Questões de preservação em um duplo canteiro de restauro: Igreja de São Francisco de Assis e Casa da Irmandade em Mariana (MG)

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I Benjamim Saviane I

Atualmente em fase de conclusão, as obras de instalação do futuro Museu da Cidade de Mariana merecem destaque pela evidenciação de novas questões de preservação verificadas no patrimônio colonial luso-brasileiro. Compreendendo a Igreja São Francisco de Assis e a Casa do Conde de Assumar, os trabalhos ofereceram a oportunidade de se atuar em um duplo canteiro de obras, em que edifícios com características distintas puderam ser restaurados de maneira simultânea, compreendendo um programa de usos compartilhado em meio a prerrogativas preservacionistas distintas. Nesse contexto, o percurso metodológico utilizado para uma leitura conjunta dos valores culturais envolvidos foi fundamental para o desenvolvimento das estratégias de projeto e obra.

A percepção de ambos os imóveis também resulta distinta entre si: embora ambos tenham sido construídos pela Irmandade da Ordem Terceira de São Francisco de Assis em Mariana, a Igreja é sabidamente construída a partir de 1762 por José Pereira Arouca, assume papel comunitário enquanto local de culto e se consagra como importante monumento nacional, com o tombamento em 1938, além de integrar um dos mais célebres conjuntos arquitetônicos e paisagísticos brasileiros, a Praça Minas Gerais. Já a Casa possui histórico controverso, a começar pela sua identificação: tendo sido construída como residência com características de posição social distintiva, possui uma comunicação com a Igreja, e sabe-se que foi usada como local de reuniões da Irmandade em diversos momentos. Entretanto, não há consenso historiográfico sobre qual tenha sido o momento de sua construção e nem mesmo qual o propósito. Diogo e Salomão de Vasconcellos [1] sustentam a hipótese de residência provisória para os governadores da capitania (dentre os quais, o Conde de Assumar), enquanto Cônego Raimundo Trindade [2] questiona essas versões, atribuindo sua construção ao Padre José Simões, ao mesmo tempo em que diverge da cronologia construtiva proposta pelos anteriores. Contrastando com a Igreja, a Casa não é tombada como monumento isolado, mas sim como conjunto arquitetônico e urbanístico, em 1945.

O contexto dos trabalhos recentes está relacionado ao programa PAC – Cidades Históricas, com a contratação de projetos de recuperação por empresas locais para os imóveis, que se encontravam fechados para o público e com diferentes problemas de conservação. A expectativa de reabertura mobilizou substancial interesse para a viabilização das obras, promovendo um comodato da Casa entre a Arquidiocese de Mariana (proprietária dos imóveis) e a prefeitura, responsável pela instalação do Museu na Casa, mas incumbida de viabilizar também o restauro da Igreja, como apoio e contrapartida.

A entrada do Instituto Pedra, organização da qual participamos, ocorreu com a candidatura para gerenciamento das obras: manejo dos recursos empenhados e contratação dos prestadores de serviços, dentre técnicos, ateliês de restauro e construtora. As obras tiveram início em 2019 a partir de recursos da Lei de Incentivo à Cultura com patrocínio do BNDES. Nossos trabalhos tiveram início em etapa prévia às obras, com uma leitura crítica da pesquisa histórica, da fundamentação conceitual e, finalmente, das propostas elaboradas, contrapostas ao estado de conservação dos edifícios na iminência de se iniciar os trabalhos; essas leituras suscitaram tanto a necessidade de algumas revisões da pesquisa histórica, como algumas revisões de projeto, aprovadas ainda em 2019.

