| Camila Corsi Ferreira |
Este trabalho trata da intervenção restauradora realizada em 1958-63 pelo arquiteto brasileiro Luís Saia na Real Fábrica de Ferro Ipanema, localizada em Iperó-SP, e que atualmente integra o patrimônio industrial de São Paulo. A fábrica foi instalada no final do século XVI, no interior da Floresta Nacional do Ipanema, e suas construções remanescentes podem ser consideradas pioneiras no segmento da siderurgia no Brasil. Luís Saia foi um dos principais personagens da prática de preservação no Brasil, através da estruturação de uma metodologia de restauração, dentro do contexto preservacionista da agência federal de preservação brasileira, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Este artigo procura discutir se essa intervenção de restauração teria sido guiada por alguma base teórica ou unidade conceitual e, nesse contexto, se teria sido fundamentada por preceitos teóricos europeus de restauração.
Luís Saia e o SPHAN
A preservação do patrimônio cultural no Brasil conta, atualmente, com a preocupação de uma sociedade que caminha no sentido de maior valorização do patrimônio histórico e cultural por meio de contínuas discussões que envolvem sua preservação, apesar de ainda haver descaracterização de monumentos e conjuntos urbanos. No entanto, a formulação de uma política cultural se deu, principalmente, partir da década de 1920, quando foram criados os primeiros órgãos e formuladas as primeiras legislações para a proteção do patrimônio cultural no país, tendo como referências para sua estruturação as experiências preservacionistas europeias, em especial a experiência francesa. Contudo, foi apenas em 1936, por solicitação do ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, que Mário de Andrade redigiu o anteprojeto da lei de proteção ao patrimônio cultural, no qual propôs a criação do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), órgão que teria nos intelectuais modernistas os promotores do projeto de identidade nacional relacionado à arquitetura colonial brasileira.
Para que as atividades de proteção dos bens tivessem início efetivo, foi necessária a constituição de grupos de trabalhos regionais e a definição de suas respectivas lideranças. Em São Paulo, a liderança da 6a região coube a Mário de Andrade, a quem sucedeu, em 1946, Luís Saia. Em sua atuação como chefe da regional paulista, Luís Saia foi um dos personagens fundamentais para a prática da preservação através da estruturação de uma metodologia de restauração no país, principalmente entre as décadas de 1930 e 1960. Sua atuação logo excedeu os limites dos levantamentos de campo e dos registros gráficos, tendo se destacado intelectualmente, nesse período, nos trabalhos realizados junto ao órgão, onde projetou e realizou inúmeras obras de restauração, entre elas o restauro da Real Fábrica de Ferro Ipanema, em Iperó-SP.
A Real Fábrica de Ferro Ipanema, cujo sítio histórico foi tombado pelo IPHAN, está localizada no interior da Floresta Nacional Ipanema, que tem uma área de 5.069,73 ha e abrange parte dos municípios de Iperó, Araçoiaba da Serra e Capela do Alto, próximos à cidade de Sorocaba, no Estado de São Paulo. As principais edificações que formavam o conjunto eram a casa do administrador, oficina de refino, moradias dos operários, depósitos, fornos altos, fábrica de armas brancas e uma represa, que alimentava um conjunto de canais que moviam as máquinas nas diversas oficinas.
Histórico das edificações da fábrica
As construções remanescentes da fábrica de São João de Ipanema [1] podem ser consideradas pioneiras no segmento da siderurgia no Brasil. A fábrica foi resultado de experiências de fabricação de ferro no morro de Araiçoiaba, por volta do século XVI, com Afonso Sardinha, como relata João Pandiá Calogeras: “Dos archivos da Camara Minicipal de São Paulo consta que em 1590 Affonso Sardinha fundou no Morro Araçoyaba uma fábrica de ferro composta de dois pequenos fornos” [2].
