Quanto vale uma tela branca?

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I Scynthia Schettino e Marcelo Mari I

No contexto da cooperação policial internacional, a apreensão de obras de arte faz parte da luta contra o tráfico ilícito de bens culturais, uma das mais lucrativas e nebulosas áreas do comércio internacional. Informações fornecidas pela UNESCO e pela Interpol apontam que o tráfico ilícito de bens culturais movimenta cerca de 6 a 7 bilhões de dólares por ano em âmbito mundial [1]. Frequentemente os criminosos se aproveitam da frágil segurança das instituições que salvaguardam as obras de arte bem como da obscura transferência de propriedade dos bens culturais de forma ilegítima, num mercado de compra e venda de obras pouco auditado pela sociedade.

Mas como mensurar prioridades de recuperação e valor das obras, com a finalidade de garantir a proteção ao patrimônio cultural? Com relação às obras apreendidas pelas polícias dentro e fora do Brasil, a autenticidade pode ser vista como um dos parâmetros que atribui valor ao bem cultural: cópias e originais precisam ser diferenciados e precificados. Outro parâmetro relevante seria a autoria, ela aparentemente teria grande peso junto ao valor emocional ou histórico do bem. É assim que nesse campo da proteção dos bens culturais, a questão do valor pode estar diretamente atrelada à busca e à recuperação de bens desaparecidos – seja ele econômico, histórico ou social.

Segundo Groys [2], as obras de arte são julgadas e precificadas num sistema baseado em valores estéticos vigentes, que as transformam desde alvo de especulações, até vítimas no meio de um processo manipulado pelas casas de leilões. Para o mesmo autor, o sistema de arte, o mundo artístico e o mercado de arte não são autônomos, possuem um funcionamento baseado num juízo de valor estético e critérios que refletem convenções sociais e estruturas de poder dominantes.

A fim de relativizarmos a questão do valor dos bens culturais dentro da cooperação internacional, examinemos o registro do possível furto ou desaparecimento de uma obra de arte, que chegou ao conhecimento do Escritório Nacional da Interpol no Brasil em 2021. Trata-se de um óleo sobre tela de autoria da artista Anita Malfatti, datado provavelmente da década 1920/30 e medindo 112 x 146 centímetros. A obra foi adquirida pelo marchand italiano Giuseppe Baccaro, acredita-se que em 1959, o qual teria comprado lotes de pinturas, desenhos em carvão e pequenos esboços da artista [3]. Conforme registros fotográficos e relatos do atual proprietário, a tela desaparecida estava aparentemente coberta por uma camada de tinta branca, deixando entrever alguns traços da assinatura de Malfatti.

Numa entrevista de Giuseppe Baccaro ao jornalista Olívio Tavares de Araújo, para a revista Veja, em março de 1973, o marchand explica que investia na compra de obras de muitos artistas brasileiros para depois relançá-los no mercado: “Eu tive apenas a vantagem de sacrificar mais horas de sono, coletar catálogos de velhas exposições, começar contatos com artistas pioneiros, como Antônio Gomide, Anita Malfatti e Tarsila, que viviam esquecidos em seus ateliers.” [4]. Mas uma obra em branco não parecia coincidir com o estilo de Malfatti nas décadas de 1920/30, a exemplo das telas A chinesa (1922) e a Mulher do Pará (1927). Curioso pensar, portanto, por que o marchand adquiriria uma obra aparentemente coberta com tinta branca (Fig. 1).

Na época da aquisição da tela, a circulação e a aproximação de pessoas ligadas ao mercado da arte na cidade de São Paulo eram terreno fértil para os marchands, colecionadores e galeristas: “Não se pode esquecer que as dimensões relativamente diminutas do centro de São Paulo na época favoreciam a aproximação desejada entre pintores, jornalistas e gente ‘de sociedade’.” [5].

Independentemente das intenções de compra de Giuseppe Baccaro, com o falecimento do marchand, a obra passou para as mãos dos familiares que, com o intuito de verificar as camadas mais profundas de tinta sobre a tela de Malfatti, solicitaram que mostras de raio X fossem feitas pela Faculdade de Física da Universidade de São Paulo. Após a realização da radiografia, identificou-se sob a camada de tinta branca a imagem de uma baiana (Fig. 2), semelhante a outras obras de Malfatti. Diante dessa descoberta, o proprietário optou pelo restauro da obra e recorreu a um ateliê em São Paulo em dezembro de 2017.

