O edifício-garagem e a Praça Alfredo Issa: do brutalismo à brutalidade

9002 Views

I Antonio Soukef Júnior; Helena Napoleon Degreas; Antonio Busnardo Filho I

Os edifícios-garagem como solução viária

Os edifícios-garagem surgem no início da década de 1920 como resposta à crescente falta de espaço para estacionamento de veículos, especialmente na área central das grandes metrópoles europeias. O primeiro deles surge em 1925 em Berlim, cidade que, na época, possuía a maior frota de carros do continente. O sistema utilizava elevadores para transportar os carros de um andar para o outro. A disseminação desse tipo de edificação, contudo, só ocorrerá depois da Segunda Grande Guerra, com a recuperação da atividade econômica na Europa.

Fig 1. Praça Potsdamer em Berlim, em 1919. A capital alemã foi a primeira cidade a receber um edifício-garagem, 1925 (fonte: . Acesso em: 24 jul. 2018.)
Fig. 2. O Primeiro edifício-garagem foi construído na Alemanha, 1925. (fonte: <https://sammlung-online.stadtmuseum.de/Details/Index/578672>. Acesso em: 06 mar. 2020. Fotógrafo: Robertson).

No Brasil, o primeiro edifício-garagem é construído entre 1954 e 1956 em São Paulo. Denominada Garagem América, foi erigida na Rua Riachuelo em um terreno próximo à Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Projetada pelo arquiteto Rino Levi, o prédio de quinze andares se destacou também por ter sido o primeiro a apresentar perfis de aço aparentes sobre os quais se apoiam as lajes de concreto. De grandes proporções, foi resultado de um cuidadoso estudo do sistema viário central. O terreno, de pouco mais de mil metros quadrados e conformação em leque, acomodava quinhentos carros. Até os dias de hoje mantém-se em funcionamento. Posteriormente, outras garagens verticais surgem na cidade e em outras metrópoles do país, em consequência do aumento exponencial da frota automobilística e da rápida obsolescência da infraestrutura viária.

As transformação na área central (1965-1979)

O edifício-garagem Alfredo Issa foi construído entre 1970 e 1971, durante a gestão do prefeito Paulo Maluf (1969-1971), período em que ocorre um intenso surto de mudanças no centro da cidade de São Paulo e cujo principal objetivo era adaptá-lo à nova dimensão metropolitana.

Na ocasião, concretizam-se as profundas modificações da infraestrutura viária decorrente da implantação do transporte metroviário fato que afetou não só o centro, mas também os bairros adjacentes. Ao longo desse momento há uma intensa participação do estado na proposição de projetos de caráter reestruturador, visando adequar a circulação de veículos e pedestres na área central, à nova realidade urbana. Durante a gestão do prefeito Olavo Setúbal (1975-1979) são iniciados os projetos de reurbanização dos espaços públicos centrais, associados às estações que atravessavam o chamado Centro Velho. Essas intervenções exigiram uma atuação integrada entre o Metrô e a Empresa Municipal de Urbanização – EMURB, ficando ambas as responsáveis pela configuração dos espaços de superfície e subsolos da Praça da Sé, Largo de São Bento, Largo da Liberdade, Largo de São Francisco e do Pátio do Colégio.

O edifício-garagem e a Praça Alfredo Issa

A área escolhida para abrigar a edificação situava-se na denominada Praça Alfredo Issa, que até então, mais parecia um espaço abandonado devido ao acúmulo de água nas estruturas remanescentes da inacabada construção do chamado Palácio da Polícia, obra iniciada em 1944, mas interrompida três anos depois quando somente as fundações haviam sido executadas. Por conta do lençol freático do local, situado a apenas seis metros da superfície [1], o local se transformou em uma espécie de lagoa, o que causava sérias reclamações devido à sujeira e mau cheiro exalado, fato que era denunciado por parte da imprensa da época.

