Reuso adaptativo de patrimônios históricos: uma abordagem sustentável para as cidades

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I Victoria Ordonez I

Os edifícios históricos narram a história e o desenvolvimento das cidades e a sua preservação é fundamental para proteger a memória e o passado, como herança para as gerações futuras. Ao invés de serem demolidos, eles devem ser protegidos, pois são evidências do estilo de vida e da cultura das pessoas que neles vivem ou nos seus arredores. A importância da preservação de um patrimônio histórico, portanto, implica a construção da identidade de uma sociedade.

Quando estudamos conceitualmente o termo Patrimonium, o entendemos como sinônimo de propriedade familiar, como posse assídua e um artefato para lembrar uma herança que se torna referência para seus sucessores, um legado. No entanto, o significado do termo “patrimônio histórico”, como o entendemos atualmente, surge a partir do século XIX, influenciado pelo positivismo. Como descreve Lemos [1], o patrimônio histórico é muitas vezes um segmento de um acervo maior que se denomina patrimônio cultural de uma nação e que, nas últimas décadas, sofreu com o modus vivendi da civilização. Portanto, o termo patrimônio se refere a algo ou a um conjunto de bens, sejam eles imateriais ou materiais, que contam a história de um povo e a sua importância para o meio que o cerca. De modo que a idealização do “patrimônio histórico” é um reconhecimento contemporâneo ao de nação, paralelamente à busca pela construção de uma nacionalidade, sendo também influenciado pela memória do modus vivendi da civilização.

Os edifícios históricos são fundamentais para a preservação da identidade cultural para as próximas gerações. Desse modo, quando esses edifícios não podem mais funcionar com seus usos originais, é inevitável que propostas de novas funções precisem ser apresentadas. No entanto, como as novas funções devem atender aos ideais e termos de preservação de um item com importância cultural, ao adaptar edifícios patrimoniais para diferentes usos, as novas intervenções devem manter o caráter arquitetônico do edifício de forma a conservar sua própria identidade e não perder nenhum detalhe. Além disso, o conhecimento técnico especializado é indispensável ao lidar com exemplares tão importantes.

O reuso adaptativo de edifícios é uma forma de regeneração urbana sustentável, pois prolonga a vida útil do edifício, evita resíduos de demolição, incentiva a reutilização da energia incorporada e também proporciona benefícios sociais e econômicos significativos para a sociedade e as cidades. Conforme descrito na Declaração de Amsterdã, a conservação das edificações existentes contribui para a economia de recursos e, com isso, evita o acúmulo de resíduos, fator que se tornou uma das maiores preocupações da sociedade contemporânea [2]. Como resultado, o reuso adaptativo de edificações subutilizadas pode contribuir não só para a sustentabilidade de uma cidade, mas também para o desenvolvimento social e econômico do entorno.

Fig. 1. Projeto de Brasil Arquitetura para o Teatro Erotides de Campos – Engenho Central, Piracicaba (SP) (fonte: Nelson Kon, 2012).

Edifícios históricos e o reuso adaptativo

Tal qual descreve Fernandes [3], a Conservação Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial de 1972 definiu como bens culturais pertencentes ao Patrimônio Cultural os monumentos, conjuntos e lugares notáveis, entre os quais obras de arquitetura e esculturas com valores extraordinários para a arte, que são descritos como monumentos; edificações reunidas ou isoladas com integração à paisagem, que são reconhecidos como conjuntos; e, por fim, lugares notáveis, que são tidos como obras do Homem e da Natureza, assim como zonas e lugares arqueológicos que possuam valor excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.

Conforme descrito na Declaração de Amsterdã de 1975, o patrimônio arquitetônico é um capital espiritual, cultural, econômico e social cujos valores são insubstituíveis. No entanto, diante do avanço da modernidade, muitos edifícios passam a destoar do contexto que os cerca, sendo ocasionalmente esquecidos e destruídos – muitas vezes pela especulação imobiliária –, para dar lugar a novos imóveis em busca de um pseudoprogresso ou, ainda, abandonados, fora do tempo. Por se tratar de patrimônio cultural edificado, torna-se necessário sua conservação tanto quanto sua manutenção, preservando integralmente todos os seus elementos constituintes como produto único das especificidades de seu tempo de construção, visando, inclusive, a transferência desse conhecimento [4]. Assim, Brandi descreve a restauração como qualquer intervenção que busca recuperar a eficiência de um produto da atividade humana; em outras palavras, significa que um projeto de restauração/adequação está, de fato, auxiliando na manutenção da memória e da identidade da sociedade [5].

Conforme discutido por Veloso, “A reutilização de edifícios históricos é uma práxis cada vez mais recorrente no Brasil e no mundo, sobretudo, nas grandes cidades onde praticamente não há mais estoques de áreas livres para novas intervenções, a não ser pela demolição do patrimônio edificado preexistente ou pela sua reciclagem, requalificação, reconversão ou retrofit.” [6].