O restauro da Casa

A edificação é composta de alvenarias em pedra nas paredes térreas dianteiras, tendo os demais planos o amplo uso de taipa de mão (pau-a-pique), além de trechos em adobe e tabique em esteira de taquara estruturada, ou mesmo acréscimos em tijolos. Como o seu estado de conservação havia se deteriorado significativamente entre a finalização do projeto e o início da obra, provocando a perda de coesão em parte significativa da estrutura lígnea, já se estimava que a sua recuperação deveria envolver uma série de refazimentos que não estavam previstos nas versões de projeto aprovadas em 2015 – algo que preocupava muito a equipe e que levou às revisões de 2019, já que um eventual descontrole nas soluções de refazimento poderia conduzir a uma “reconstrução acidental” do monumento histórico, ocasionando o apagamento de uma série de características documentais (Fig. 1). Ademais, uma solução potencialmente “repristinada” acabaria por contrastar em demasia com o restauro eminentemente conservativo previsto para a Igreja, de estado conservativo bastante estável. Esse contraste entre dois monumentos percebidos (e restaurados) em conjunto tornou-se objeto de reflexões no momento de se prever as ações em canteiro.

Fig. 1. Estado de conservação anterior à obra, com escoramentos precários e muitos trechos de perda (fonte: foto de Benjamim Saviane / Instituto Pedra, fev. 2019)

Devido ao comprometimento da estrutura (madres, esteios e frechais), optou-se pelo refazimento dos planos em pau-a-pique onde fosse estritamente necessário. Para tanto, foram postos em prática uma série de procedimentos que deveriam atuar como elementos controladores, para viabilizar substituições evitando o resultado de reconstrução total. Como nossa equipe fazia a coordenação e gerenciamento da obra, essas condições foram alinhadas com a equipe da construtora, responsável pela execução dos serviços. As medidas adotadas foram as seguintes:

  • A equipe de obra deveria ser subordinada a uma figura do campo profissional da conservação, capaz de direcionar a adoção de procedimentos de seleção e salvaguarda in loco, permitindo sua futura catalogação. Essa figura também seria a responsável pela tomada de decisões conforme as metodologias previamente discutidas e/ou encaminhamento de questões extraordinárias para nossa equipe de gerenciamento, a fim de se tomar decisões em comum acordo e ampla discussão;
  • A mesma equipe deveria ter, dentre seus quadros, profissionais com experiência na execução de ofícios tradicionais, tais como mestres carpinteiros e mestres taipeiros;
  • As intervenções deveriam atender a uma hierarquia de prioridades, decididas conforme a gravidade de cada trecho / plano analisado, em que se previa uma complexidade crescente: escoramento – consolidação das taipas com água de cal – reparo no madeiramento estrutural com enxertos e substituições pontuais – substituição de peças do madeiramento estrutural – remoção pontual do barro e reparos na trama – remoção do barro e substituição da trama, com o reaproveitamento do barro original (de mesmas propriedades físico-químicas).

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A hierarquia de procedimentos adotada se mostrou satisfatória ao evitar substituições em larga escala, propiciando o reaproveitamento de material existente e proporcionando um aspecto final estruturalmente coeso e integrado aos remanescentes do conjunto (Fig. 2). Além disso, o processo de intervenção realizado plano por plano permitiu um aprofundamento dos conhecimentos sobre o edifício, uma vez que se identificou variados tipos de composição da trama, a saber: fibras de amarração em taquara ou couro; paus-a-pique em madeiras de diferentes espécies e talhas; réguas horizontais em pau roliço, taquara ou até sarrafo. Essas informações foram agregadas à documentação produzida em obra e acabaram por corroborar as hipóteses de reconstruções parciais periódicas do edifício, que eram apenas sugeridas pela documentação textual.

O projeto recentemente revisto previu ainda uma mudança de partido dos elementos que representariam intervenções novas e distintivas, como os dispositivos de circulação vertical (escada acessível e elevador) e planos de vedação novos em madeira; as instalações sanitárias passariam a ser propostas como anexas, em um corpo de edificação exterior ao imóvel, inseridas, contudo, de modo discreto na topografia do terreno, adquirindo aspecto semienterrado.