Na confluência da avenida Ipiranga com a rua Senador Queirós, existe um lugar chamado Alfredo Issa. Na planta oficial da Prefeitura tal local consta como uma praça, mas para os moradores do local não passa de um absurdo no centro da cidade de São Paulo. É uma enorme ‘lagoa artificial’ formada de águas pútridas. Só foi lembrada pelas autoridades há pouco tempo, e em razão da morte de um jovem por afogamento. [2]

Em outro trecho da reportagem, são descritas as condições em que se encontrava o local:

[…] Há mosquitos, ratos e o mau cheiro toma conta da região. […] Essa situação existe há mais de trinta anos. Esse terreno pertence ao Estado e, nele seria construído o Departamento de Investigação. Tanto é assim que os buracos para o estaqueamento chegaram a ser feitos, mas tudo parou aí, e desde então, nada mudou. […] Durante muito tempo havia os tapumes […] e a Prefeitura bombeava a água de tempos em tempos, [trazendo] o que era chamado pelos moradores do local de ‘os garimpeiros’. Eram indigentes que, [aproveitavam] o bombeamento para entrar na lagoa [em busca de algum objeto perdido]. Tal atividade lhes dava alguns quilos de maconha alguns revólveres, navalhas, facas e algumas vezes até dinheiro, abandonados pelos que eram perseguidos pelas batidas policiais, constantes no local […]. Em volta da ‘lagoa’ vivem indigentes que fazem suas casas de papel e pedaços de madeira. [3]

No início da década de 1970, o acordo firmado entre o Estado e a Município para a utilização da área por este último para a construção de um edifício-garagem, pôs fim à polêmica. A ideia era minimizar os efeitos da deficiência de vagas de estacionamento no centro. Para efetivar a obra, foi aberto um concurso público prevendo a construção de um edifício-garagem no quadrilátero formado pelas avenidas Casper Líbero e Ipiranga e as ruas dos Andradas e Timbiras.

Fig. 3. Vista do terreno onde seria construído o edifício Alfredo Issa. Desde a década de 1940, com o abandono das obras do edifício da Secretaria do Estado da Segurança, o local ficou sem uso transformando-se em uma lagoa artificial o que causava diversas reclamações (fonte: Coleção Benno Perelmutter).

Os vencedores foram os arquitetos Benno Perelmutter e Jorge Nasser. Sua proposta buscava adequar a edificação ao traçado viário previsto para a área, especialmente o da Avenida Senador Queiróz que passou a receber os veículos que vinham da Zona Norte em direção ao centro.

A construção circular possuía uma área construída de 22,5 mil metros quadrados distribuídos em dois subsolos, sete pavimentos e um terraço também utilizável para estacionamento. O acesso dos carros era feito por meio de duas rampas de treze por cento de inclinação, sendo uma central e a outra perimetral. Dois elevadores, no núcleo central (com 10 metros de diâmetro), eram responsáveis pela circulação dos usuários. Seu diâmetro total alcançava 45 metros, sendo vedado com brises verticais executados em placas de concreto pré-moldados distanciados cerca de um metro, medido de eixo a eixo. A planta se completa com um anel circular de 15 metros de largura com 12 vigas de concreto com 15 metros de vão, apoiadas na estrutura cilíndrica da rampa central e em 12 pilares na circunferência da construção. Esse anel está dividido em 12 setores dispostos radialmente, com estrutura em grelha.

Do ponto de vista da sua implantação, sua forma circular coadunava-se de forma sensível com o edifício Montreal (1950-1954), primeiro projeto do arquiteto Oscar Niemeyer em São Paulo, situado na esquina defronte, e cuja empena curva se destacava na paisagem da área.  Uma praça seca integrava o edifício-garagem ao seu entorno dando ao local um espaço público até então negado. Observando-se os projetos e comparando-os com o edifício na atualidade, verifica-se que sua construção seguiu quase que integralmente a proposta dos autores.

Esteticamente, o edifício-garagem Alfredo Issa filia-se à vertente do chamado Novo Brutalismo, muito em voga em São Paulo nas décadas de 1960 e 1970. Originária da Grã-Bretanha, essa tendência do Movimento Moderno buscava na estrutura a verdade e a pureza da forma o que se traduzia por deixar todos os elementos constituintes do projeto à mostra e destacados, desde a estrutura até as instalações.

No período, a influência do Novo Brutalismo em São Paulo é marcante e, devido ao duro contexto político dos anos 1960-70, ficou associado a uma forma de resistência e identidade arquitetônica, pois era crença entre os arquitetos brasileiros que seus princípios éticos e estéticos tinham a capacidade de operar uma profunda transformação social [4].

Dentre as características brutalistas do edifício-garagem Alfredo Issa, destacam-se a utilização do concreto aparente, sua nudez estrutural, a valorização plástica de elementos funcionais, como o volume central que concentra a circulação vertical, a casa de máquinas e o reservatório de água que ganhava destaque ao se sobrepor à cobertura.

