Museu Vivo do Nordeste: dez anos como um relicário de memórias nordestinas
| Leandro Santos Costa e Bruna de Oliveira Almeida |
Traga os olhos pra passear
num museu caririzeiro
vá de volta pro passado
recordando o dia inteiro
das raízes culturais
do nordeste brasileiro!
(Adonhiran Ribeiro dos Santos)
Situado no histórico bairro de Bodocongó, na cidade de Campina Grande / PB, o Museu Vivo do Nordeste (MVNe) tem como objetivo preservar o patrimônio a partir de objetos pertencentes ao universo nordestino, especificamente do interior da Paraíba. O MVNe surgiu como um projeto inicialmente pessoal do professor e historiador Adonhiran Ribeiro dos Santos, que o sediou em sua própria casa. Posteriormente, a partir de 2009, o MVNe vinculou-se às atividades de extensão da Universidade Estadual da Paraíba. Em 2019, o museu completa 10 anos de histórias, contando com atuações regionais e nacionais, além de mais de 600 peças catalogadas, provenientes dos séculos XVIII, XIX e início do século XX, incluindo peças em funcionamento e que podem ser experienciadas pelos visitantes ou cursistas [1].
O museu tem a função de representar a moradia de um homem do interior, onde as casas tinham apenas um vão, por isso, a entrada do museu começa pela cozinha. O fogão, na maioria das vezes funcionando e exalando o cheiro da comida preparada na hora, confere ao Museu um caráter vivo. Depois de apresentar a sala – composta pela mesa, oratório, petisqueiro dentre outros objetos –, o terceiro espaço apresentado vincula-se à técnica, com as máquinas e utensílios necessários à vida cotidiana. Temos, ainda, o terreiro. Um anexo vinculado ao museu e que abriga um bar cenográfico com uma mescla de estilos em sua composição estética: do alternativo ao artesanal. E, por último, mas não menos importante, temos o “beco”, construído para representar a vegetação típica do nordeste. A partir do beco, podemos entrar ou sair do museu.
Ao estimular, dessa maneira, a capacidade de sentir e de se emocionar – por meio das diversas manifestações artísticas expostas, tais como livros, discos, peças, pinturas e poemas, provindas de cada visitante ou do acervo que a instituição disponibiliza –, o museu aguça a sensibilidade e a curiosidade por “vasculhar” para além do visível. Desse modo, o MVNe instiga a memória daquilo que talvez não tenhamos vivido, porém, do que nos lembramos bem. Ao contrário de outras instituições de memória, nas quais o acervo não é palpável ou consultável, no MVNe o acervo é dinâmico, pois sugere movimento na relação entre a permanência de tradições, de saberes e fazeres, e a sua continuidade reinventada no tempo presente, no cotidiano da região. Dessa forma, não apenas juntar objetos, mas dar-lhes vida, é um de seus focos.
Em diversas reportagens sobre o MVNe [2], pudemos captar, a partir dos relatos de seu fundador, a dimensão simbólica da casa que se tornou o museu vivo das memórias do semiárido nordestino [3]. Foram vários os trabalhos realizados nos dez anos de existência do Museu Casa, atendendo a públicos distintos sem perder sua característica.
O MVNe não é imóvel, não está cristalizado. A partir dessa perspectiva, o museu propõe uma interação criadora entre o seu espaço e as artes, sejam elas plásticas, sonoras, teatrais, culinárias, cinematográficas etc. Deste modo, as ações do MVNe têm buscado abordar a arte em suas mais variadas linguagens, tomando-a como constituidora de múltiplas identidades, porém relacionando-a, sempre, com a proposta central da Casa Museu, isto é, a cultura popular nordestina. Com base no resultado das ações propostas pelo museu, como cursos e atividades culturais, acreditamos no potencial da arte enquanto conhecimento a ser construído e linguagem a ser experimentada e fruída, levando nosso visitante a construir, experimentar, expor e refletir.
Desse modo, na experiência do MVNe, não lidamos com a ideia de museu como “guardador” de obras de arte e sim como espaço que permite as mais variadas manifestações artísticas, evidenciando a relação passado-presente e os discursos acerca do Nordeste e de sua cultura do interior, dando voz e vez ao povo nordestino.
Conduzindo nosso visitante a experimentar e a refletir, consideramos a arte como área de conhecimento com características únicas e imprescindíveis ao desenvolvimento do ser humano. Daí a importância de repensar os museus como espaços para a atividade estética e criadora, nos quais haja uma integração entre as peças, a produção artística e as memórias. Segundo Barbosa:
Por meio da Arte é possível desenvolver a percepção e a imaginação, apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo ao indivíduo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada. [4]
Desse modo, o Museu Vivo do Nordeste busca transformar o olhar da comunidade sobre a cultura regional, construindo e desconstruindo discursos acerca de uma rica história vivida em nossa região, no intuito de estimular a sensibilidade e a cognição do visitante. Acreditamos que, ao “provocar” o público, abrimos possibilidades para a construção do respeito por uma história de raízes que, de uma forma ou de outra, também é nossa própria história.