Fig.1. Óleo sobre tela de Anita Malfatti coberta por camada de tinta branca (posição horizontal). Fonte: Banco de dados da Interpol PSYCHE, 2022.

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Fig. 2. Radiografia da tela de Anita Malfatti coberta por camada de tinta branca (posição vertical). Fonte: Banco de dados da Interpol PSYCHE, 2022.

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Anita Malfatti já havia pintado baianas em uma configuração semelhante à apresentada na tela coberta com tinta branca. Essa afinidade de formas pode ser observada na obra intitulada “Baianas”, a qual foi exposta no Museu de Arte de São Paulo (MASP) em 2018, durante a coletiva “Histórias Afro-Atlânticas sobre os diálogos culturais entre a África, América e Caribe e a Europa” [6].

O restaurador manteve a obra consigo por dois anos, apesar das inúmeras reiterações de devolução por parte do proprietário. Até então a questão do valor de uma tela feita por uma artista modernista estava atravessada pelo julgamento estético da camada de tinta branca, que precisava ser removida para revelar uma imagem. A tela trazia intrigantes incógnitas: seria branca ou colorida, finalizada ou inacabada? Afinal onde começaria e terminaria a obra? A baiana escondida guardava consigo o símbolo do início, o mito de nossa ancestralidade, e isso talvez conferisse aura à tela. Na Bahia, afinal, repousa nossa origem, ponto de partida de um Brasil mestiço. É na Bahia das baianas que surgiu a lenda euro-tupinambá de Diogo Caramuru e Catarina Paraguaçu, como conta Antônio Risério no livro Uma História da Cidade da Bahia [7].

Kirymuré. Paraguaçu. Eram esses os nomes que os nossos antepassados tupinambás davam, respectivamente, ao sítio onde viria a ser construída a Cidade do Salvador e à região que, às primeiras luzes do século XVI, receberia a denominação de Bahia de Todos os Santos. [8]

Mantendo a tela consigo e contrariando todas as expectativas do proprietário, o restaurador não deu notícias de qualquer intervenção feita. Uma notificação extrajudicial foi enviada pelo proprietário e, em maio de 2019, o restaurador decidiu registar um boletim de ocorrência, onde narrou à Polícia Civil de São Paulo que teve subtraída de seu ateliê uma “tela com repintura de cor branca”. Na ausência da tela, e da baiana, a polícia civil nunca chegou à conclusão sobre a autoria do furto ou sobre as reais circunstâncias do desaparecimento da obra.

Em 2022, com o fim de divulgar a imagem da obra de Anita Malfatti desaparecida, o proprietário recorreu ao Escritório da Interpol no Brasil, que possui um banco de dados de difusão a nível mundial, o qual reúne imagens de obras de arte furtadas, roubadas ou desaparecidas [9]. Segundo as Rules on the processing of data [10] da Interpol, a difusão de obras de arte roubadas/furtadas ou itens de valor cultural tem o objetivo de localização. E as condições de publicação são as seguintes: que a obra seja do interesse de uma investigação criminal (lavagem de dinheiro, por exemplo), que ela tenha características únicas ou considerável valor comercial.

Curiosamente, ao ler com atenção as Rules on the processing of data, a questão do valor ganhava uma dimensão ainda mais notável. Pois, observe-se, as obras de arte furtadas ou desaparecidas precisam ser enquadradas numa baliza de valores, isto é, necessitam estar cobertas por uma aura que lhes garanta os maiores esforços no caminho da sua recuperação, quais sejam: estarem envolvidas num crime, serem únicas ou custarem caro.

Como inserir no banco de dados da Interpol a imagem de uma obra de Anita Malfatti coberta por tinta branca? Se o principal objetivo da difusão da imagem é sua localização e consequente recuperação, a radiografia representaria apenas uma sombra daquilo que a tela poderia ser de fato. Sem aura e sem valor estimado, estaria a polícia divulgando o desaparecimento de um bem cultural que se supunha, através da imagem de uma tela em branco.