Tem sido demonstrado que edifícios antigos podem receber novos usos que correspondam às necessidades da vida contemporânea. Com isso, o reaproveitamento de edificações subutilizadas pode contribuir não só para a sustentabilidade, mas também para o desenvolvimento social e econômico do entorno. Segundo Choay, a reintegração de um edifício subutilizado a um novo uso, destinando-o simplesmente a museu, pode tratar-se, na verdade, de uma “valorização paradoxal, audaciosa e difícil do patrimônio” [7]. A mesma autora sugere, portanto, que “a prática do reaproveitamento deve ser objeto de uma pedagogia especial”, pois “deriva do bom senso, mas também de uma sensibilidade inscrita na longa vida das tradições urbanas e dos comportamentos patrimoniais, que varia, portanto, de país para país” [8].

Sendo assim, quando se cria uma proposta cujo foco é modificar um local, edificação ou contexto urbano existente, há algumas preocupações do ponto de vista social, cultural, histórico e arquitetônico. A razão para isso é uma demanda de compreensão do sentido social e histórico do objeto de intervenção, que pode variar a partir do lugar a que pertence, como afirmou Choay anteriormente. Tais intervenções não são apenas uma mudança em um cenário antigo, mas uma nova identidade que expressa significados contemporâneos. Além do panorama histórico e social, os edifícios carregam um contexto arquitetônico e artístico. Por isso, as novas adaptações devem “deixar o edifício se expressar” considerando a preservação de suas características.

Fig. 2. Projeto de Opus 5 Architectes para a Escola de Música de Louvier, França (fonte: Luc Boegly, 2012).

Sustentabilidade através do reuso adaptativo

Sabemos que a redução das emissões de carbono é uma das estratégias mais importantes para mitigar o impacto adverso das mudanças climáticas. Há também uma preocupação ampla no planejamento urbano em incorporar a redução da emissão de carbono no desenvolvimento das cidades. Conforme descrito por Crane & Landis, existem três abordagens para reduzir as emissões de carbono, incluindo substituição ou mitigação de fontes de energia de carbono, inovação tecnológica e adaptação ou mudança de comportamento [9]. Em outras palavras, a reutilização de edifícios históricos existentes para atender às necessidades das gerações presentes e futuras, evitando a demolição e a reconstrução, é uma das formas mais sustentáveis ​​de desenvolvimento urbano [10]. Nesse sentido, é importante que o Poder Público veja o patrimônio existente das cidades como um fator potencial que beneficiaria o ambiente urbano. Portanto, é notável que o papel da conservação arquitetônica, além do objetivo de preservar, passe a fazer parte da regeneração urbana e da sustentabilidade.

O conceito de cidades com baixa emissão de carbono está intimamente ligado ao desenvolvimento sustentável e é, sem dúvida, um dos mais críticos desafios de sustentabilidade enfrentados pelo mundo nas últimas décadas. Devido a isso, a ideia de desenvolvimento sustentável é frequentemente caracterizada por questões como a proteção do meio ambiente natural, o uso correto dos recursos para garantir a equidade geracional, políticas que buscam o uso mínimo de recursos não renováveis, a diversidade da economia, bem-estar individual e comunitário, e satisfação das necessidades humanas básicas. Nesse sentido, readequar edifícios existentes, por exemplo, além de prolongar a vida útil do imóvel e evitar resíduos de demolição, incentiva o reaproveitamento da energia incorporada e ainda traz benefícios sociais e econômicos significativos para a sociedade e as cidades.

A prática de reuso adaptativo pode ser definida como qualquer intervenção que busque proporcionar novos usos, adaptações, reaproveitamentos e melhorias em uma edificação, permitindo sua adequação às novas exigências e diferentes condições. Ao readaptar um edifício existente estamos contribuindo não somente para a preservação do patrimônio edificado, mas também para a redução de emissão de carbono e do consumo de energia. No entanto, a reutilização adaptativa de edifícios históricos é mais complexa do que a reutilização de edifícios comuns. O reuso adaptativo de um monumento histórico deve ter um impacto mínimo sobre o significado patrimonial do edifício e sua configuração, além de adicionar uma influência contemporânea que agregue valor para o futuro [11].

Fig. 3. Projeto Cité Arquitetura, Miguel Couto, Rio de Janeiro (fonte: Fabio Fernandes, 2013).