Testes com o metal extraído para a fundição foram iniciados ainda por volta do final do século XVIII, formando uma pequena empresa de prospecção, e Morgado de Mateus, governador da capitania de São Paulo, enviava amostras do ferro encontrado para Portugal [3]. No entanto, após inúmeros contratempos, a empresa foi abandonada e passou a funcionar somente em 1810, por ordenação de D João VI, como a Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema [4]. A partir de então, a fábrica passou por várias administrações, alterando períodos de ascensão e declínio.
Às vésperas da guerra contra o Paraguai, Ipanema estava completamente arruinada, mas os planos para reerguer a companhia começam a figurar nas discussões da Assembleia Geral e o governo volta outra vez sua atenção para o empreendimento, devido à iminência do conflito armado. Nos anos da guerra, entre 1864 e 1870, a fábrica foi um importante ponto de apoio para o fornecimento de armas e projéteis para o exército imperial, sob o comando do capitão Joaquim de Souza Mursa, e em suas instalações armamentos foram fabricados. Iniciou-se, assim, um lento processo de reforma, que se estendeu até o início da década de 1870 [5], quando a fábrica ainda estava em fase de reconstrução de seus edifícios. Em 1872, o Ministério da Guerra informou, em um de seus relatórios, que a fábrica já estava reestruturada [6].
Em 1878, a administração da fábrica iniciou a construção de um ramal ferroviário, a fim de interligá-la a outros pontos da província, recurso que foi considerado fundamental para que a empresa se tornasse novamente rentável para o Estado. Contudo, mesmo com essas medidas, a companhia oscilou entre períodos de boa produção e queda em suas atividades. As indecisões sobre o futuro da companhia arrastaram-se até 1895, quando o governo republicano decide pelo encerramento definitivo das atividades do complexo, uma vez que as importações se tornaram mais lucrativas [7]. A propriedade foi transferida para o Ministério da Guerra e, posteriormente, para o Ministério da Agricultura.
A intervenção de Luís Saia na Fábrica de Ipanema
Várias foram as tentativas de aproveitamento dos prédios remanescentes da antiga fundição ao longo do século XX, como o período de 1910-1913, em que foi instalado em Ipanema um quartel do Exército. Seguiu-se um período de relativo abandono, e somente a partir de 1930 o Governo voltou a utilizar o lugar [8], período em que não houve o cuidado sistemático com a preservação do patrimônio edificado. Na década de 1960, o conjunto atingiu um estado de ruína bastante avançado.
Poucos remanescentes relacionados ao conceito de patrimônio industrial, no âmbito nacional, foram efetivamente tombados no período entre o início das atividades do órgão e a década de 1960. Em 1938, houve o primeiro registro no livro histórico das ruínas da Fábrica de Ferro Patriótica [9], em Ouro Preto-MG. Considerando a relação entre patrimônio industrial e a produção manufatureira colonial, pode se destacado o tombamento das ruínas do Engenho São Jorge dos Erasmos, em Santos, que aconteceu apenas em 1963 [10], e a primeira iniciativa nacional de efetiva preservação de um conjunto industrial, a Real Fábrica de Ferro São João do Ipanema, em 1964.
Apesar das ações efetivas terem início apenas na década de 1960, as discussões sobre o destino da fábrica já faziam parte das considerações de Saia, que já trocava correspondências com Rodrigo M. F. de Andrade, sobre os procedimentos para tombamento e restauro, ainda na década de 1940.
