Ruínas verdejantes, paisagens pitorescas
I Laís Hanson Alberto Lima e Fabiola do Valle Zonno I
A ideia de preservar as ruínas como paisagens pitorescas não é algo novo no debate sobre os monumentos antigos. Ao longo do tempo, espécies vegetais entram em contato com a arquitetura e, dependendo do grau de envolvimento com os elementos construídos da obra, podem contribuir com a criação de uma paisagem pitoresca, assim como podem causar danos estruturais, como observamos em casos de ruínas que não recebem manutenção e onde não há um controle desse envolvimento.
Estamos lidando com o que Angela Rodrigues chama de “ruínas do tempo” [1]. O tempo pode levar ao arruinamento de modo súbito ou processual.
É este último sentido que acolhemos aqui, pensando que, com o passar do tempo, as ruínas agregam não só valor de antiguidade mas também valores estéticos, em que a pátina, incluindo a relação com as espécies vegetais como trataremos aqui, pode corroborar com a experiência da ruína como obra de arte e paisagem “pitoresca” – imagem construída de relação harmônica entre homem e natureza.
Partimos do pressuposto de que uma abordagem verdejante na conservação de ruínas deve ser pautada em estudos específicos sobre cada caso e, mais ainda, em análises, superfície por superfície, espécie por espécie, para entender as relações que se estabelecem entre os materiais de construção e a vegetação – reconhecida como pátina do tempo.
Este estudo tem por objetivo revisar a literatura sobre ruínas do tempo e seu envolvimento com a vegetação em busca de discursos e práticas que nos aproximem das ruínas verdejantes como possibilidade de preservação no campo do patrimônio, construídas a partir de textos interdisciplinares – de arquitetura, arqueologia, história, biologia – sobre as ruínas e a natureza, relacionados a teorias e projetos de intervenção nas paisagens de ruínas patrimoniais.
A valorização e a preservação de paisagens de ruínas
Segundo o sociólogo alemão Georg Simmel (1858-1918), o conceito de ruína está atrelado à natureza. Na obra arquitetônica, sujeita às forças da natureza, o tempo abre lacunas. O “equilíbrio” entre arquitetura e natureza tende às forças naturais e uma “nova obra de arte” é formada pelos vestígios da edificação e pelas adições e supressões do tempo [2]. Simmel atribuiu às ruínas a ideia de uma “harmonia misteriosa” nas relações entre arquitetura e natureza e buscou no escritor conterrâneo Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) uma explicação para a “sedução” das ruínas: “a destruição da forma espiritual pela atuação das forças naturais, aquela inversão do ordenamento típico, será percebida como um retorno à ‘boa mãe’ – como Goethe chamou a natureza.” [3]. Este regresso, para Simmel, seria passível de representar um conflito harmonioso entre arquitetura e natureza e estava atrelado a uma visão romântica das ruínas. As ideias de pitoresco e sublime foram tratadas no Romantismo, relacionando a ruína à integração do homem com a natureza ou à intuição do ciclo da vida e da morte, respectivamente. Como diz Simmel, “o valor estético da ruína unifica o desequilíbrio, o eterno devir da alma que luta consigo mesma” [4], reconhecendo-se o pitoresco em sua fala quando descreve a paz de união da ruína à paisagem circundante, quando a ruína e o chão ao seu redor ganham igualdade de coloração, quando o tempo leva à sedução do tecido velho, da unicidade do tom.
Segundo Giulio Carlo Argan (também a partir de Goethe), o pitoresco é uma categoria estética atribuída de acordo com o gosto e, portanto, subjetivo. Caberia a cada indivíduo reconhecer o “particular do característico” que, para Argan, causaria sensações que ativariam a memória, o gosto e que fariam atribuir o valor estético do pitoresco às paisagens. Para os românticos, a natureza fazia pensar. As pinturas de paisagens, assim como os projetos de jardins, evidenciavam a dinâmica da natureza e suas forças, de certa maneira, em harmonia com o ser humano [5].