Conclusão

Embora a maioria dos edifícios que serão reutilizados de forma adaptativa no futuro estejam concentrados nas cidades, nem todos os bens patrimoniais estão localizados no perímetro urbano. Os bens patrimoniais são, ao mesmo tempo, essenciais para a preservação da memória e da história de uma sociedade e para um desenvolvimento urbano sustentável. Além disso, é fundamental começar a criar estratégias que busquem a preservação do patrimônio existente e a menor produção de resíduos e poluição. Certamente, o reaproveitamento adaptativo do patrimônio, prática cada vez mais frequente no campo da arquitetura, tem a vantagem de integrar os edifícios antigos à vida moderna e contemporânea. Por outro lado, a inserção dos ideais modernos nas características do passado ou a incorporação de usos e formas contemporâneas a essas estruturas antigas, se não for guiada por critérios de restauro e por uma sensibilidade capaz de preservar suas unidades estéticas e históricas, pode levar a uma preservação não eficiente. Seja pela desfiguração ou mascaramento cenográfico das fachadas, seja pelo esvaziamento do que se costuma considerar a essência particular da arquitetura, o seu espaço interno. Como dito anteriormente neste artigo, o reuso adaptativo de edifícios históricos é algo mais sério e delicado do que propor novas funções para edifícios comuns. Claramente, para preservar a estética, a história e outras características, as novas condições e intervenções devem trazer impactos mínimos ao edifício.

Entre as principais dificuldades nas intervenções de reuso adaptativo estão as decisões aleatórias de novas funções para edifícios, sem uma análise detalhada e profunda. A decisão sobre a nova função deve ser baseada no método analítico e científico para encontrar a estratégia mais adequada para o projeto de reutilização adaptativa. Outro desafio que deve ser enfrentado é que cada bem patrimonial e seu reuso adaptativo é único, baseado na comunidade e relacionado à localização e ao clima, o que significa que uma solução universal é quase impossível. Nesse caso, profissionais altamente qualificados de diversas áreas podem contribuir para um projeto mais criterioso e respeitoso para os prédios históricos. Ao discutir sobre impactos mínimos ao patrimônio edificado é importante destacar que o reuso adaptativo é fator chave para um desenvolvimento urbano mais sustentável para as gerações futuras, uma vez que evita a demolição de prédios antigos e afeta diretamente na diminuição das emissões de carbono e resíduos.

Por fim, para inovar os modelos de negócio e de gestão é essencial que o setor do patrimônio proporcione e desenvolva novas competências profissionais. Como resultado, o contexto urbano seria beneficiado por novas abordagens participativas e integradas cujo foco é atrair novos públicos e gerir a negociação com os vários intervenientes e autoridades envolvidas na valorização e preservação do patrimônio cultural, tradições e formas de expressão. A maneira mais eficiente de preservar um edifício histórico é mantê-lo em uso. Nesse sentido, novas e avançadas habilidades, conhecimentos e competências técnicas também são necessárias para empregar adequadamente as novas tecnologias para preservar o patrimônio e melhorar as perspectivas e a experiência dos visitantes em sítios históricos e museus.


Notas

[1] LEMOS, Carlos. O que é patrimônio histórico. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

[2] MANIFESTO DE AMSTERDÃ, 1975. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Declaracao%20de%20Amsterdã%201975.pdf>, acesso em: 16 de jun. de 2022.

[3] FERNADES, Edésio. Perspectivas para renovação das políticas da legalização de favelas no Brasil. EM: ABRAMO, Pedro (Org.). A cidade da informalidade: o desafio das cidades latino-americanas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2003.

[4]  ICOMOS. Comitê Científico Internacional para Análise e Restauração de Estrutura Do Patrimônio Arquitetônico. Carta do ICOMOS Princípios para análise, conservação e restauração estrutural do patrimônio arquitetônico. Zimbabwe, 2003 Disponível em: <https://www.icomos.org/charters/structures_e.pdf> , acesso em 22 de fev. de 2022.

[5] BRANDI, Cesare. Restoration: Theory and Practice. Palermo: AISAR Editore, 2015.

[6] VELOSO, Maísa. O moderno no passado: projetos de reusos adaptativos como estratégia de conservação do patrimônio histórico edificado. In:  Anais do III Seminário Projetar, 2007.

[7] CHOAY, Françoise. Alegoria do Património. Lisboa: Edições 70, 1999. p. 233.

[8] Idem, p. 236.

[9] CRANE, R., & LANDIS, J. Planning for climate change: assessing progress and Challenges. Journal of the American Planning Association, p. 1-14, 2010.

[10] CHAN, E., & YUNG, E. Implementation challenges to the adaptive reuse of heritage buildings: Towards the goals of sustainable, low carbon cities. Habitat International, n. 36, p. 352-361, 2012.

[11] DEH – Department of Environment and Heritage. Adaptive reuse: Preserving our past, building our future. Departamento de Meio Ambiente e Patrimônio, Comunidade da Austrália, 2004.


Victoria Ordonez

Arquiteta e urbanista formada pela Universidade do Vale do Paraíba em São José dos Campos, São Paulo, em 2019. Mestranda em Patrimônio Arquitetônico e Cultural pela Hochschule Anhalt em Dessau, Alemanha. E-mail: arqvictoriaordonez@gmail.com


logo_rr_pp v.6, n.11 (2022)

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