Françoise Choay (1925-2025)

Testo originale in italiano

| Andrea Pane | 

De Leon Battista Alberti à inteligência artificial: memória, vida e obras de uma figura que marcou um século

Françoise Choay, filósofa e historiadora das ideias, professora catedrática e, em seguida, docente emérita da Universidade de Paris 1 PanthéonSorbonne e Paris VIII, faleceu em Paris no dia 8 de janeiro de 2025, ano que marcaria seu centésimo aniversário. Ao longo de sua extensa vida, a pesquisadora atravessou o Novecento, um século turbulento e complexo, cujas contradições e esperanças ela soube interpretar com lucidez e inteligência extraordinárias, adentrando o terceiro milênio com intuições muitas vezes proféticas [1]. 

Fig.1. Françoise Choay (fonte: foto gentilmente cedida por Andrea Pane).

Referência para gerações de estudiosos

Tendo sido conhecida, na Itália e no exterior, principalmente por duas de suas obras, ambas traduzidas precocemente para a língua italiana – L’Urbanisme. Utopies et réalités (Seuil, Paris, 1965) e L’allégorie du patrimoine (Seuil, Paris, 1992) [2] – Choay influenciou ao menos quatro gerações de alunos e pesquisadores, no âmbito tanto dos estudos urbanos quanto da cultura do patrimônio.

Sua produção, contudo, foi bem mais abrangente, movendo-se desde a crítica das artes figurativas até a arquitetura, a semiologia, o patrimônio, até os temas do projeto local e da globalização, sem nunca se afastar de seu fundamental interesse pela cidade: um dos seus últimos trabalhos, com efeito, trata do barão Haussmann, tendo sido ela curadora da edição integral de suas Mémoires, em 2000.

Nascida em Paris em 29 de março de 1925, crescida em um milieu cultural de alto nível, favorecida por um excelente domínio das línguas estrangeiras que propiciaram seu contato com as fontes primárias, Choay foi aluna, na Sorbonne, de Jean Hyppolite, Gaston Bachelard e Claude Lévi-Strauss. Alguns anos mais tarde, seu encontro com André Chastel, orientador de sua tese de doutorado defendida em 1978, estimularia seu contato com a Itália.

Seu primeiro livro focava na figura de Le Corbusier (Braziller, New York, 1960), já denotando um marcado interesse pelas teorias do urbanismo, como testemunhado, também, pelo já citado L’urbanisme. Utopies et réalités. Seguiram, também, o volume The modern city: planning in the 19th century (Braziller, New York, 1969), o livro fotográfico Espacements (Seuil, Paris, 1969), e o capítulo Urbanism and Semiology, in Meaning in architecture (Barrie & Rockliff, Londres, 1969), todas comprovações de sua dívida cultural para com o mestre Lévi-Strauss.

Docente, desde 1966, junto à École Nationale Supérieure de artes visuais de La Cambre (Bruxelas), em 1971 Choay foi chamada por Pierre Merlin para lecionar no Département d’urbanisme du Centre universitaire expérimental de Vincennes (que, futuramente, tornar-se-á o Institut Français d’Urbanisme da Universidade de Paris VIII), onde, em seguida, receberá o cargo de professora catedrática e, por fim, de emérita.

Fig.2. Françoise Choay e Andrea Pane (fonte: foto gentilmente cedida por Andrea Pane).

Entre patrimônio e globalização

Em 1980, Choay publicou La régle et le modele (Seuil, Paris, 1980), onde ela propunha uma comparação entre a Utopia de Thomas More e o De re aedificatoria de Alberti. Em 2004, junto a Pierre Caye, foi curadora de uma nova tradução em francês justamente da obra de Alberti; a primeira após a única feita por Jean Martin, em 1553.

