao alojamento de professores, está sendo utilizado como sede da segurança do campus e foi fortemente descaracterizado, sofreu ampliações e não recebe a conservação adequada, de forma que o projeto acabou perdendo algumas de suas características arquitetônicas originais. Das instituições que temos pesquisado, poucas têm informações a respeito da origem dessas peças e de como estão classificadas em seus inventários de patrimônio. Não temos também notícias da existência de planos de manutenção e conservação do mobiliário. A falta de informações acaba sendo um obstáculo à preservação da memória do mobiliário. Temos visto algumas iniciativas importantes como a do Núcleo de Restauro de Mobiliário Moderno do Instituto Federal de Brasília, em que há uma preocupação e um trabalho consistente de restauro, mas infelizmente são iniciativas isoladas e que dependem de convênios e parcerias específicos. Não há um apoio sistemático dos órgãos governamentais para que isso seja feito. Em relação à exploração mais comercial do legado de Sergio Rodrigues, podemos dizer que seus móveis são produzidos ainda hoje no Brasil e no exterior, mas, diferentemente do que esperava o Movimento Moderno – a disseminação desse tipo de bem para o conforto de uma grande massa de pessoas –, o que acaba acontecendo é que essas peças, tidas como objetos de destaque, são incorporadas a projetos sofisticados de arquitetura de interiores como uma forma de distinção cultural e econômica por parte daqueles que as adquirem.

Priscila: Por fim, qual a herança que a experiência moderna de Sergio Rodrigues deixou para a nossa cultura material?

Flávio: A produção de Sergio Rodrigues demonstra sua capacidade de integrar – ou talvez, reintegrar – o desenho de móveis, ou design, à arquitetura. Havia na época uma discussão importante em relação à necessidade de se passar do que se chamava de decoração para um processo mais especializado, que seria a arquitetura de interiores. Nesse sentido, a ideia era que as pessoas que trabalhavam com isso se profissionalizassem e dominassem as questões técnicas, estéticas e históricas. E Sergio Rodrigues contribuiu para qualificar esse debate e, na prática, executou móveis e projetos a partir desses preceitos. Na arquitetura, seu sistema construtivo – que ele chamou de SR2, por conta das iniciais de seu nome – era um sistema de peças pré-fabricadas em madeira, que se destinava ao uso habitacional e possibilitava um certo nível de industrialização na produção das peças e a montagem in loco. Isto foi uma inovação com potencialidade para atender à grande demanda habitacional que se apresentava naquele momento. Essa lógica de pré-fabricação e montagem dialoga muito com a lógica construtiva do mobiliário moderno. Além disso, em sua carreira, Sergio Rodrigues passou praticamente por todas as etapas da cadeia de produção de móveis. Ele conhecia profundamente desde o projeto e a produção, até a comercialização dos móveis. Sua loja Oca teve grande sucesso por seu conhecimento do universo do mobiliário. Sua relevância, então, tem a ver com uma capacidade muito aguçada de perceber o modo brasileiro de habitar e de construir, em conexão com as tendências internacionais do momento.

Fig. 9 – Sala Martins Penna do Teatro Nacional Claudio Santoro com relevo em madeira de Athos Bulcão, 2002 (foto de Rafael Gontijo).


Fig. 10 – Sala Alberto Nepomuceno do Teatro Nacional Claudio Santoro, 2002 (foto de Rafael Gontijo).


Notas

[1] CALHEIROS, Alex; MARI, Marcelo; RUFINONI, Priscila Rossinetti. Mobiliário moderno: das pequenas fábricas ao projeto da UnB. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2014.

[2] A Oca foi uma loja-empresa de mobiliário moderno criada em 1955. Para mais informações: http://www.institutosergiorodrigues.com.br/Biografia/12/Oca-uma-loja-revolucionaria

[3] INSTITUTO SERGIO RODRIGUES. Fortuna crítica Sergio Rodrigues. Curadoria de Afonso Luz. Rio de Janeiro: Instituto Sergio Rodrigues, 2018.

[4] SOARES, Eduardo Oliveira. Fragmentos dos atos iniciais do Teatro Nacional Claudio Santoro. 2013. 360 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de Brasília, Brasília, 2013.


Entrevistados:

Coordenador da Pesquisa:

Marcelo Mari: Doutor em Filosofia pela USP, e docente do Curso de Teoria, Crítica e História da Arte da UnB e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, pela mesma universidade. Coordena o grupo “A influência do design brasileiro e os móveis institucionais de Sergio Rodrigues de 1959 a 1968” (FAP/DF).

Grupo de pesquisa:

Beatriz Leivas de Medeiros: Arquiteta e estudante de graduação em Teoria, Crítica e História da Arte, UnB.

Flávio Yukata Oshiro: Arquiteto e estudante de graduação em Teoria, Crítica e História da Arte, UnB.

Wryel Lima de Jesus: Graduando em Letras – Português pela UnB.

Átila Gregório Franco Rocha: Museólogo formado pela UnB.

Maria Clara Rocha: Mestranda em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da UnB.

Marcos Antony Costa Pinheiro: Doutorando em Artes Visuais pela UnB.

E-mail de contato do grupo: marcelomari.vis@gmail.com

Entrevistadores:

Priscila Rossinetti Rufinoni: Doutora em Filosofia pela USP e docente do Departamento de Filosofia da UnB.  E-mail: rufinoni@unb.br

Yuri de Lavor: Graduando em Filosofia pela UnB e pesquisador na área de Estética. E-mail: yurilavor@gmail.com


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