A questão da aura que acompanha e confere valor às obras de arte não é tema atual. Walter Benjamin, em 1955, no texto A Obra de Arte na era da sua Reprodutibilidade Técnica, explorou o conceito para explicar a autenticidade das obras de arte naquilo que elas possuem de único. “Mesmo na reprodução mais perfeita falta uma coisa: o aqui e agora da obra de arte – a sua existência única no lugar em que se encontra” [11]. A obra de arte perderia sua aura através da repetição da imagem, fruto da reprodutibilidade. É como se a repetição anestesiasse nosso aparelho sensorial, ao invés de estimulá-lo, provocando o enfraquecimento dessa aura.

A aura, do grego aura, significa vento suave ou brisa, e parece ter em Benjamin conotações divinatórias quando ele fala dos primeiros objetos de arte, os quais teriam numinosidade desde sua origem. “O culto foi a expressão original da integração da obra de arte no seu contexto tradicional. Como sabemos, obras de arte mais antigas surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso” [12]. Desse modo, examinando essa participação da obra nos rituais e na vida religiosa de um povo, Benjamin observa que o objeto traria consigo uma aura para além de sua materialidade.

O marchand Baccaro também havia observado a existência dessa aura que ultrapassava a materialidade, o que ele chamou de “a força de um símbolo”. Ele se desinteressou pelo mercado de arte após um processo de dez anos manuseando obras.

Tenho uma teoria quase mística – ou fetichista? – a respeito. Acho que o manuseio da obra, seu contato táctil, acaba fornecendo fatalmente, para quem possa absorvê-la, indicações maiores que a simples apreciação externa. Pelas minhas mãos passaram quadros fabulosos. Mesmo distraído pelo valor comercial que se sobrepunha à obra como uma espécie de sombra, comecei a me sentir invadido por algo que me parecia a força de um símbolo. [13]

Trazendo o conceito para a atualidade, o que poderíamos considerar como autêntico e único no campo da arte? Uma tela em branco pintada por Anita Malfatti seria menos condizente com o estilo da artista e, portanto, menos autêntica e de menor valor que uma baiana? Acredita-se que, com a perda da aura promovida pela reprodução em série, a arte reduziu-se ao mercado, ao fetiche, ao contentamento proveniente da apreciação de um simples souvenir. No entanto, é comum ver-se fotografias de relevância política e cultural divulgadas repetidamente em mídias sociais sem perderem seu caráter artístico e numinoso. E a Monalisa continua sendo a Monalisa, apesar de tomar parte nas mais populares formas de utilitário.

Segundo Didi-Huberman (2015), Benjamin ao referir-se ao declínio da aura não estava falando de seu desaparecimento, mas de um desvio que ela sofreria. “A aura subsiste, ela resiste a seu declínio mesmo enquanto suposição” [14]. Estando a aura ligada diretamente à origem do objeto, ela seria uma questão de memória, não desaparecendo por completo. “É na ordem da reminiscência, parece-me, que Walter Benjamin colocava a questão da aura” [15].

A obra, que tem aura, localiza-se no tempo e no espaço que são para Benjamin não fixos, isto é, estão numa espécie de memória coletiva, maleável e contrária à ideia de progresso ou decadência, lugar que ele chamou no texto de 1955 de “inconsciente óptico”. Assim, a memória dos fatos residiria numa espécie de local metafísico que atua de forma coletiva. Benjamin aproximou o inconsciente freudiano, individual e manancial das pulsões, de um inconsciente histórico e cultural, acessível a todo indivíduo e repositório de fatos passados. Desse modo, como o inconsciente da psicanálise vem a descoberto através da interpretação dos sonhos e da manifestação dos sintomas, a obra de arte encerraria na sua materialidade a possibilidade de acesso ao inconsciente óptico. “A câmara leva-nos ao inconsciente óptico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões.” [16].