Desde 1977 empreendeu uma nova leitura de Camillo Sitte, promovendo uma tradução mais fiel (1980) com a ajuda de seu aluno germanista Daniel Wieczorek. Logo em seguida ela teve contato com a obra de Gustavo Giovannoni, ao qual dedicaria uma atenção a cada vez maior, contribuindo, assim, para requalificar sua fortuna crítica em nível internacional, traduzindo partes de Vecchie città ed edilizia nuova (1931), com o título L’urbanisme face aux villes anciennes (Seuil, Paris, 1998). A partir da década de 1980, Choay recebeu numerosos convites nos ateneus italianos, muitas vezes no papel de visiting professor; em 2001, foi homenageada com uma graduação honoris causa pela Universidade de Genova.

No começo do século XXI, os interesses da estudiosa tocavam duas principais vertentes: por um lado os temas do patrimônio, através de leituras antológicas e traduções dos textos dos pais fundadores da tutela e da conservação (Raffaello, Camillo Boito); por outro, os temas da globalização em relação à escala local dos assentamentos humanos. Demonstração desta tendência são Le patrimoine em questions. Anthologie pour un combat (Seuil, Paris, 2009) e a tradução francesa de Il progetto locale (Mardaga, Liegi, 2003), de Alberto Magnaghi, o qual, por sua vez, foi curador de uma coletânea de escritos da Choay: Del destino della città (Alinea, Firenze, 2008).

Visões proféticas

A longa e operosa vida de Françoise Choay foi sempre sustentada por um amor profundo pela dimensão humana da cultura, pelas raízes complexas da identidade europeia, pela preservação ativa, e não museificadora, do patrimônio. Ela era conhecida em âmbito internacional, desde os Estados Unidos, onde ensinou por longo tempo junto à Cornell University (1986-1992); até o Japão, onde participara ativamente da Conferência de Nara sobre a Autenticidade (1994), e América do Sul, onde tornou-se quase um objeto de veneração. Com sua prosa límpida e inconformista, Choay lutou contra o reducionismo, contra o apagamento da memória e contra as pressões do mercado, nos ensinando a desconfiar da desumanização preconizada pelos primeiros gurus da informática – e o fez, ainda, quando tudo isso não aparentava pôr em perigo a sobrevivência da cultura.

Hoje, passados mais de trinta anos destas suas intuições proféticas, perante as ameaças incumbentes da inteligência artificial e de sua gestão, podemos entender melhor o quanto ela possuísse uma visão a longo prazo. Com o tempo, apreciaremos ainda mais suas precoces reflexões, alimentadoras de um discurso crítico que precisa ser mantido como uma fundamentação sólida de quaisquer considerações acerca da cidade e do patrimônio.

Por enquanto, contudo, não podemos não levar com tristeza o desaparecimento de uma mente tão férvida, sempre acompanhada por grande gentileza para com todos os estudiosos, até mesmo os mais novos, aliada a um espírito extremamente refinado, que vai fazer muita falta, tanto para os que a frequentaram regularmente, quanto para os muitos que ouviram suas aulas e leram seus livros.

Sit tibi terra levis, Françoise.


Notas

[1] Tradução de Alessandra Bedolini. Artigo original em língua italiana publicado em 13/01/2025 na revista digital Il Giornale dell’Architettura.com 

Disponível em: https://ilgiornaledellarchitettura.com/2025/01/13/francoise-choay-1925-2025/

[2] Ambas traduzidas para o português: O urbanismo: utopias e realidades. Uma antologia (São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979) e A Alegoria do Patrimônio (São Paulo: Estação Liberdade / Ed. UNESP, 2001).


Andrea Pane

Arquiteto e PhD, é professor titular de Restauração Arquitetônica no DiARC da Universidade de Nápoles Federico II, onde coordena o curso de mestrado internacional em Arquitetura e Patrimônio. É coordenador de três convênios internacionais com universidades brasileiras, onde foi professor visitante diversas vezes. É autor de mais de 230 publicações científicas que abrangem desde a história da restauração arquitetônica e urbana até a paisagem, o patrimônio industrial e a acessibilidade.


 

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