Entre os séculos XVIII e XIX, pintores passaram a representar imagens de ruínas em meio à vegetação como lugares de fruição a partir da descoberta ao se caminhar e contemplar, como nas obras de Caspar David Friedrich (Fig.1), J. M. William Turner (Fig.2), Giovanni Canaletto (Fig.3) e Hubert Robert (Fig.4).
A busca por paisagens de ruínas se tornou comum nos itinerários de viagens dos europeus, em um movimento conhecido como Grand Tour [6]. Os viajantes passaram a ter contato direto com os monumentos do passado e a descrever e representar as paisagens por meio de suas experiências.
Na América do Sul, o interesse por paisagens de ruínas e de naturezas exóticas teve como um dos principais destinos de viagem os territórios dos Sete Povos das Missões, em uma época de exploração da diversidade cultural. No Brasil, em 1858, o médico alemão Robert Avé-Lallemant, em viagem pelo sul, descreveu seu percurso nas missões jesuíticas e destacou a relação entre natureza e as ruínas de São Miguel das Missões: “[…] ao passo que sobre as cornijas, nas fendas das pedras e nas volutas crescem viçosamente cactos gigantescos, uma floresta de criptógamas e até árvores, pouco ficando a dever aos jardins suspensos de Semíramis.” [7]. A comparação de Avé-Lallemant entre as ruínas envolvidas pela vegetação e os jardins suspensos de Semíramis nos remete à visão romântica de uma paisagem que servia à contemplação e à reflexão.
As ruínas do tempo carregam um valor intrínseco, o qual John Ruskin (1819-1900) chamou de “valor de antiguidade” [8]. Em meados do século XIX, o crítico de arte inglês defendeu a conservação dos aspectos que conferem o caráter de “vetustez” às ruínas, acreditando que devemos deixar fluir o curso natural do tempo e, quando necessário, deveríamos respeitar o princípio da mínima intervenção, em vez de recomendar a restauração – como era de hábito dos arquitetos do século XIX, que buscavam o retorno ao estado “original” das obras e o apagamento das marcas do tempo [9]. Tais marcas eram consideradas como uma “beleza acessória e acidental” [10].
Ruskin (1849) fala do “pitoresco”, próprio às ruínas, como “sublimidade subordinada ou parasitária”, sublimidade que depende de acidentes e provoca linhas angulares e quebradas, oposições vigorosas de luz e sombra, e cores escuras, profundas ou fortemente contrastadas [11]. A formação das lacunas e da pátina (vegetação e outros organismos vivos) faziam parte da transformação da obra arquitetônica em ruínas. Françoise Choay discorre sobre a visão romântica da pátina, considerada um dos “signos de um novo valor pitoresco” [12]. Para os teóricos que defendiam a mínima intervenção nos monumentos antigos, como Ruskin, a pátina era “uma qualidade essencial dos monumentos” que deveria ser conservada [13].
Segundo Ruskin, a aproximação da obra do ser humano com os elementos da natureza e seu envolvimento na paisagem a tornavam cada vez mais pitoresca. Mas, assim como Simmel, Ruskin destacou a necessidade de haver um equilíbrio entre arquitetura e natureza, ao alertar que não poderíamos dar mais atenção à hera do que ao fuste de uma coluna.
