Fotogrametria aplicada a um mausoléu projetado por Lina Bo Bardi
| Brunna Heine |
No Cemitério São Paulo, destaca-se entre os mausoléus do entorno uma caixa suspensa de mármore Neve Brasil, repousada sobre um jardim e rodeada por altas paredes revestidas de mármore Travertino [1]. O cubo abriga, em seu interior, um tondo [2] de granito branco, já enegrecido pelo tempo, com uma reprodução da Madonna della Sedia, de Raffaello Sanzio [3], em relevo, cravada em granito Preto Absoluto e banhada por um rasgo de luz zenital. Sob esses elementos, estrutura-se a base de granito cinza apicoado, onde estão fixadas placas de bronze com os nomes dos homenageados que ali repousam.
A descrição acima se refere ao mausoléu da família Robell, encomendado à Lina Bo Bardi em 1951 pelo húngaro Paulo Ranschburg Robell, fundador, diretor e presidente das Armações de Aço Probel S.A. Um industrial influente, amigo de Pietro Maria Bardi, que incorporou a arte de Di Cavalcanti em sua fábrica de colchões; teve Giancarlo Palanti como arquiteto em seus salões de exposições, estandes e lojas de móveis [4]; e contou com o projeto de interiores da arquiteta italiana Lina Bo Bardi para a sua fábrica, com todos os detalhes e preços pormenorizados em cartas trocadas entre cliente e arquiteta [5].
Até pouco tempo, apenas o Mausoléu da Família Odebrecht, em Salvador, projetado em 1958 e construído entre 1963 e 1964, era reconhecido como de autoria da arquiteta [6]. No entanto, segundo relatos do arquiteto Ronaldo Duschenes, neto do húngaro Paulo Ranschburg Robell, o túmulo de sua família também teria sido projetado por Lina Bo Bardi, encomendado em 1951 por seu avô Paulo Robell, destinado ao funeral de sua avó Edit Ranschburg Robell. Para afirmar tal história, contudo, tínhamos apenas o seu entusiasmado relato oral.
Para aferir a autoria do projeto recorremos ao Instituto Lina Bo e P.M. Bardi, responsável por preservar e divulgar o acervo, bem como organizar pesquisas e estudos em torno do casal Bardi. O projeto do mausoléu paulista não constava na lista de obras da arquiteta catalogadas pela instituição. No entanto, em consultas ao acervo foram-nos apresentados vários desenhos e projetos de Lina que estavam sem identificação [7]. Nesse grupo de desenhos, localizamos um projeto de túmulo que, na comparação com a análise realizada previamente em campo, identificamos seguramente como o projeto da família Robell, exemplar de arquitetura funerária projetado por Lina Bo Bardi e até então nunca estudado.
A partir dessa identificação, o mausoléu passa a fazer parte do pequeno conjunto de obras construídas de Lina Bo Bardi, ou seja, é uma das poucas obras da arquiteta que saíram da condição de projeto para ser efetivamente materializada. O Mausoléu da Família Robell, portanto, com base na documentação levantada até o momento, pode ser considerada a primeira e a única obra funerária de sua autoria na cidade de São Paulo.
A execução da obra foi realizada pela Marmoraria Porta, que tinha Hugo Ettore Porta como responsável pelos serviços. Conforme placa de bronze fixada no mausoléu, a sede da marmoraria estava estabelecida na Rua Coronel Cintra 262, São Paulo, mas suas atividades concentravam-se na cidade de Santos, onde há herdeiros em ofícios de marmoria até os dias de hoje.
Diante da recente identificação dessa obra de autoria de Lina Bo Bardi e para subsidiar pesquisas em andamento sobre a arte e a arquitetura tumular da arquiteta, o presente artigo aborda o processo de documentação fotogramétrica do mausoléu da família Robell. A documentação fotogramétrica foi realizada por meio de levantamento arquitetônico detalhado para As Built [8] e produção de mapeamento de danos com uso de tecnologias digitais de fotogrametria [9] com monorrestituição, restituição a partir de várias fotos [10] e Dense Stereo Matching – DSM [11] 7.
Dada a dimensão da importância da obra de Lina Bo Bardi, o presente levantamento é essencial para iniciarmos a documentação do bem, com o intuito de fornecer dados fundamentais para o aprofundamento de seu estudo e para a discussão sobre futuras diretrizes de conservação e salvaguarda.
Aquisição de dados
Com o objetivo de utilizar o método de monorrestituição, restituição a partir de várias fotos e Dense Stereo Matching, a tomada fotográfica foi realizada em um dia ensolarado, no intervalo das 12:00 às 13:00 horas, com uma câmera NIKON D3100, objetiva 18-55 mm, fixada em 18 mm. As árvores, fragmentos de vegetação e túmulos vizinhos eram interferências que poderiam comprometer a exatidão do processamento de dados. Também houve impossibilidade de fotografar algumas partes do objeto que estavam muito próximas aos outros mausoléus.