Fig. 2. Recomposição de um plano que havia ruído, em pau-a-pique (esq.) e cintamento de estabilização para um plano existente, que foi consolidado (dir.) (fonte: foto de Priscilla Fernandes / Inst. Pedra, dez. 2019)

O restauro da Igreja

Para a Igreja, monumento que permanecia bastante íntegro, as maiores discussões durante a obra residiram no tratamento das superfícies externas de acabamento, com destaque para a pintura das cimalhas. O edifício é composto por planos em caiação branca entremeados por pilastras e cunhais em cantaria de itacolomito, de coloração amarelada e aspecto áspero, até a cota da cimalha principal. Os frisos, pilastras e similares, dispostos acima dessa cimalha (incluindo ela própria) são feitos em argamassa com caiação pigmentada – que se apresentava em amarelo saturado, até o início dos nossos trabalhos. Após a realização de prospecções, que apontaram para o uso de pigmentações similares em diferentes camadas, procurou-se adotar como partido a remoção de camadas (excesso de tinta) sem repinturas de regularização. Contudo, a existência de muitos trechos de descontinuidade entre as camadas inviabilizou essa solução. A solução definitiva, por sua vez, manteve como ponto central do partido a não realização de repintura total, excluindo-se um efeito demasiado homogêneo (“chapado”), considerado indesejável; ao invés disso, foi feita a reintegração cromática nos trechos de descontinuidade pictórica, com veladura final para atenuação das discrepâncias cromáticas, mas preservando matizes. A solução apresenta homologia, também, com as cimalhas das envasaduras, que são em alvenaria argamassada e receberam remoção do excesso de pintura, com veladura de regularização – sua coloração, contudo, se assemelha à cantaria das aberturas, de aspecto mais acinzentado devido ao uso da pedra sabão e não itacolomito.

O resultado se mostrou muito satisfatório, promovendo um destacamento da ornamentação e melhor interação com os elementos em cantaria, que se mesclam aos ornatos argamassados. Para a nossa equipe essa solução se mostrou paradigmática, constituindo um grande salto qualitativo na qualidade da execução dos revestimentos externos. Seu sucesso reside na percepção da superfície não apenas como um suporte para a cor, mas também, levando em conta outros elementos tais como saturação, refletância e destacamento da gramática arquitetônica, no caso dos ornatos compositivos. Para o caso em objeto, a delicada interação entre ornatos argamassados e ornatos em cantaria se mostrou um fator decisivo para a insistência em uma solução ainda não tida como convencional, ainda que as primeiras experimentações tenham sido conduzidas de maneira um tanto empírica, isto é, buscando-se os meios para se imprimir o aspecto desuniforme então desejado, a equipe passou a se sentir mais segura não apenas pela observação visual, mas também pela observação da documentação histórica. Com efeito, no Termo de Contratação da obra feito entre a Irmandade e Arouca, em 1762, ao se descrever o acabamento da “cimalha real” e demais ornatos exteriores, prescreve-se que seja feita “de lages e tijolos e depois metida e fingida em cal [sic.]” [3]. Nota-se, com isso, que a finalização de ornatos argamassados com “fingimento” de cantarias está presente no repertório construtivo colonial, o que faz da solução adotada, além de esteticamente coerente, perfeitamente plausível (Fig. 3).

Fig. 3. Resultado da intervenção: rebaixamento cromático na pintura dos ornatos e diferença de matizes entre cimalhas e vergas das janelas (conforme achados das prospecções), retomando o aspecto de pedra fingida (fonte: foto de Alessandro Pompei/ Inst. Pedra, set. 2021)

Considerações finais

Durante todas as principais decisões de revisão projetual e obra foi possível refletir sobre o valor do edifício enquanto obra de arte e documento histórico, bastante expresso pela tensão dialética brandiana advinda do contrapeso entre as instâncias estética e histórica da obra de arte [4]. Nesse ínterim, pensar na aplicação desses conceitos em relação aos edifícios abordados representou desafios em diferentes níveis: para a Igreja havia uma preocupação de que o tratamento para os ornatos pudesse gerar um resultado de “falsa pátina”, algo que não ocorreu devido ao aspecto de “pedra fingida” em certa medida alcançado. Para a Casa havia a preocupação de que a recomposição das alvenarias resultasse em uma “reconstrução acidental”, de aspecto “repristinado”; tal preocupação residia no receio da substituição excessiva de elementos com uma feitura alusiva a valores de “antiguidade” do edifício e, afinal, ao modo de produção arquitetônica pré-industrial que muito o caracteriza (Fig. 4).