Ao suceder a Paulo Maluf, o prefeito Figueiredo Ferraz (1971-1973) desistiu de manter a edificação sob a administração municipal, devolvendo-a à Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública que passou a utilizar a edificação como estacionamento de sua própria frota. Ainda na década de 1970, a Secretaria fechou o térreo e construiu dois andares para poder usar o edifício também em funções administrativas.

Tal acréscimo modificou significativamente a volumetria da edificação, anulando o destaque dado ao volume central já que ele se tornou um elemento interno. No novo nível da cobertura foi instalado um heliponto que funcionou até o início dos anos 1990.

Também a composição do prédio foi alterada, pois os novos andares receberam um acabamento exterior em pele de vidro que interrompeu o ritmo dos brises verticais, sensação acentuada com a inclusão destes no acabamento superior do prédio.

Em 1991, nesses dois andares são alojadas as sedes do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos – GARRA, do Serviço Aéreo Tático – SAT e do Grupo Especial de Resgate – GER todos subordinados ao Departamento Estadual de Investigações Criminais – DEIC, da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Em 1998, o térreo foi adaptado para receber uma unidade do Poupatempo – Centro de obtenção de documentos diversos. O fechamento do térreo para abrigar a nova função e o cercamento de todo o perímetro, eliminaram a integração do terreno com as ruas adjacentes e a praça, mais uma vez, desapareceu.

Às vésperas de completar 50 anos, o edifício-garagem Alfredo Issa apresenta graves problemas de conservação especialmente o desplacamento do concreto estrutural provocado pela oxidação das armaduras, nas vigas internas, nas vigas de borda e nos brises verticais. Foram verificados também problemas de infiltração causados por vazamentos e desgaste da impermeabilização da cobertura. Depois de vários adiamentos, os trabalhos de recuperação, prometidos desde 2013, iniciaram-se em 2019.

Apesar dos acréscimos sofridos na década de 1970, fato que descaracterizou significativamente sua concepção original, anulando muitas das premissas estabelecidas por seus autores e ter comprometida sua espacialidade, o imóvel foi tombado pelo município por se encontrar na chamada Zona Especial de Preservação Cultural – ZEPEC.

Por conta disso, a intervenção na edificação deverá respeitar a composição e a volumetria atuais, o que significa manter integralmente sua aparência externa, isto é, os brises e os demais elementos estruturais e arquitetônicos que o classificam como um exemplar característico Movimento Moderno brasileiro.

As alterações descaracterizadoras e mal executadas agravadas pela acentuada deterioração, fruto da crônica falta de manutenção preventiva, fato comum nos prédios públicos brasileiros, mostram o descaso com o patrimônio arquitetônico moderno.

Fig. 4. Edifício Garagem Alfredo Issa – Plantas de cobertura e do pavimento tipo (fonte: Revista Acrópole, nº 378, out. 1970, p.15).
Fig. 5. Edifício Garagem Alfredo Issa – Corte transversal. Notar o térreo livre que permitiu a sua integração à praça (fonte: Revista Acrópole, nº 378, out. 1970, p.14).
Fig. 6. Cartão postal que circulou na década de 1970 mostrando o edifício-garagem Alfredo Issa recém-inaugurado. Sua localização estabeleceu um diálogo arquitetônico com o Edifício Montreal, de autoria do arquiteto Oscar Niemeyer, cujo destaque é a empena curva formada por brises horizontais. Notar a permeabilidade de espaço público e sua conexão com praça e todo o entorno (fonte: Coleção Particular).
Fig. 7. Edifício-garagem Alfredo Issa já de posse do Estado, mas ainda sem as modificações descaracterizadoras da estética moderna e com a praça ainda permeável (fonte: Coleção Benno Perelmutter).
Fig. 8. Vista do Edifício Alfredo Issa nos anos 2000 antes do agravamento dos problemas de conservação. Notar a mudança na volumetria com a adição de dois andares, um novo coroamento que copiou a forma originalmente concebida e a inclusão de um heliporto, logo desativado (fonte Coleção Particular).
Fig. 9. Edifício Alfredo Issa em 2013. Notar os brises verticais com desplacamento do concreto (fonte: Coleção Particular).

