Obras e reuso do antigo Hospital Matarazzo
| Roberto Toffoli |
O presente artigo apresenta o atual estágio do empreendimento Cidade Matarazzo, que promove o reuso do Hospital e Maternidade Umberto I (ex-Hospital Matarazzo) por meio de um programa multifuncional que integra os pavilhões originais a espaços contemporâneos. O texto faz parte de um conjunto de artigos recentes que abordam aspectos do empreendimento, dos projetos desenvolvidos às soluções tecnológicas adotadas [1]. Entretanto, nosso objetivo aqui é discutir a elaboração de visões conjunto capazes de viabilizar empreendimentos como esse. Três pontos nos parecem importantes: 1) Valoração; 2) Concepção; e 3) Implantação. No primeiro ponto, abordaremos a resolução de tombamento e sua revisão. No segundo, trataremos da organização do programa a partir de tendências recentes. Por fim, consideraremos o andamento geral das obras, particularmente, das restaurações.
Valoração
A resolução de tombamento que preserva o Hospital foi promulgada em 1986 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) [2] e ratificada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP) em 1991, por meio de tombamento ex-officio [3].
Grosso modo, o CONDEPHAAT reconheceu o equipamento como parte de um processo amplo de modernização da cidade de São Paulo a partir da passagem do século XIX e XX, período marcado por taxas de incremento demográfico explosivas, resultando em profundas mudanças nas relações locais e nas configurações espaciais produzidas na cidade [4].
Naquele momento, por exemplo, surgiram as primeiras pesquisas médicas em decorrência da criação de instituições como a futura Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) a partir da década de 1920-30; e foi crescente o caráter secular do atendimento médico, que até então estava a encargo das Santas Casas de Misericórdia (instituições confessionais voltadas à comunidade católica) [5].
Organizações sociais formadas por imigrantes, particularmente italianos e portugueses, assumiram papel de destaque nesse processo de modernização dos atendimentos médico-hospitalares. Em 1904, a Società Italiana di Beneficenza, iniciou a implantação do Hospital Humberto Primo (posteriormente conhecido como Hospital Matarazzo) com o intuito de prover a comunidade italiana com serviços de qualidade, atribuindo caráter universal desconhecido em São Paulo.
Dessa forma, a preservação do Hospital Matarazzo se baseou na sua valoração histórica como símbolo da reorganização republicana da Saúde na cidade, o que fez parte de processo amplo de modernização das relações humanas e das configurações espaciais que elas assumiram.
Em termos estéticos (ainda que a arquitetura do conjunto represente um simulacro da arquitetura italiana de diferentes períodos), existem aspectos da implantação que merecem atenção. A configuração espacial do hospital seguiu parâmetro europeu também presente no primeiro Plano Diretor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, projetado por Ramos de Azevedo e cujo único registro edificado corresponde ao Instituto Oscar Freire de 1921.
Esse modelo pode ser verificado na própria cronologia construtiva do conjunto:
Cada pavilhão abrigava determinada especialidade e era ampliado de acordo com o aumento (ou redução) das demandas cotidianas. As obras se estenderam de 1904, quando da implantação do primeiro bloco administrativo, até meados da década de 1970-80, quando foi iniciada a construção de um novo bloco dedicado à expansão das atividades hospitalares, mas que não foi concluído.
A partir da década de 1980-90, o funcionamento da instituição foi prejudicado por aspectos financeiros que inviabilizaram a continuidade dos serviços prestados. Com isso, se iniciou nova etapa dedicada a estudos de reocupação do terreno alinhados a segmentos empresariais desejosos por implantar novos usos e ocupações no local. A resolução de tombamento original foi produzida em meio à pressão desses agentes do mercado imobiliário interessados em demolir os edifícios históricos para permitir o adensamento via verticalização.
Em 1998, a Prefeitura Municipal de São Paulo (PMSP) e os órgãos de preservação aprovaram um projeto de autoria do arquiteto Júlio Neves, que propunha novos edifícios, porém, com a manutenção de certas fachadas. O licenciamento foi posto à prova em 1999 por uma Ação Civil Pública iniciada pela Associação de Moradores da Bela Vista.
O processo se estendeu até 2011, quando investidores franceses adquiriram o imóvel e se comprometeram a apresentar solução viável que contemplasse tanto os aspectos culturais quanto econômicos. O debate foi tratado publicamente resultando na revisão da Resolução de Tombamento (SC 13 de 18 de fevereiro de 2014):
A revisão da resolução foi pautada pela preservação dos blocos históricos centrais e pela proteção do eixo articulador dos edifícios. Em relação à verticalização, a revisão a autorizou nas extremidades do terreno desde que respeitados os gabaritos estabelecidos pela vizinhança. Esse debate foi acompanhado pelo Ministério Público Estadual e a viabilização da proposta foi aprovada pelos órgãos de preservação em 2015.