No século XX, teorias sobre a preservação de ruínas evidenciaram os valores reconhecidos pela cultura, ainda relacionados ao pitoresco romântico. O crítico de arte austríaco Alöis Riegl (1858-1905) discutiu a formação das ruínas e sua relação com a natureza, seu envolvimento com a paisagem e o que este representa em relação ao valor de antiguidade [14]. Riegl destacou a importância do valor de antiguidade como o que carrega valores estéticos advindos da própria passagem do tempo – “Na medida em que se degradam, as ruínas tornam-se cada vez mais pitorescas quanto mais partes são sujeitas à dissolução […]” [15]. Outro teórico do patrimônio, influenciado por Riegl, foi o historiador tcheco Max Dvořák (1874-1921), que defendeu a conservação do caráter de vetustez e a manutenção do aspecto pitoresco nas ruínas. Dvořák atentou à necessidade de evitar a destruição dos monumentos, mas reforçou que as medidas de reparo não podem destruir as marcas da passagem do tempo nas obras, visto que as mesmas agregam características de valor estético. “A vegetação, por sua vez, só deve ser retirada dos locais em que destrói os muros; no restante, deve ser poupada.” [16]. Assim como Riegl e Dvořák, o crítico de arte italiano Cesare Brandi (1906-1988) tratou da conservação de ruínas segundo o que ele determinou como a instância histórica e a instância estética [17]. Em ambas abordagens, Brandi defendeu que a pátina do tempo deveria ser considerada como parte da obra, de acordo com a instância histórica, porque a pátina é considerada testemunho da antiguidade da obra e sua eliminação estaria falsificando o aspecto de vetustez e, segundo a instância estética, porque a pátina faz parte da materialidade e qualquer remoção incidiria em uma alteração da imagem da obra, recomendando, na prática, um equilíbrio na condução dos reparos da pátina em ruínas.
Durante o século XX, o conceito de ruínas esteve, portanto, relacionado à imagem do passado presente em seu caráter de vetustez, de antiguidade ou daquilo que o tempo agrega, como a vegetação, associada ao pitoresco. Para Riegl, Dvořák e Brandi, assim como fora para Ruskin, o grau de envolvimento das ruínas com a vegetação influenciava na atribuição de valores. A preservação do aspecto pitoresco das ruínas continuou sendo pautada nas teorias do campo do patrimônio.
O que atrai visitantes às ruínas (desde o Grand Tour aos dias atuais) são os aspectos pitorescos conferidos pela passagem do tempo nas obras de arquitetura, são as “manchas douradas” da pátina nas superfícies das obras arruinadas que Ruskin descreveu, é o envolvimento da natureza com as ruínas em um movimento de co-criação lembrando Simmel. São paisagens que proporcionam a fruição estética por meio da experiência da descoberta, da ausência de limites claros, da interação entre arquitetura e natureza, da complexidade.
Em busca do equilíbrio entre natureza e arquitetura nas ruínas
Quando falamos de natureza e cultura, destacamos que não existe dicotomia ou desassociação entre os termos, visto que o reconhecimento de qualquer paisagem é um ato cultural [18]. Utilizamos tais termos de acordo com autores que, ao tratar de ruínas, discorreram sobre sua formação a partir de elementos de diferentes origens: a própria ruína da obra arquitetônica, a flora e a fauna. Como vimos, o conjunto desses elementos é culturalmente conhecido como paisagens pitorescas desde o Romantismo até os dias atuais.
Quando falamos de natureza nas ruínas, reconhecemos seus valores estéticos. A função da vegetação, neste caso, está atrelada ao campo das sensações, por meio da contemplação e da vivência das ruínas envolvidas com a natureza. Mas poderia estar atrelada também à ecologia, à educação ambiental e patrimonial. Se um dos principais valores reconhecidos em ruínas patrimoniais é a relação entre natureza e arquitetura, por que não tentar buscar um equilíbrio entre os valores estéticos e de fruição e a função protetiva da vegetação em relação à destruição da ruína? Os autores citados neste texto, ainda que tenham exaltado as qualidades estéticas do envolvimento da vegetação nas ruínas, alertaram sobre os perigos dos danos causados por essa relação. As condições ambientais são fatores indispensáveis na análise da presença de organismos vivos nas ruínas – vegetação de grande e pequeno porte, fungos, líquens etc. A deposição desses organismos que se desenvolvem nas superfícies degradadas pelas ações do tempo tende a criar, além de uma base para que ocorra a sucessão ecológica, um ambiente favorável à atração de insetos, pássaros e pequenos mamíferos. A obra arquitetônica divide seu espaço com a flora e a fauna local, mas esta relação é comumente tratada como um conflito. O caráter destrutivo sempre foi levado em consideração na manutenção das ruínas do tempo. Projetos de intervenção em ruínas patrimoniais costumam trabalhar com a limpeza da vegetação como forma de proteger as superfícies e demais elementos da construção. Mas e se o que protege as superfícies e os outros elementos é a vegetação? E se uma camada de elementos naturais impede que as intempéries, como o vento e a chuva, destruam partes da obra construída pelo ser humano?