Fig. 4. Visão do conjunto a partir do lote: Casa (esq.), anexo “semienterrado” (centro) e Igreja (dir.) (fonte: foto de A. Pompei / Inst. Pedra, set. 2021)

De modo geral, ver-se diante de um trabalho de restauro em que o bem se encontra em avançado estágio de degradação, acaba por se configurar mais uma regra do que uma exceção em contextos onde não há uma cultura de manutenção e conservação preventiva muito arraigada. Essa situação acaba por se configurar como desafio constante para o campo do restauro, porque em muitos casos conduz à perda de uma série de características documentais; características que, por vezes, acabam sendo recompostas de forma “banalizada”, como se se tratasse de um conjunto de soluções meramente técnicas apenas.

A decisão de se recompor as alvenarias na Casa pode trazer luzes para essa problemática porque teve como ponto de partida não um conjunto de soluções técnicas em si, mas uma reflexão que assumia explicitamente o edifício como obra de arte, isto é, fruto do labor humano e possuidor de determinados valores culturais. Foi somente a partir disso que se pôde chegar à conclusão de que a técnica construtiva empregada possui peculiaridades que se tornam compatíveis com a solução de substituição de alvenarias, como o histórico de refazimentos e o aspecto chão conferido pelo acabamento final em caiação branca – mesmo apesar de outras questões delicadas, como a fatura única conferida por uma talha manual dos elementos estruturais em madeira.

Foi somente a partir dessas considerações que foi possível enxergar as estratégias de recomposição para a Casa como manutenção extraordinária, e não como repristino; e, finalmente, estabelecer os critérios de como poderiam ser feitas as substituições, levando em conta uma hierarquia de métodos para se evitar ações indiscriminadas. Foi também a partir dessas mesmas considerações que se tornou possível estabelecer uma tensão dialética entre o “momento” em que a intervenção se concentra nas consolidações ou substituições que deverão sanear o arcabouço existente, e o “momento” em que se realiza acréscimos, solicitados pelo programa museal, e que se pautam por uma certa diferenciação “ambientada” na mesma tectônica do existente – o piso cimentício vermelho, com tabeiras em pedra sabão, que não encosta nas paredes tradicionalmente sem rodapés; os fechamentos de algumas faces externas cuja abertura trazia uma série de problemas para o programa de usos de conservação; o uso da madeira com desenho contemporâneo; o “prolongamento” do edifício por meio de um anexo que, efetivamente, não o toca (Fig. 5-8).

Fig. 5. Novo piso e visão interna do anexo (fonte: foto de A. Pompei / Inst. Pedra, set. 2021)

Fig. 6. Novo módulo de escada conjugada a elevador, com soluções contemporâneas em madeira (fonte: foto de A. Pompei / Inst. Pedra, set. 2021)

Fig. 7. Fechamento de vão como intervenção distintiva do existente – vista externa (fonte: foto de A. Pompei / Inst. Pedra, set. 2021)

Fig. 8. Mesma intervenção – vista interna (fonte: foto de A. Pompei / Inst. Pedra, set. 2021)


Notas:

[1] VASCONCELLOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: 1904 e VASCONCELLOS, Salomão de. O Palácio de Assumar: estudo crítico-histórico. Belo Horizonte: Graphica Queiroz Breyner LTDA, s/d.

[2] TRINDADE, Raimundo (Cônego). A casa de São Francisco em Mariana. In: Revista do patrimônio histórico e artístico nacional, n. 8. Rio de Janeiro: MES, 1944, pp. 276 – 324.

[3] Contrato da obra da construção da igreja de São Francisco de Mariana sob o orago de nossa Senhora da Conceição feito com José Pereira Arouca no ano de 1762. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

[4] BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.


Benjamim Saviane é arquiteto (2014) e Mestre (2021) pela FAUUSP, com pesquisa em História da Arquitetura e do Urbanismo e Estética do Projeto – tema: Levantamento arquitetônico: prática antiga, disciplina contemporânea. Atua no Instituto Pedra como coordenador de equipe e coordenador de projetos. Linhas de pesquisa: história da arte, restauro arquitetônico e levantamento arquitetônico.


logo_rr_pp v.6, n.11 (2022)

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