Concepção
O Grupo Allard, que atua nesse segmento em países como França e Itália e é responsável pelo empreendimento, montou grupo multidisciplinar que envolveu profissionais como os engenheiros Mario Franco e Carlos E.M. Maffei, os arquitetos Júlio Roberto Katinsky e Helena Ayoub (Professores da FAUUSP com quem compartilho a autoria do projeto de restauro), a equipe do advogado Marcelo Terra, além de Jean Nouvel e Phillipe Stark.
O resultado desse trabalho permitiu a organização de programa de atividades que envolve áreas comerciais, corporativas, culturais e serviços hoteleiros, distribuídos pelos pavilhões primitivos e dois novos edifícios localizados junto aos limites do terreno entre as vias Pamplona, Itapeva e Alameda Rio Claro. As soluções primaram pelos esforços criativos e tecnológicos, sempre incentivados pelos responsáveis, e que compreendem a oportunidade como momento singular para o desenvolvimento de atividades ainda pouco frequentes no ambiente da construção civil no país.
Um aspecto chama a atenção: a necessidade de encontrarmos arranjos produtivos originais, que contem com a participação de agentes públicos e privados e que se mostrem capazes de viabilizar as ações de reuso [6].
É de conhecimento geral que intervenções em centros históricos na Europa envolvem a coordenação dos interesses coletivos (culturais, principalmente) com segmentos econômicos, como o mercado imobiliário e a indústria do turismo. Em cidades como Atenas, por exemplo, a revalorização de áreas como o bairro Placa envolveu amplos debates entre moradores, sociedades arqueológicas, empresários e órgãos de preservação até que fossem “construídas” soluções de apelo coletivo [7].
Se considerarmos a proposta vigente para o antigo Hospital Matarazzo como estudo de caso dessa vertente, perceberemos que o problema não se restringe ao restauro dos edifícios propriamente ditos (uma vez que dispomos de profissionais devidamente habilitados para empreender tal função), mas à criação de visões multidisciplinares e instrumentos técnicos e financeiros voltados especificamente para o trato desses edifícios e áreas que, apesar de obsoletos, podem ser “reciclados” à luz das demandas contemporâneas.
A concepção do projeto em questão foi elaborada a partir dessa percepção.
Implantação
As obras estão sob a direção técnica do engenheiro Maurício Bianchi e contam com a participação de empresas como a Tessler Engenharia e o consórcio RFM – Sérgio Porto. Atualmente, estão em curso a construção de torre multifuncional, o setor de estacionamentos e o restauro dos edifícios da Maternidade e da Capela.
Neste artigo, nos deteremos em aspectos das intervenções dos imóveis preservados. Contudo, ressaltamos o caráter integrado dessas ações. Não se trata de utilizar o sítio histórico como cenário para os edifícios contemporâneos, mas buscar soluções em que o novo e o antigo se retroalimentem, através de um diálogo importante na estruturação de espaços urbanos contemporâneos de qualidade.
Capela
O templo constitui o único imóvel que, segundo a resolução de tombamento vigente, deve ser integralmente restaurado. Foi construído em 1922, com alvenaria de tijolos maciços apoiados em alicerces, e revestidos externamente com argamassa a base de cal. A cobertura é de estrutura de madeira com telhas francesas e o forro logo abaixo é de estuque. Internamente, o revestimento de parede foi feito em escaiola e o piso, em mármore. Existem ainda vitrais, esculturas e o mobiliário original. Contudo, a má conservação do conjunto exige o restauro de todos esses elementos.
Serão feitas algumas adaptações, principalmente, de elementos descaracterizados. O piso original foi substituído por cerâmicas que serão removidas para a instalação de um piso de mármore similar ao remanescente na área do altar, mas com paginação nova, para diferenciar as intervenções. Em função da deterioração do estuque original que inviabiliza sua recomposição, removeremos em sua totalidade para a aplicação de novo forro em gesso. Para a ressacralização do edifício, que está sem função há muito tempo, serão instalados pontos hidrossanitários, as instalações elétricas serão renovadas e haverá modificações que permitam a acessibilidade universal. Todos os pontos foram devidamente aprovados pelos órgãos de preservação.
Ainda que esse restauro tenha começado, a solução estrutural adotada para a liberação das escavações em seu subsolo despertou amplo interesse da sociedade civil. A proposta do escritório de cálculo JKMF envolveu a construção de grande estrutura de transição que permitiu a transferência dos esforços verticais de uma fundação rasa para outra profunda.
Na história recente das obras de restauro em São Paulo existem registros de trabalhos de contenção realizados para permitir escavações de subsolos, como o Sítio da Ressaca e a Casa Bandeirista do Itaim [8]. Isto é, o trabalho na capela Santa Luzia dá sequência a um diálogo bastante específico entre arquitetos e engenheiros calculistas no desenvolvimento das práticas de preservação em São Paulo.
É importante registrar que existiam possibilidades menos onerosas, de uso de paredes diafragma no perímetro do edifício. Porém, a orientação do empreendimento foi justamente de se investir na excelência tecnológica, como parte fundamental das ações de reuso, o que pode ser constatado também nos trabalhos da maternidade.