Como já abordamos, Ruskin evidenciou os valores de antiguidade e estético, que seriam ainda mais presentes nas ruínas, quanto mais envolvimento estas tivessem com a natureza. Na sua visão romântica, os impactos causados pela vegetação eram vistos como positivos em relação à experiência estética das ruínas. “A teoria da arquitetura de Ruskin se baseia na relação direta entre arquitetura e natureza, na qual as ruínas são belas por sua sublimidade parasitária formada pela vegetação agregada pelo tempo e que reconduz a arquitetura à obra da natureza.” [19]. Mas e quanto à prática da preservação de ruínas patrimoniais?
No final do século XIX, na Itália, o arquiteto e arqueólogo Giacomo Boni (1859-1925) estudou a vegetação nas ruínas do Fórum Romano com o objetivo de analisar quais espécies de plantas habitavam o lugar para entender qual seria a melhor maneira de preservar a relação entre ruína e vegetação [20]. Em suas contribuições à discussão sobre a conservação das ruínas, Boni destacou o valor estético que o envolvimento com a vegetação agrega aos monumentos antigos, mas também a possibilidade de proteção contra intempéries, defendendo que a manutenção de uma camada de gramíneas poderia auxiliar no controle da degradação, em vez de focar nos danos causados às ruínas:
[…] a erradicação da erva, como tem sido feita até hoje, priva as antigas ruínas do aspecto pitoresco, […] reduz-as a esqueletos nus e áridos, e as expõe a todas as vicissitudes que são comuns a lugares sem cobertura […]. Várias vezes tive oportunidade de chamar a atenção deste ilustre Ministério para a proteção eficaz oferecida às antigas ruínas por uma camada vegetal de terra recoberta de torrões gramíneos, que impedem a infiltração da água, geadas e o surgimento de plantas nocivas. [21]
Boni defendeu a retirada da vegetação de forma crítica, alertando que intervenções que visavam à erradicação das espécies poderiam ser mais danosas às ruínas, quando feitas sem uma análise em relação à coexistência entre natureza e monumento que, em muitos casos, se controlada, pode consentir maior proteção às superfícies das ruínas.
Em 1995, a bióloga italiana Maria Adele Signorini desenvolveu o chamado Indice di Pericolosità (I.P.), um índice numérico de impacto das espécies vegetais que comumente crescem nas superfícies das ruínas, a partir dos estudos dos vestígios de uma estrada romana em Fiesole, Firenze, e aplicado no projeto de conservação de uma muralha medieval na cidade de Termoli, Campobasso [22]. Os parâmetros de análise do índice se referem à forma biológica, ao grau de envolvimento da vegetação com as superfícies e o funcionamento do sistema de raízes. De acordo com Signorini, por meio desses parâmetros é possível medir os danos causados às superfícies e as dificuldades de exterminar as espécies que se julgar necessário, além da capacidade de propagação e as relações com outras espécies. Assim, o I.P. das plantas aponta quais espécies estão causando impactos negativos e devem ser retiradas e quais espécies devem ou podem ser mantidas.
A análise leva em consideração os aspectos em relação à estrutura das plantas e das superfícies que servem de substrato para o desenvolvimento das espécies. Existem situações em que as raízes de uma planta já se envolveram em demasia com a ruína, de tal forma que passaram a integrar seu “sistema estrutural”. Retirar tais raízes, em casos como esse, pode causar mais destruição na obra do que mantê-las. Em outras situações, camadas de microrganismos e espécies de plantas rasteiras podem auxiliar na proteção das superfícies e dos topos de parede – como desenvolvido atualmente na técnica soft capping [23]. A vegetação pode, portanto, exercer função protetiva e contribuir para a conservação de uma ruína.