Não se trata de visitar o passado e sim de acender estudos sobre o tempo pretérito em relação com o que é vivido no presente. Conhecer o passado de modo crítico significa, antes de tudo, viver o tempo presente como mudança. Desse modo, por meio das relações entre os objetos atuais e os objetos de outros tempos, o museu ganha substância educativa, pois desvenda relações entre o que passou, o que está passando e o que virá. É o que o MVNe procurou nos dez últimos anos, produzir memórias de um homem do interior atreladas às nossas vivências contemporâneas.
Assim, registramos e damos voz ao legado de homens que não lideraram grandes batalhas, que não se tornaram grandes líderes políticos, mas que fizeram de suas vidas obras e marcas de resistência, produção de saberes, lições. Que atenderam às demandas espaciais e temporais de acordo com o que tinham e sabiam; realidades de grandes e simples heróis que podem nos ensinar a tecer o nosso cotidiano, que podem nos dar respostas para o nosso presente permeado de incertezas.
Os sujeitos devem perceber o museu como uma fonte que carrega consigo símbolos, marcas, auras, signos, ou melhor, não só contemplar, mas captar a profundidade deste espaço. Pois é um lugar que proporciona, por sua vez, a compreensão das inter-relações tanto naturais, como sociais, econômicas e culturais envolvidas. É o que afirma Waldisa Rússio Guarnieri ao definir a museologia como:
Ciência do fato museal ou museológico. O fato museológico é a relação profunda entre o homem, sujeito que conhece, e o objeto, parte de uma realidade da qual o homem também participa, e sobre a qual tem o poder de agir. O fato museológico realiza-se no cenário institucionalizado do museu. [5]
Por essa via, não se pode tratar as peças do museu apenas como artefatos, pois são bases de informações, documentos e fontes de pesquisas para o historiador. Portanto, o museu gera e estimula reflexões acerca dos signos e significados dos objetos que têm laços simbólicos, pois se não pensar o presente vivido, não terá bases para construir saberes do passado. Para Chagas, o olhar que questiona, interroga e busca, torna os objetos bens culturais [6].
Para perceber os fatos históricos analiticamente, deve-se entender o momento atual, o agora como um devir, isto é, uma mudança contínua, onde tudo coagula e solve em seus processos. O museu consegue proporcionar essa micro relação histórica, peças e memórias, passado e presente entrelaçado como uma simbiose. Como se percebe, também não é lugar de nostalgia, mas onde mantemos viva a história, como no mito grego de Atlas, cujo esforço ao carregar o mundo nas costas possibilita o conhecimento dos instantes que se escrevem e dos momentos (de séculos ou até milênios) que se passaram. A história cultiva, portanto, na figura do museu, não só a memória, mas as emoções vividas.
A partir dessa perspectiva, buscamos trabalhar as relações dos visitantes com os objetos, bem como a relação dos artistas com o espaço. O agendamento prévio das visitas permite que seja definida a quantidade de visitantes que poderão comparecer numa mesma hora. Buscamos, então, ressaltar a história de algumas peças para que o nosso visitante possa imergir, a partir da narrativa sobre determinado objeto, em outro tempo e espaço, porém conectado com o presente. Seguindo a perspectiva teórica de Maurice Halbwachs podemos entender que a memória aparentemente mais particular remete a um grupo [7]. O indivíduo carrega em si a lembrança, mas está sempre interagindo com a sociedade, seus grupos e instituições. É no contexto dessas relações que construímos as nossas lembranças.
Dessa forma, não apenas os objetos, mas também a narrativa acerca desses incitam no visitante a rememoração de algo que já fora vivido ou contado por outro a partir da vivência coletiva, por essa razão: Museu Vivo. Os museus tornam-se, portanto verdadeiros relicários de memórias vívidas, expondo objetos que carregam em si as lembranças e a história; que se moldam e se adaptam a cada olhar, a cada história individual que carrega em si tantas outras histórias.
A função de um museu e do Museu Vivo do Nordeste, particularmente, não é apenas juntar objetos, como por muitos ainda é visto e julgado, mas criar afetividades relacionadas a esses objetos e suscitar nas pessoas relações intrínsecas que apenas os seus lugares sociais poderiam desenvolver com relação aos mesmos. Afinal, cada “objeto” ultrapassa essa categoria quando a ele atribuímos nossas memórias, nossos afetos e nossos esquecimentos, tornando-se “paisagens móveis” de um passado intrinsecamente relacionado ao presente, ao instante de quem lembra. Ora! O ato de lembrar se dá no agora, parte de nossas inquietações atuais que já não são as mesmas de ontem, portanto, esse belo movimento onde o presente caça o passado para atenuar-lhe uma dor, ou trazer-lhe pessoas, momentos, cheiros ou cores ressignificadas de um ontem que jamais poderá voltar, é um movimento feito a partir de um signo exterior e que, sobretudo, recoloca à história o seu objeto.