Conclusão

A Praça Alfredo Issa tem uma história de negação recorrente de ser um espaço público. Inicialmente, por seu uso ter sido vedado por tapumes que isolavam o público de uma obra inacabada que se transformou por quase trinta anos numa verdadeira lagoa.

No início da década de 1970, a construção de um edifício-garagem cuja proposta inserida no ideal do Movimento Moderno de integrar a arquitetura à cidade, criando um espaço fluido e permeável que permitia a conexão e a interação do público com o entorno se materializou. As fotos da edificação recém-construída permitem ver um térreo livre integrado à praça, sem nenhuma barreira que impedisse a livre circulação e que ampliava o olhar ao permitir a visualização de todo o entorno edificado.

Fig. 10. Edifício Alfredo recém-concluído. Notar a integração visual de todo o entorno, a fluidez do espaço público e a praça sendo efetivamente usada, com seus bancos e demais mobiliários (fonte: Coleção Benno Perelmutter).

Contudo, esta realidade durou poucos anos. Com a mudança de gestão para o Governo do Estado, a funcionalidade do edifício foi alterada ainda nos anos 1970 com a inclusão de elementos espúrios que alteraram os princípios modernos da obra. O fato de ter-se mantida a proposta de acabamento com os brises verticais do projeto original, tornaram o edifício um simulacro de si mesmo o que fez com que se tornasse dissonante a relação proposta com o edifício projetado por Niemeyer.

 O fechamento do térreo, hoje usado como Poupatempo anulou todas as premissas da concepção original. Foi perdida a fluidez que havia com a praça que, foi gradeada e recebeu uma vegetação de grande porte, aleatoriamente distribuída. A amplitude do espaço foi mais uma vez perdida, retomando a ideia do lote fechado, lamentavelmente tão comuns e tão mal resolvidos nos projetos públicos que requerem intervenção no espaço urbano. A ausência de continuidade na gestão pública e de planejamento de ações de manutenção, associado ao desconhecimento do valor adquirido pelo bem, independentemente de sua filiação artística, leva à consequente deterioração do espaço, que perde sua identidade por conta de intervenções que levam em conta apenas ações imediatistas e descontextualizadas culturalmente.

Com isso, a população perde o direito à memória e uma estética, no caso a do brutalismo, dá lugar à brutalidade das ações do poder público. As premissas de um espaço público que foi negado durante tanto tempo, após um breve período de consolidação, quando se tornou um lugar de fruição sem barreira e conectado a todo o entorno, consolida mais uma vez a prática de produção pública de um não-lugar.

Fig. 11. Edifício Alfredo com sua estrutura em recuperação. Notar a fragmentação do espaço público causada pelo cercamento que transformou a praça num espaço privado (fonte: Fotografia do Autor, 11 nov. 2019).

Notas

[1] PERELMUTTER, Benno. Lagoa virou garagem. In: Diário da Noite, 5 jan. 1972.

[2] FOLHA de São Paulo, 25 ago. 1969, Primeiro Caderno, seção A cidade e o homem, p. 4.

[3] Idem. [4] FUÃO, Fernando Freitas. Brutalismo: a última trincheira do Movimento Moderno. São Paulo: Arquitextos, 007.09 ano 01, dez 2000. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.007/949>. Acesso em: 29 jul. 2019.


Referências

SIMÕES JR, José Geraldo. Revitalização de Centros Urbanos. São Paulo: Polis, 1994.

TOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia e a origem do urbanismo moderno em São Paulo. São Paulo: Empresa das Artes, 1996.

XAVIER, A.; LEMOS, Carlos; CORONA, E. Moderna Arquitetura Paulistana. São Paulo: Pini Editora, 1984.

REVISTA Acrópole, nº 378, out. 1970.


Antonio Soukef Júnior

Arquiteto e urbanista com pós-doutorado na área de preservação do patrimônio cultural pela Universidade de São Paulo. Professor titular do Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de Várzea Grande, UNIVAG-MT.

Helena Napoleon Degreas

Arquiteta e urbanista com Doutorado em Estruturas Ambientais Urbanas pela Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Antonio Busnardo Filho

Arquiteto e urbanista com doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor titular do Programa de Mestrado em Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de Várzea Grande, UNIVAG-MT.

______________________________________________________________________________________________________________________________

logo_rr_pp

.

v.5, n.9 (2021) 

Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional

image_pdfgerar PDFimage_printimprimir