Em junho de 1949 foi enviado um ofício ao Ministro da Educação e Saúde, Dr. Clemente Mariani, solicitando a consideração da possibilidade da preservação das edificações pelo SPHAN. Saia se manifestou com relação ao tombamento do conjunto, expondo, em ofício enviado a Rodrigo, suas justificativas para a realização do tombamento apenas de algumas peças expressivas, desaconselhando, entretanto, a ação no conjunto todo, por causa da desagregação em que se encontrava:
Dada a importância histórica das tentativas realizadas neste local para explorar o minério de ferro, deste o primeiro século, e em vista de existirem ali diversas edificações documentando este acontecimento, fica evidente desde logo o interesse que esta repartição tem no tombamento de algumas peças significativas das diferentes fases da referida exploração. (…) O tombamento do conjunto parece a esta Chefia desaconselhável em virtude da desunidade do atual aglomerado arquitetônico, e também porque tal inciativa viria certamente conflitar com a situação vigente de aproveitamento da fazenda em questão para fins de aprendizado agrícola. [11]
Em seguida, em 11 de julho do mesmo ano, Saia relata a Rodrigo as impressões de sua visita à fábrica, realizada no ano anterior, sugerindo um tombamento preliminar. Em resposta, Rodrigo M. F. de Andrade concorda com a sugestão [12]. Para tanto, Germano Graeser foi enviado a uma viagem de inspeção, em 1958, ao lado de Edgard Jacintho da Silva, Herman Hugo Graeser, Armando Rebollo, Lincoln Faria e Manoel Righetti. A fábrica de Ipanema estava no roteiro da viagem, a fim de procurar material para embasar os estudos para planejamento das obras de restauração.
Dia 24/04 – Passamos por Sorocaba, rumo à FÁBRICA DE FERRO DO IPANEMA, a fim de vistoriar os edifícios e instalações que restam daquela fábrica, alguns em condições relativamente muito boas, outras exigindo para sua recuperação obras bastante grandes e ainda outras, cujo estado é já de quasi ruínas o que demandariam obras de enorme vulto, especialmente no que se refere às de marcenaria, tal o estado de dano em que se encontram. […] Deve-se considerar entretanto que as peças de maior interesse são felizmente as que se encontram em melhor estado de conservação e consequentemente não exigindo obras tão enormes e dispendiosas. [13]
É importante apontar que em nenhum momento há referência a qualquer tipo de projeto de restauro, bem como nas outras obras de restauração já realizadas e nas posteriores. Nesse período, o tombamento do conjunto ainda não havia sido efetivado. O processo com o pedido transitou por vários departamentos do governo, até serem solicitadas medidas, com relação tombamento e à “reconstrução” do edifício que abrigou a antiga casa de armas, ao diretor do Serviço do Patrimônio da União, Francisco Sá Filho, que em ofício datado de junho de 1961 informou ao diretor do Departamento Nacional da Produção Vegetal (DNPV) que o encaminhamento deveria ser feito ao SPHAN. Em setembro do mesmo ano, o diretor do DNPV, Cunha Byma, repassou ao SPHAN o processo relativo à reconstrução do “casarão” [14], e Renato Soeiro, novo diretor do SPHAN, encaminhou-o a Saia, junto ao ofício no 1449, solicitando-lhe “estudar o assunto com a atenção merecida, a fim de devolver o mesmo processo a esta Diretoria devidamente informado para a resposta adequada ao Diretor Geral do Departamento Nacional da Produção Vegetal” [15].
Não obstante, as instalações da fábrica permaneceram em estado de abandono, o que levou a Sociedade Amigos de Sorocaba a se manifestar, solicitando, em 1963, providências para o tombamento e execução dos urgentes serviços de proteção e restauração, o que foi efetivado em 1964. A restauração da fábrica de armas brancas, sob a orientação de Luís Saia, foi iniciada apenas três anos depois, em fins de 1967. Contudo, as ações de restauro durante o século XX foram apenas pontuais e visaram somente a preservação de prédios em pior estado de conservação, não englobando o total das edificações [16].
No ano seguinte, os ministérios da Agricultura e da Educação e Cultura firmaram um convênio visando a instalação do Museu Nacional do Ferro, projeto que estava nos planos do SPHAN desde o tombamento do conjunto, mas que não foi levado adiante.