Outra consideração feita no índice diz respeito aos valores estéticos das plantas. De acordo com as características em relação à folhagem, floração e demais componentes ao longo do ano, é possível analisar aspectos subjetivos relacionados a um projeto da paisagem, selecionando quais espécies têm valor paisagístico para serem melhor avaliadas e mantidas nas ruínas, de acordo com seu I.P.
É preciso, portanto, fazer um inventário das espécies existentes nas ruínas para entender como conservá-las e manter ou criar a atmosfera pitoresca buscada pelos visitantes desses lugares. Esse processo eletivo assemelha-se a de um paisagista escolhendo as espécies para trabalhar em um projeto de jardim e se trata de uma co-criação entre o ser humano e a natureza.
Natureza como ferramenta de projeto: ruínas verdejantes
A utilização da vegetação como ferramenta em projetos de preservação de ruínas em sítios arqueológicos é discutida desde o final do século XIX. Como dito, Boni teve destaque como defensor pioneiro de uma relação de equilíbrio entre ruína e natureza, diferentemente do discurso de total erradicação da vegetação que era praticado pelos restauradores oitocentistas na busca pela preservação de valores que não levavam em conta o potencial dessa relação. Sua visão conservativa das ruínas tinha como base o reconhecimento do valor estético discutido por Ruskin [24]. A aproximação entre a corrente conservativa inglesa e as práticas de preservação na Itália se deu por meio das viagens realizadas por arquitetos e teóricos, a exemplo das visitas de Ruskin e membros da Society for the Protection of Ancient Buildings (SPAB) à Itália, e dos encontros e correspondências entre Boni e Ruskin, William Morris e Philip Webb. Segundo Turco e Marinos, Boni também se tornou membro da SPAB em 1885.
A atenção que o arquiteto veneziano dará às relações entre as ruínas e vegetação, partindo de instituições estéticas e de uma plena harmonia com a visão natural e “sistêmica” ruskiniana, será mediada por uma metodologia operacional experimentada no campo, tornando-se mais pragmática e claramente dirigida à conservação da ruína, bem como sugerindo explicitamente um arranjo paisagístico compatível com o contexto e com as estruturas preexistentes. [25]
Boni foi além do pensamento romântico que exaltou a contemplação e o caráter evocativo da natureza nas ruínas, trabalhando com uma visão científica em relação à preservação do meio ambiente e da paisagem, classificando espécies, identificando suas origens e entendendo como se relacionavam, propondo uma gestão pautada na manutenção ecológica dos sítios arqueológicos de forma inovadora [26] e de caráter reversível [27]. O arquiteto realizou um trabalho de análise e seleção das espécies em relação à destruição e ao embelezamento das ruínas, criando um método de intervenção pautado na preservação de valores históricos e estéticos. De acordo com Turco e Marinos [28], Boni desenvolveu uma nova técnica: a utilização de uma camada de vegetação rasteira no topo das paredes das ruínas para protegê-las das intempéries – visto que o desgaste causado pelas chuvas, irradiação solar, ventos etc. acelerava o processo de arruinamento dos monumentos.
Em meados da década de 1920, Rafaelle de Vico (1881-1969), arquiteto e paisagista italiano, propôs simular o desenho das ruínas das Termas de Trajano, em Roma, utilizando vegetação arbustiva. Como as ruínas estavam enterradas, a ideia era de conservá-las, mas possibilitar a percepção do lugar através do desenho das termas feito com os arbustos. Atualmente, a reconstrução simbólica proposta por de Vico seria pautada nos princípios da mínima intervenção e da reversibilidade [29].
No ano de 1953, na Grécia, o paisagista americano Ralph E. Griswold (1894-1981) elaborou um projeto de intervenção nas ruínas de Atenas, no qual defendeu uma relação de integração com a vegetação, em vez de encarar como um conflito, propondo sua utilização como ferramenta de valorização das ruínas da Antiguidade Clássica [30]. Embora não tenham sido publicadas, as ideias de Griswold contribuíram como mais um precedente para a conservação tanto de ruínas quanto de sua natureza.