Calibração da câmera
Para obtenção de um levantamento preciso foi realizado um arquivo de calibração no programa Photomodeler, na malha Multi-sheet Calibration. Devido a uma avaria na lente da câmera, observomos, na verificação da calibração, que o máximo RMS (Root Means Squared) ficou em 1,229 pixels e este deve ser menor que 0,5 pixel em um projeto preciso. E o residual máximo, que deve ser menor que 1,5 pixels, ficou em 4,067 pixels.
Processamento de dados
Os primeiros ensaios para geração da nuvem de pontos e malha triangular irregular foram realizados através do Autodesk Recap Photo, no modo object. O tempo de processo da criação dos modelos foi extenso e apenas o terceiro resultado foi parcialmente satisfatório. Nele, foi possível documentar a fachada frontal do mausoléu no estado atual com precisão nas medidas e profundidades, texturas exatas e patologias bem definidas (Figs. 2 e 3). No PhotoModeler os resultados com a nuvem de pontos densa foram limitados e insuficientes para gerar um produto apropriado para o objetivo final do trabalho (Fig.4).
Restituição fotogramétrica
As ortofotos de todas as fachadas do mausoléu da família Robell foram obtidas por fotogrametria a partir de várias fotos e monorrestituição, utilizando o programa PhotoModeler. O método foi determinado de acordo com a especificidade de cada face ou objeto. A fachada frontal apresenta elementos em diferentes profundidades e o programa teve dificuldade para gerar a ortofoto de maneira precisa. Por isso, as imagens foram feitas com monorrestituição, em três partes: 1. Paredes laterais e base em granito; 2. Cubo branco; 3. Representação da Madonna. A restituição da lateral esquerda é consequência do cruzamento de várias fotos, com utilização do Mask Mode. A ortofoto da fachada posterior foi produzida a partir de duas imagens, e a lateral direita através de monorrestituição, bem como todas as placas de homenagens. A vetorização foi elaborada por meio do AutoCAD.
Para averiguar a precisão do desenho, realizamos a comparação entre os desenhos vetorizados, obtidos por meio da fotogrametria, e desenhos produzidos através de levantamento direto. É possível notar diferenças na altura e largura do túmulo, bem como na localização das placas e gárgulas. As divergências de precisão não ultrapassam cinco centímetros, ao contrário dos mais de 30 centímetros de desigualdade na altura, encontrados ao comparar o projeto de Lina Bo Bardi ao mausoléu construído. Um dos motivos pelo qual o projeto fora executado diferentemente do original está no recibo de compra do terreno adquirido por Paulo Robell, que contém as medidas de 2,20 x 2,20 metros, sendo que a arquiteta projetou o túmulo com 2,33 x 2,23 metros, tamanho que ultrapassa os limites do terreno. [12]
Mapeamento de danos através do uso de ortofotos
Com o propósito de representar graficamente os danos do bem, a partir das ortofotos geradas pelo PhotoModeler de cada face do mausoléu, foi utilizado o programa AutoCAD como ferramenta de vetorização e codificação das patologias, resultando no mapeamento de danos.
Por existir uma pequena diferença de medidas entre os desenhos produzidos através de fotogrametria e dos produtos do levantamento direto, o modelo utilizado para o mapeamento de danos é resultado da combinação de ambos os métodos, onde as placas de homenagens, a Madonna, os elementos fraturados e vegetação são objetos produzidos por fotogrametria, o restante é levantamento direto.
O reconhecimento das patologias provém da percepção visual e de conhecimentos empíricos obtidos pela prática profissional, sendo indispensável a realização de laudos, exames laboratoriais, análises de especialistas e pesquisa profunda dos materiais utilizados pela arquiteta italiana, para a confirmação dos danos. As informações geradas por esse mapeamento de danos são fundamentais para compor as ações de intervenção e consolidação no túmulo.
Conclusões
A utilização de técnicas digitais para documentação se mostrou eficiente na aplicação direta no patrimônio arquitetônico e, principalmente, para o mapeamento de danos. Porém, os métodos tradicionais de levantamento não são dispensáveis e, ainda, são necessários para indicar as possíveis falhas dos programas.
No caso do presente estudo, um dos maiores problemas foi a avaria na lente da câmera, que originou fotos sem qualidade de definição, e a calibração da câmera, que ficou abaixo das especificações indicadas para uma precisão exata do modelo. Os obstáculos como as árvores e resquícios de vegetação também se apresentaram como problemas incontestáveis na hora da geração dos modelos digitais. Ao analisar a tomada fotográfica foi possível verificar falhas no ângulo, no foco, no afastamento do objeto e ausência de atenção no enquadramento do túmulo.
Apesar dos obstáculos encontrados, este levantamento configura um passo importante para a documentação e registro do estado atual do bem e deverá contribuir para estudos futuros relacionados à preservação da arte e da arquitetura funerária de Lina Bo Bardi.
Brunna Heine
Arquiteta e urbanista graduada pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Desenvolve pesquisas relacionadas à arquitetura funerária moderna e à obra de Lina Bo Bardi. Atua profissionalmente com gerenciamento, projetos, e obras de restauro no estado de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. E-mail: brunnaheine@gmail.com
v.3, n.6 (2019)
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