O pioneirismo da intervenção na Fábrica de Ferro de Ipanema pelo SPHAN, ocorrida antes da difusão do conceito de arqueologia industrial no Brasil, foi apontado por Gama, que destaca a existência de “[…] um conjunto de edifícios, dois dos quais foram restaurados e preservados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional”, fato que “se encaixaria perfeitamente no objeto e na preocupação de uma arquitetura industrial” [17].
[…] E foi feita no Brasil antes que se falasse sequer em arqueologia industrial. Corremos o risco, portanto, de adotar um nome novo e importado para denominar uma coisa que, de alguma forma, já vinha sendo feita no Brasil. É claro que este trabalho de restauração e de preservação da Fábrica de Ferro de Ipanema se restringiu aos edifícios. Boa parte daquelas máquinas e dos equipamentos ali usados ficou perdida para sempre, alguns restos de forma que deveriam ter sido restaurados, algumas máquinas, alguns moinhos para trituração de minério, os restos do antigo caminho de ferro por onde o ferro era trazido das jazidas próximas para o recinto da fábrica, etc. […] Porém é indiscutivelmente um marco. É um marco que antecede o nome arqueologia industrial. [18]
Nesse sentido, “[…] as propostas de tombamento de ‘novos programas’ ou do denominado ‘patrimônio cultural não consagrado’ reforçou a necessidade de organizar novas referências conceituais” [19], uma vez que, até então, a orientação do SPHAN abarcava apenas outras tipologias em suas intervenções. Em decorrência dessa nova orientação, efetuaram-se grandes avanços na política nacional de salvaguarda do patrimônio industrial, pois “com isso, a ampliação da perspectiva histórica possibilitou a atribuição de valor estético a bens como obras da tecnologia industrial tais como pontes, mercados, fábricas, caixas d’água, faróis, estações ferroviárias etc.” [20]
Luís Saia afirma, em uma declaração de 1968, que o SPHAN estabeleceu um regime de colaboração com o Ministério da Agricultura, onde a contribuição do 4o Distrito se daria com o “remanejamento das comportas do lago, no canal que atravessa o edifício da Antiga Fábrica de Armas Brancas, ora em restauração” [21], em que foram utilizados enormes blocos de pedra, que só puderam ser cortados com auxílio de cabos de aço. Para o telhado, foi empregada madeira adquirida no Paraná e Mato Grosso, cujo transporte se deu com dificuldade [22].
A intervenção de restauro na casa de armas brancas seguiu a mesma orientação de suas outras obras, adotando mais uma vez a postura do teórico francês Viollet-le-Duc, de volta a um estado provavelmente imaginado. Novamente, sua concepção de restauro esteve calcada em hipóteses e na sua experiência no SPHAN, considerando as poucas referências históricas e iconográficas. As ‘novas referências conceituais’ que deveriam guiar uma tipologia diversa das obras anteriores não foram exploradas, e as disposições da Carta de Atenas de 1931 e da Carta de Veneza, de 1964, não foram acatadas.
A noção de unidade estilística remete-nos aos postulados do teórico francês, e é interessante notar que esteve presente em todos os trabalhos de Saia desde as intervenções pioneiras nas igrejas de Embu e de São Miguel até o partido seguido na fazenda Pau d’Alho, abarcando inclusive outras tipologias, como as casas bandeiristas e o patrimônio industrial, exemplificado neste estudo pelo Engenho dos Erasmos e pela Real Fábrica de Ferro Ipanema [23]. A animosidade gerada em relação à sua obra se deve a essa postura da busca pela unidade de estilo, que foi guiada pelo valor artístico em detrimento do valor histórico, e cujas ações extrapolaram o campo puramente investigativo ao sair do plano das pesquisas preliminares e passar a proposições de ordem formal, com a eliminação de adições posteriores.
Camila Corsi Ferreira
Doutora em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo pelo Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – IAU-USP (2015). Mestre em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo – EESC-USP (2011). Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo – EESC-USP (2003). Vínculo institucional: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – ITPAC, Porto Nacional / TO. E-mail: camila.cf@gmail.com
v.4, n.7 (2020)
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