Sentir a aura pode traduzir-se em ter a percepção do cruzamento temporal do passado com o presente, o que fundaria uma dialética da imagem. No ensaio Sobre o conceito da história, Benjamin expõe que o historiador consciente não somente descreve os acontecimentos, mas é capaz de captar a configuração da época em que vive para investigar uma época anterior [17]. Ele parte da atualidade do presente para observar fatos do passado. Nessa dialética da imagem, que é o que lhe confere aura, está evidente o conceito de símbolo. Benjamin vai deixar registrado num manuscrito de 1935: “As imagens dialéticas são símbolos de desejo. Nelas torna-se presente simultaneamente à própria coisa a sua origem e o seu declínio.” [18]. E no texto Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso ele ressalta que “Somente um observador superficial pode negar que existem correspondências entre o mundo da tecnologia moderna e o mundo arcaico dos símbolos da mitologia.” [19].

Nesse mesmo caminho, o antropólogo e jurista suíço Jacob Bachofen definiu símbolo como uma mistura de imagens atemporais que captam “o escuro e o misterioso”, produzidas pelo homem desde as mais antigas épocas. Assim como os conteúdos reprimidos do inconsciente freudiano utilizam o sonho para chegar à consciência, as imagens atemporais seriam veículos oníricos do passado. Bachofen ratifica a ideia de símbolo apresentada pelo arqueólogo Georg Friedrich Creuzer, como uma junção entre imagem e palavra:

La Humanidad en las más primitivas fases de su desarrollo tenderá a utilizar el lenguaje simbólico, fundamentalmente a través de las imágenes, porque sólo ellas son capaces de captar lo más oscuro y misterioso de los sentimientos humanos. La imagen y la palabra, la pintura y el discurso no se distinguirían en estos primeros momentos, y por ello se concibió al universo físico y al universo moral de un modo unitario, como si estuviesen profundamente interpenetrados. Esta mezcla de imagen y palabra será lo que Creuzer definirá como símbolo. [20]

Para o filósofo Mircea Eliade, que faz uma aproximação entre simbolismo e psicanálise no livro Imagens e Símbolos, o símbolo revela os mais profundos aspectos da realidade, aqueles aspectos que desafiam qualquer outro meio de conhecimento. “As imagens, os símbolos, os mitos, não são criações irresponsáveis da psique; eles respondem a uma necessidade e preenchem uma função: pôr a nu as mais secretas modalidades do ser.” [21]

Assim, tomando a ideia de símbolo como central para se pensar numa imagem dialética, aquela que contém em si a potência da memória e que revela algo desconhecido para a consciência individual ou coletiva, vislumbra-se a aura como sopro que acompanha a imagem simbólica. Recordemos que Benjamin ao emparelhar o inconsciente freudiano com o inconsciente óptico, equiparou a interpretação de sonhos com o trabalho feito pelo historiador. No texto Passagens, Benjamin [22] aplica a dialética consciente/inconsciente da psicanálise freudiana para explicar os fenômenos coletivos, transpondo o estado da consciência, tal como aparece desenhado e seccionado pelo sonho e pela vigília, do indivíduo para o coletivo:

A arquitetura, a moda, até mesmo o tempo atmosférico, são, no interior do coletivo, o que os processos orgânicos, o sentimento de estar doente ou saudável são no interior do indivíduo. E, enquanto mantêm sua forma onírica, inconsciente e indistinta, são processos tão naturais quanto a digestão, a respiração etc. Permanecem no ciclo da eterna repetição até que o coletivo se apodere deles na política e quando se transformam, então, em história. [23]

De acordo com George Didi-Huberman (2015), o historiador da arte é um interpretador de sonhos, porque observa o passado insuflando-o do presente e lançando mão da memória. “Eis porque ele [Benjamin] concebia a própria história da arte como uma Traumdeutung [24] a ser desenvolvida de acordo com o modelo freudiano” [25].

Para corroborar com a ideia da presença dos símbolos nos conteúdos oníricos, remetamos ainda ao dito de Freud na obra de 1900: “Reconheci a presença do simbolismo nos sonhos desde o início. Mas somente aos poucos, e à medida que minha experiência aumentava, pude chegar a uma plena apreciação do seu alcance e importância” [26]. No mesmo A Interpretação dos Sonhos, Freud diz: “Os avanços da experiência psicanalítica levaram ao nosso conhecimento pacientes que demonstravam ter uma compreensão direta do simbolismo onírico desse tipo num grau surpreendente” [27].