Maternidade
A preservação do imóvel envolve volumetria, fachadas e elementos internos pontuais. Além da adaptação dos espaços que serão ocupados por atividades hoteleiras, foram iniciadas também as restaurações das fachadas, que se dividem em trabalhos de argamassa e trabalhos de caixilhos.
Os trabalhos de argamassa se baseiam na preservação do emboço e na substituição do reboco. Essa escolha se deu em virtude do péssimo estado de deterioração da massa fina, que se decompôs durante o hidrojateamento. Ao mesmo tempo em que retirávamos o biofilme, notávamos o desplacamento dos revestimentos externos, enquanto a massa grossa apresentava boa integridade física (vale mencionar que, em determinados locais, foram realizados trabalhos de consolidação da argamassa, tendo em vista o interesse em preservar testemunhos dos panos originais). Ao final, se optou pela aplicação de velatura, tendo em vista nossa intenção de evidenciar as diferentes tonalidades de argamassa, ao mesmo tempo em que atribuímos uma tonalidade geral próxima dos resquícios de pintura identificados pela equipe de restauro.
Em termos de caixilhos, está em fase de restauração todo o lote de venezianas originais, que foram identificadas (vão a vão) e removidas para uma oficina, onde passaram por: substituição de peças deterioradas (enxertos), lixamento, tratamento contra insetos xilófagos, aplicação de massa e pintura, tal qual sua condição primitiva. Os marcos foram restaurados in loco, seguindo os mesmos procedimentos anteriormente descritos.
As folhas internas foram substituídas por caixilhos acústicos capazes de atender as demandas de conforto acústico, principalmente, estabelecidas para edifícios contemporâneos de uso hoteleiro. O desenho foi aprovado pelos órgãos de preservação, respeitando as linhas originais, sem configurar “falsos históricos”.
A questão tecnológica também se faz presente. Foram realizados reforços estruturais para permitir as escavações abaixo do pórtico da entrada principal do edifício. O sistema cria um conjunto de mãos-francesas, com um tirante complementar que evita a rotação dos blocos de fundação original, o que libera os níveis inferiores para as escavações que darão origem ao lobby do hotel.
Considerações finais
O objetivo do artigo é contribuir para o avanço dos debates em torno das ações de reuso ao abordar uma complexa experiência em curso e a visão de conjunto que a orientou.
Os trabalhos no antigo Hospital Matarazzo oferecem condição privilegiada para essa reflexão, seja pela sua dimensão (que transita entre as escalas da arquitetura e do urbanismo), ou pela complexidade envolvida em sua viabilização. A restauração da capela e da maternidade evidenciam tais questões, enfrentadas a partir da multidisciplinaridade e da busca pela excelência técnica.
Além disso, o projeto se pauta por referenciais pouco explorados no mercado imobiliário brasileiro: a participação da iniciativa privada, o uso de soluções que impulsionem o desenvolvimento tecnológico da indústria da construção e os próprios serviços de restauro de forma integrada.
Por isso, consideramos que o empreendimento Cidade Matarazzo contribui com novas formas de se pensar o patrimônio histórico, algo fundamental para o futuro do nosso campo de atuação profissional.
Notas
[1] KATINSKY, J.R; SILVA, H.A.A.; SILVA, R.T.S: The restauration of Matarazzo Hospital. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2017, p. 261.
[2] CONDEPHAAT. Resolução SC 29/86 (Hospital e Maternidade Umberto I (ex-Hospital Matarazzo), de 30 de julho de 1986, publicado no DOE 01/08/86.
[3] CONPRESP. Resolução 5/91.
[4] REIS FILHO, N. G.: Urbanização e Teoria: contribuição ao estuda das perspectivas atuais para os conhecimentos dos fenômenos de Urbanização. São Paulo: FAUUSP, 1967.
[5] KATINSKY, J.; SILVA, Helena A.A.; COSTA, Sabrina S.F.: Restauro da Faculdade de Medicina da USP – estudos, projetos e resultados. São Paulo: Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, 2013.
[6] ROCA, J.G: Rehabilitación, Reuso, Restauración, Conservación,in: REUSO – Sobre uma arquitetctura hecha de tiempo. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2017, p. 29.
[7] GERMAN COMISSION FOR UNESCO.: Protection and Cultural Animation of Monuments, Sites and historic Towns in Europe, Bonn: Ed. Benecker, Melsungen, 1980.
[8] MAYUMY, L. Taipa, canela preta e concreto: um estudo sobre a restauração das casas bandeiristas em São Paulo. São Paulo: FAUUSP, 2010.
Roberto Toffoli
Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1999) e mestrado pela mesma instituição (2013). Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Projeto, atuando principalmente nos seguintes temas: projetos urbanos, retrofits e restauração de edifícios históricos. É doutorando com a proposta: “O Urbano como Projeto: renovação e preservação de áreas históricas no Brasil”, e é consultor do empreendimento Cidade Matarazzo. E-mail: robertotoffoli@usp.br
v.3, n.5 (2019)
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