Portanto, percebemos que o Museu Vivo do Nordeste, em seus dez anos, vem nos mostrando que precisamos gerar consciência para guardar e preservar o patrimônio cultural e memorial de nossa sociedade. O museu não é só um lugar para guardar coisas velhas, mas um espaço para construir a história para além dos signos semânticos e existenciais, no tocante à relação do sujeito com o objeto exposto à sua frente e capaz de “funcionar”. Museu Vivo não só na memória, mas em sua tentativa de “reviver” suas peças, de interagir com o corpo, com a mente e todas as suas estruturas psíquicas.
Notas
[1] Atualmente, o MVNe está integrado ao mapa do IBRAM e à Semana Nacional de Museus, desde 2013, oferecendo várias atividades para a comunidade, a exemplo do curso “Estética do Cangaço”, realizado pelo Mestre artesão Biagio Grisi. Ressaltamos que o Museu Vivo é um projeto que se tornou bem sucedido devido à dedicação de seu fundador Adonhiram e de todos os bolsistas, colaboradores e voluntários ao longo de seus dez anos de existência.
[2] Entre tantas reportagens sobre o MVNe, escolhemos algumas que demonstram objetivamente cada parte do Museu. São entrevistas e reportagens feitas e/ou cedidas por programas jornalísticos ou, ainda, desenvolvidas por estudantes, como por exemplo, do curso de Jornalismo da UEPB. Dessa forma, percebemos o diálogo com a comunidade acadêmica e as comunidades em geral: Estudantes de Jornalismo (UEPB) https://www.youtube.com/watch?v=F6693I3xmPU; Programa Diversidade da TV Itararé filial da TV Cultura, https://www.youtube.com/watch?v=ZWnmbDaSVKs; Reportagem cedida à UEPB 5.0 https://www.youtube.com/watch?v=yJZScLKVsqI; Programa Pernambuco Cultural com Mestre Lua, acesso https://www.youtube.com/watch?v=huCfS215L7Q Acessos em: 19/04/2019.
[3] Entrevista cedida ao G1, disponível em http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba.html; Entrevista para o Blog Jornalístico TOK de HISTÓRIA, disponível em https://tokdehistoria.com.br/2016/08/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba/ Acessos em 19 de Abril de 2019. A pesquisa de Francinilda Rufino também merece ser citada como uma importante fonte de pesquisa obre o MVNe: RUFINO, Francinilda. Museu Vivo do Nordeste: tecendo fios, acendendo o fogão, preparando a farinha e cozinhando o ‘pão’. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de História da UEPB. Disponível em http://dspace.bc.uepb.edu.br/jspui/bitstream/123456789/3211/1/PDF%20%20Francinilda%20Rufino%20da%20Souza.pdf Acesso em: 19/04/2019.
[4] BARBOSA, A. As mutações do conceito e da prática. In BARBOSA, A. (org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2003, p.18.
[5] GUARNIERI, W. Museologia e Identidade. In: Cadernos Museológicos, nº 1&2, 1990, p.42.
[6] CHAGAS, Mario. Museu: coisa velha, coisa antiga. Rio de Janeiro, UNIRIO, 1987, p. 20.
[7] HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. – São Paulo: Vertice, 1990.
Referências Bibliográficas
BARBOSA, A. As mutações do conceito e da prática. In BARBOSA, A. (org.). Inquietações e Mudanças no Ensino da Arte. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.
CHAGAS, Mario. Museu: coisa velha, coisa antiga. Rio de Janeiro, UNIRIO, 1987, p. 20.
GUARNIERI, W. Museologia e Identidade. In: Cadernos Museológicos, nº 1&2, 1990.
HALBWACHS, M. A Memória Coletiva. – São Paulo: Vertice, 1990.
LIRA, A. Professor de história tem museu do Nordeste dentro de casa, na Paraíba. In: G1, Reportagem, 2016. Disponível em http://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/2016/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba.html Acesso em: 19/04/2019.
MEDEIROS, R. Professor de História tem Museu do Nordeste Dentro de Casa, na Paraíba. In: TOK de HISTÓRIA, reportagem, 2016. Disponível em https://tokdehistoria.com.br/2016/08/08/professor-de-historia-tem-museu-do-nordeste-dentro-de-casa-na-paraiba/ Acesso em: 19/04/2019.
MUSEU VIVO DO NORDESTE. Fotografias e Outras Informações Disponível em https://museuvivodonordeste.wordpress.com/ Acesso em: 19/04/2019.
Leandro Santos Costa, formado em Filosofia (Licenciatura Plena) pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), é pesquisador, artista e escritor. Trabalhou três anos como pesquisador do MVNe. Foca suas pesquisas no panorama dos fenômenos subjetivos voltados para a Estética e a Arte, como também, na Fenomenologia, Hermenêutica, Ética, Educação, Museologia (Patrimônio e Memória), Ciências Humanas e Sociais, Ontologia e Epistemologia. É pós-graduando Lato Sensu em “Problemas Fenomenológicos e Hermenêutica”, com a pesquisa: Esboço fenomenológico hermenêutico da subjetividade para uma sociedade em crise. e-mail para contato: lleo-sc@hotmail.com
Bruna de Oliveira Almeida é acadêmica de Direito da Faculdade Cenecista da Ilha do Governador (FACIG), e-mail para contato: almeidabruna@live.com
v.3, n.6 (2019)
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