Desse modo, a tela em branco que encerra uma baiana de Anita Malfatti, carregada de aura, atuaria como símbolo de um tempo, de um povo, de uma história. Com potencial dialético, quanto vale uma tela em branco? Vários protagonistas do mundo da arte acreditaram que o único critério que restou para mensurar a qualidade de uma obra é seu sucesso no mercado de arte [28], mas falando-se de patrimônio cultural, outras dimensões precisam ser abordadas para se qualificar e, portanto, valorar. Na dimensão do símbolo podemos ver um ponto de partida.

A correspondência das formas da baiana com a mulher primitiva que, ainda muito ligada à terra, realizava as atividades coletoras levando um cesto de frutos na cabeça, simbolizaria uma espécie de mito de origem. Como escreve Bachofen, a mulher, que dá a vida carrega o mistério da existência, guarda proximidade com a terra e a noite: “con la Tierra se identifica la noche, que se concibe como ctónica y maternal, se pone en una especial relación con la mujer y es equiparada con el cetro más antiguo”. [29] 

Tal semelhança, entre a mulher coletora e a baiana, pode ser evocada através dos símbolos produzidos por outras culturas. Abaixo, duas comparações de imagem são possíveis: a primeira entre uma escultura africana makonde e o quadro de Anita Malfatti (Fig.3a / Fig.3b), e a segunda entre este e uma estátua egípcia (Fig.4a / Fig.4b).

Fig. 3a. Escultura da coleção de arte makonde do Museu Antropológico da Universidade de Coimbra. Século XX, Moçambique. Fonte: https://doi.org/10.1590/1982-02672017v25n02d06 . Fig.3b. Radiografia da tela de Anita Malfatti coberta por camada de tinta branca (posição vertical). Fonte: Banco de dados da Interpol PSYCHE, 2022.

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Fig.4a, Estátua da Dinastia Egípcia de Amenemhat I, 1981–1975 a.C. Madeira e gesso, 112×17 cm. Met Museum, New York. Fonte: https://www.metmuseum.org/pt/art/collection/search/544210 . Fig.4b. Radiografia da tela de Anita Malfatti coberta por camada de tinta branca (posição vertical). Fonte: Banco de dados da Interpol PSYCHE, 2022.

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A relação simbólica entre a imagem da baiana e as mulheres de comunidades coletoras remonta a uma conexão ancestral entre a figura feminina e a natureza. Essa associação é vista em várias culturas ao longo da história, e as imagens simbólicas compartilhadas entre diferentes sociedades revelam uma conexão profunda com a terra e com a origem da humanidade [30]. Ainda de acordo com as ideias de Bachofen [31], nas primeiras sociedades humanas, as mulheres desempenhavam um papel central na organização social. Elas eram responsáveis pela produção de alimentos, o que envolvia a colheita de frutas, raízes, ervas e outros recursos naturais, bem como a prática da agricultura em seus estágios iniciais.

Essa tarefa de colheita é frequentemente associada à imagem de uma mulher com um cesto na cabeça, como é o caso da figura da baiana de Anita Malfatti. Bachofen [32] via a coleta e a agricultura como atividades relacionadas às mulheres, que guardavam semelhanças com a capacidade criadora da natureza e desempenhavam um papel fundamental na sobrevivência das comunidades.

É desse modo que a figura da baiana, presente nesta obra e em outras expressões artísticas, pode ser interpretada, portanto, como um símbolo de ancestralidade, conexão com a natureza e continuidade de tradições culturais. Essa imagem simbólica remete ao mito de origem e à ideia de que nossas raízes estão ligadas à terra.