No final do século XX, na Inglaterra, o English Heritage experimentou uma abordagem “verdejante” no projeto de conservação das ruínas do Wigmore Castle (Fig.5), em Herefordshire [31]. Entre 1996 e 1999, a comissão formada pelo arquiteto Robert Tolley estudou a conservação das ruínas medievais considerando a importância da preservação também da flora e da fauna existentes no sítio. A análise da vegetação nas superfícies e topos de parede possibilitou embasar a retirada de algumas espécies em detrimento da conservação estrutural, mas também a manutenção de outras, que além de proteger as ruínas, fazem parte da paisagem pitoresca e contribuem para a valorização do local.
Assim como no Wigmore Castle, outras ruínas na Inglaterra receberam projetos de intervenção com a abordagem denominada por Amanda White como verdant ruins [32]. Em Hailes Abbey (Fig.6), Gloucestershire, a utilização da técnica do soft capping – que já havia sido aplicada nas ruínas romanas por Giacomo Boni, na Itália, no final do século XIX – serviu como estudo de caso para defender uma visão contrária a de uma total remoção da vegetação, inserindo camadas de substrato e gramíneas nos topos de parede para garantir a conservação da matéria. O historiador Jeremy Ashbee [33] relatou as discussões sobre a preservação de Hailes Abbey em meados do século XX, nas quais havia o embate entre a retirada e a manutenção da flora nas ruínas.
A abordagem verdejante promovida pelo English Heritage representa o gosto que continua a manter sua raiz no pensamento romântico sobre ruína e natureza, ligado ao sentido pitoresco, e busca repensar ações pautadas na conservação que implicam na remoção da vegetação das ruínas, comumente realizada nas intervenções, defendendo ainda a inserção de espécies que, além de não nocivas, têm a função de proteger os monumentos e propiciar o aspecto pitoresco procurado nas ruínas.
Considerações acerca das ruínas verdejantes
Este estudo buscou aproximar teorias e práticas da conservação de ruínas que tenham defendido ou trabalhado a relação entre arquitetura e natureza de forma direta, por meio da valorização da vegetação que passa a fazer parte das ruínas e da vegetação como ferramenta de projeto de conservação, reconhecendo suas funções estéticas, de fruição e também protetiva. O embate entre retirar ou manter, e ainda, inserir espécies de plantas nas ruínas acontece desde o final do século XIX, em teoria e na prática, com intervenções como a de Boni nas ruínas de Roma e, mais atualmente, devido às ações do English Heritage no final do século XX e começo do século XXI, que apresentam uma abordagem que traduzimos para ruínas verdejantes, como uma possibilidade de conciliar o conflito entre a obra do ser humano e da natureza.
Nos projetos de intervenção em ruínas, como em qualquer intervenção, lembrando Ignasi Solà-Morales [34], temos um problema de interpretação, em que se coloca o discurso ou o sentido que se virá produzir.
A harmonia entre arquitetura e natureza descrita por Simmel ou o sentido de pitoresco poderiam, então, ser evidenciados como interpretações das paisagens de ruínas corroboradas pela abordagem das ruínas verdejantes? Passível de criar paisagens pitorescas em conjunto com as ruínas, a vegetação encarada como pátina do tempo e parte integrante da ruína pode ser utilizada como ferramenta em projetos de conservação do patrimônio. As ruínas verdejantes, defendidas desde o século XIX em países como a Inglaterra e a Itália, continuam sendo pauta nas discussões sobre preservação e, embora pontuais, podem se apresentar como abordagens favoráveis a uma mudança de pensamento nos discursos e práticas de conservação de ruínas em outros países, como no Brasil.
Notas
[1] RODRIGUES, Angela R. Ruínas e patrimônio cultural. Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2017.
[2] SIMMEL, Georg. A ruína. In: SOUZA, Jessé; ÖELZE, Berthold (Orgs.). Simmel e a modernidade. Brasília: UnB, 1998. p. 137-144.
[3] SIMMEL, Georg. Op cit. p. 140.
[4] SIMMEL, Georg. Op cit. p. 143.
[5] ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. Trad. Denise Bottmann e Federico Carotti. São Paulo: Companhia de Letras, 1992, p. 18.
[6] O interesse dos artistas europeus em ter contato com os vestígios da Antiguidade Clássica resultou no fenômeno social chamado Grand Tour, viagens que percorriam principalmente as cidades italianas, de norte a sul. Desde o século XV com o Renascimento e, a partir do século XVIII e do Movimento Romântico, a busca pelo contato com as ruínas romanas teve maior repercussão. Grandes nomes, como J. M. William Turner e Caspar D. Friedrich, encontraram no Grand Tour a inspiração para suas pinturas. Cf: BALDESCHI, Paolo. Paesaggio e territorio. Firenze: Le Lettere, 2011.
[7] AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pelo sul do Brasil no ano de 1858. Rio de Janeiro: PUCRS, [1858]1953, p. 224 apud BAPTISTA, Jean. As ruínas: a crise entre o temporal e o eterno. Dossiê Missões; vol. 3. Brasília: IBRAM, 2015, p. 213-214.
[8] RUSKIN, John. A lâmpada da memória. Trad. Maria Lucia Bressan Pinheiro. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2008.
[9] O posicionamento de Ruskin ia de encontro com o de arquitetos como Eugène E. Viollet-le-Duc, que realizaram projetos de restauro “com’era e dov’era”, no qual buscavam recuperar a integridade das obras no momento de sua criação, como no caso das ruínas do Castelo de Pierrefonds, na França, pelo qual Viollet-le-Duc fora criticado nos debates sobre a conservação dos monumentos por não ter documentos iconográficos suficientes para tal restauro. Cf: KÜHL, Beatriz M. A restauração de monumentos históricos na França após a Revolução Francesa e durante o século XIX: um período crucial para o amadurecimento teórico. Revista CPC, São Paulo, n. 3, nov. 2006/abr. 2007, p. 133.
[10] RUSKIN, John. Op cit. p. 77.
[11] RUSKIN, John. Op cit. p. 72.
[12] CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano Vieira Machado. São Paulo: UNESP, 2006, p. 133.
[13] CHOAY, Françoise. Op cit. p. 160.
[14] RIEGL, Alöis. O culto moderno dos monumentos: A sua essência e a sua origem. Trad. Werner Rothschild Davidsohn, Anat Falbel. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 51.
[15] RIEGL, Alöis. Op cit. p. 53.
[16] DVOŘÁK, Max. Catecismo da preservação dos monumentos. Trad. Valéria Alves Esteves Lima. São Paulo: Ateliê Editorial, 2015, p. 110.
[17] BRANDI, Cesare. Teoria da restauração. Trad. Beatriz Mugayar Kühl. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
[18] Segundo Anne Cauquelin, quando estamos observando ou até mesmo pensando em determinado lugar, somos nós quem criamos a paisagem – a partir das nossas sensações, da nossa memória e as referências: “nossas próprias construções intelectuais […] nossos próprios modos de ver”. CAUQUELIN, Anne. A Invenção da Paisagem. Trad. Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins, 2007, p. 27.
[19] TURCO, Maria Grazia; MARINOS, Flavia. Città, verdi, monumenti. I rapporti tra Giacomo Boni e John Ruskin. In: GHERARDINI, Susanna Caccia; PRETELLI, Marco (Orgs.) Memories on John Ruskin. Unto this last. Firenze: Firenze University Press, 2019, p. 99. [Tradução nossa]
[20] MATTEINI, Tessa. Paesaggi del tempo. Documenti archeologici e rovine artificiali nel disegno di giardini e paesaggi. Firenze: Alinea Editrice, 2009.