Detendo-nos na simbologia que emana da tela da baiana, retornemos ao conceito de aura de Walter Benjamin, para pensar numa imagem dialética. Sabemos que esse autor tinha uma relação profunda com o conceito de símbolo e o explorou em diversos contextos dentro de sua obra [33]. Para ele, o símbolo desempenhava um papel crucial na experiência estética e na compreensão da cultura e da história. Relembrando que no ensaio A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica, Benjamin associou o conceito de aura à dimensão simbólica da obra de arte original, concluímos que a aura que acompanha a baiana de Malfatti poderia ser a qualidade única e misteriosa que envolve uma obra de arte autêntica, conectando-a ao seu contexto histórico e cultural. Através do símbolo, ela carregaria consigo a memória que lhe confere uma aura inimitável.

O inconsciente óptico de Benjamin, povoado de imagens simbólicas, à espera de nossa “câmera exploratória” é um convite ao ato de recordar. Assim, relembremos o pensamento da artista Anita Malfatti, que deixou registradas algumas memórias de sua passagem no ateliê em Nova Iorque, a respeito da valoração das obras e dos artistas: “Se ali não se sabia (nem se queria saber) quem era rico ou pobre, era porque, no final das contas, se presumia que a arte absorveria nivelando, ou que nivelaria absorvendo”. [34].


Notas

[1] UNESCO. 50 Anos de Luta contra o Tráfico Ilícito de Bens Culturais. Correio da Unesco 2020, nº3, outubro-dezembro e Conclusiones Del Simposio Trienal de Interpol 2022.

[2] GROYS, Borys. Arte Poder. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.

[3] BATISTA, Marta Rossetti. Anita Malfatti no tempo e no espaço. São Paulo: Editora 34, Edusp, 2006.

[4] ARAÚJO, Olívio Tavares. Que eles se estrepem. Revista Veja, nº 238. São Paulo: Ed. Abril, 1973, p. 4.

[5] DURANT, José Carlos. Arte, Privilégio e Distinção. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1989, p. 100.

[6] Obra “Baianas”, 1920-30, de Anta Malfatti. Óleo sobre tela, 101×90 cm. Coleção Airton Queiroz, Fortaleza. Tela exposta no MASP em 2018. Para visualizar a imagem da obra, acessar: https://viajantesemfim.com.br/conferindo-a-exposicao-historias-afro-atlanticas-no-masp/

[7] RISÉRIO, Antonio. Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004.

[8] Idem, p. 13.

[9] O banco de dados da Interpol é de livre consulta e pode ser acessado através do aplicativo ID-Art.

[10] https://www.interpol.int/Who-we-are/Legal-framework/Data-protection

[11] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, Vol. 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 167.

[12] Idem, p. 171.

[13] ARAÚJO, op. cit., p. 4.

[14] DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do Tempo: História da Arte e Anacronismo das Imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015, p. 270

[15] Idem, p. 271.

[16] BENJAMIN, op. cit., p. 181.

[17] BENJAMIN, op. cit., p. 181.

[18] BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 999.

[19] Idem, p. 503.

[20] BACHOFEN, Johann Jakob. El Matriarcado: Una investigación sobre la ginecocracia en el mundo antiguo. Traducción: María del Mar Llinares García. Madrid: Ed. Epublibre, 1985, p. 8.

[21] ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. Sinop: Ed. Arcádia, 1979, p. 13.

[22] BENJAMIN, op. cit.

[23] BENJAMIN, op. cit., p. 434.

[24] Interpretação dos sonhos.

[25] DIDI-HUBERMAN, op. cit., p. 275.

[26] FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996, p. 382.

[27] Idem, 383.

[28] GROYS, op. cit., 2015.

[28] BACHOFEN, op. cit., p. 93.

[30] BACHOFEN, op. cit.

[31] BACHOFEN, op. cit.

[32] BACHOFEN, op. cit.

[33] BENJAMIN, 1987, 2009.

[34] DURAND, op. cit., p. XIX.


Scynthia Schettino é Agente de Polícia Federal lotada na Diretoria de Cooperação Internacional (Interpol). É mestranda em Teoria e História da Arte no Instituto de Artes do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB), orientanda do Prof. Dr. Marcelo Mari. Contato: sschettino2@gmail.com

Marcelo Mari é Doutor em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Mestre em Arte e Produção Simbólica pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Professor do Mestrado em Teoria e História da Arte do Instituto de Artes – Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília (UnB). Editor da Revista do Programa de Pós-Graduação da UnB: VIS.


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