[21] Carta de Giacomo Boni enviada ao Ministro das Instruções Públicas em 04 de Janeiro de 1896. In: MASSIMO, De Vico Fallani. I parchi archeologici di Roma. Aggiunta a Giacomo Boni: la vicenda della “flora monumentale” nei documenti dell’Archivio Centrale dello Stato. NES, Roma 1988, p. 45 apud MATTEINI, Tessa. Op Cit. p. 122. [Tradução nossa]
[22] SIGNORINI, Maria Adele. L’Indice di Pericolosità: un contributo del botanico all controllo della vegetazione infestante nelle aree monumentali. Informatore Botanico Italiano, n. 28, p. 7-14, 1996.
[23] ASHBEE, Jeremy. Conservation and Presentation at Hailes Abbey: Debates Between the National Trust and the Ministry of Works. English Heritage Historical Review, vol. 7, 2012, p. 94-109.
[24] MATTEINI, Tessa; UGOLINI, Andrea. La lezione di Ruskin e il contributo di Boni. Dalla sublimità parassitaria alla gestione dinamica delle nature archeologiche. In: GHERARDINI, Susanna Caccia.; PRETELLI, Marco (Orgs.). Op cit. Memories on John Ruskin. Unto this last. Firenze: Firenze University Press, 2019, p. 294-299.
[25] MATTEINI, Tessa; UGOLINI, Andrea. Op cit. p. 297. [Tradução nossa]
[26] MATTEINI, Tessa; UGOLINI, Andrea. Op cit.
[27] MATTEINI, Tessa. Op cit.
[28] TURCO, Maria Grazia; MARINOS, Flavia. Op cit.
[29] MATTEINI, Tessa. Op cit. p. 123.
[30] MATTEINI, Tessa. Op cit.
[31] WHITE, Amanda. Interpretation and display of ruins and sites. In: ASHURST, John. Conservation of Ruins. Londres: Elsevier, 2007, p. 246-263.
[32] WHITE, Amanda. Op cit.
[33] ASHBEE, Jeremy. Op cit.
[34] SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Teorías de la intervención arquitectónica. In: SOLÀ-MORALES, Ignasi de; COSTA, Xavier (Orgs.). Intervenciones. Barcelona: Gustavo Gili, 2006, p. 13-22.
Fontes das imagens
Fig.1. Landscape with Temple in Ruin. 1797. Caspar D. Friedich (fonte: Wikimedia Commons). Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:LandscapewithTempleinRuin1797.jpg Fig.2. Tintern Abbey: The Crossing and Chancel, Looking towards the East Window. 1794. William Turner (fonte: Wikimedia Commons). Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Turner_Tintern1.jpg Fig.3. Capriccio: Ruins and Classic Buildings. 1730. Canaletto (fonte: Wikimedia Commons). Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Giovanni_Antonio_Canal,_il_Canaletto_-_Capriccio_-_Ruins_and_Classic_Buildings_-_WGA03900.jpg Fig.4. Landscape with the Ruins of Round Temple, with a Statue of Venus and a Monument to Marcus Aurelius. 1789. Hubert Robert (fonte: Wikimedia Commons). Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hubert_Robert_-_Landscape_with_the_Ruins_of_the_Round_Temple,_with_a_Statue_of_Venus_and_a_Monument_to_Marcus_Aurelius.jpg Fig.5. Wigmore Castle (fonte: foto de Jeffrey L. Thomas, 2002). Disponível em: http://www.castlewales.com/wigmore.html Fig.6. Hailes Abbey (fonte: foto de David Ross, s/d). Disponível em: https://www.britainexpress.com/counties/glouces/abbeys/hailes.htm .
Laís Hanson Alberto Lima
Arquiteta e urbanista (Universidade Estadual Paulista, 2012), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (Universidade Estadual de Maringá, 2017) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROARQ-UFRJ). E-mail: lais.lima@fau.ufrj.br
Fabiola do Valle Zonno
Arquiteta e urbanista (Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1999), Mestre e Doutora em História Social da Cultura (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006 e 2010) e docente no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROARQ-UFRJ). E-mail: fabiolazonno@fau.ufrj.br