A preservação do patrimônio cultural no século XXI: resgate e desafios para uma “nova gestão” do IPHAN para a reconstrução do Brasil

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I Marcelo Brito I

Antecedentes

Passados quase um ano da gestão do Governo vencedor das eleições de 2022, e ciente da importância de gerar uma reflexão e, em sendo o caso, tomada de decisões que busquem dar rumo às transformações necessárias para a administração pública da política de preservação e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, a partir da instância federal, amplifico o acesso a este texto opinativo, pautado no conhecimento e experiência acumulada deste autor ao longo de mais de 35 anos de atuação profissional no campo do patrimônio, consideradas sua interface e transversalidade com diversas áreas setoriais da política pública, o que impõe, por um lado, para a instituição diretamente responsável, um resgaste do esforço acumulado ao longo de mais de 85 anos de política pública nacional e, ao mesmo tempo, a sua compreensão e efetivo posicionamento diante dos desafios para uma nova gestão que vise a reconstrução do Brasil em novos patamares.

Assim, sentindo-me instigado, diante do atual contexto, como cidadão e experto, a apresentar uma proposta de reinserção do campo do Patrimônio Cultural na gestão do Governo que tem como missão central a reconstrução do país e tudo o que dela decorre, em função das perdas sociais e desorganização institucional derivada de um período avassalador para a sociedade brasileira em todas as áreas da vida nacional, apresento esta contribuição para o reposicionamento e reorganização do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, contemplando uma série de medidas que considero necessária, a fim de favorecer o adequado enfrentamento das questões políticas, normativas, estratégicas e operacionais para o exercício da ação institucional voltada para a preservação do patrimônio cultural no Brasil, que expressam resgate e desafios enquanto lineamentos para uma “nova gestão” do Iphan em seu papel contributivo para a reconstrução do país.

Cabe destacar que as considerações aqui apresentadas se baseiam em uma avaliação independente de natureza estrutural, funcional e gerencial da missão institucional do Iphan no atual contexto e resultam do acúmulo de reflexões, exercício profissional e inferências sobre a realidade institucional do campo do patrimônio cultural e de sua trajetória no país.

Lógica do arranjo institucional

De princípio, cabe destacar o atual estado d’arte da administração pública brasileira, expresso em um desmonte sem precedentes, o qual remete para uma nova geração de reformas que indique um novo modelo de administração pública, pautado em um novo pacto federativo com vistas a conformar um novo Estado, mais ágil, dinâmico, integrado e dirigido a promover o desenvolvimento socioeconômico sustentável do país.

Assim, demandas por uma maior transparência, responsabilização, eficiência, eficácia, efetividade, inclusão social, universalização dos serviços, combate à corrupção e à fome e profissionalização do serviço público encontram-se na pauta atual para o estabelecimento de propostas de modelo de gestão governamental voltadas para resultados em que se faz necessário promover uma gestão governamental transversal, interfederativa e territorializada, orientada para o desenvolvimento.

Neste sentido, cabe analisar o papel que o Iphan vem exercendo, enquanto órgão federal responsável pela política e gestão do patrimônio cultural brasileiro e a necessidade de integrá-lo aos requisitos correspondentes antes assinalados, reforçando o seu papel enquanto agente coordenador, ente regulador e implementador das políticas públicas de patrimônio cultural no país, inserindo-o em uma lógica que responda ao atual contexto brasileiro.

Como agente coordenador, o Iphan é e tem sido ao longo de sua trajetória uma organização com competências para definir e exercer o papel de cabeça de um sistema nacional de patrimônio cultural, ainda por se estabelecer formalmente, apoiado em bases de concertação e cooperação interadministrativa e interfederativa entre áreas governamentais e destas com o setor privado e a sociedade, promovendo, portanto, sua função coordenadora da política nacional de preservação do patrimônio cultural,  com capilaridade em todo o território nacional e com um lastro institucional baseado na experiência de exercício dessa matéria ao longo de seus oitenta e cinco anos de existência e atuação, uma das instituições públicas mais antigas da República.

Enquanto ente regulador, diante do arcabouço legal que rege a política federal de preservação do patrimônio cultural, exerce função reguladora no estabelecimento, aplicação e supervisão da utilização dos protocolos correspondentes aos diversos macroprocessos que implicam a gestão do patrimônio cultural, bem como à natureza e tipologia diversa dos bens culturais patrimonializáveis e patrimonializados, ou seja, dos monumentos, dos bens móveis e integrados, das cidades e centros históricos, das paisagens e itinerários culturais, dos acervos e sítios arqueológicos e outros bens culturais materiais, como ainda, das manifestações culturais expressas em saberes, celebrações, formas de expressão e lugares e outras referências culturais para a sociedade brasileira, como as línguas, muitos dos quais ainda demandam regulação específica, a fim de superar processos discricionários e demasiado personalistas.   

E como organização implementadora, entretanto, carece das condições institucionais adequadas para promover a sua gestão por programas, a partir de planos plurianuais para a gestão do patrimônio cultural brasileiro que, de fato, melhore a sua capacidade instalada para fornecer serviços à sociedade brasileira e transferir conhecimentos e experiência aos demais entes federativos e sociedade civil organizada para promover processos sustentáveis no âmbito da política pública de preservação do patrimônio cultural.

Em suma, resgatar e superar os desafios que se impõem em um Governo de reconstrução nacional significa para o Iphan fortalecer sua função coordenadora, reforçar o seu papel de ente regulador e prover as garantias institucionais para o exercício do seu papel como organização implementadora da política pública de patrimônio cultural no Brasil.

Para tanto, considerar a natureza e as características da atividade que exerce e a destinação dos serviços que presta são âmbitos fundamentais e balizadores para o desenho de uma lógica organizacional acorde com uma nova administração para o desenvolvimento socioeconômico sustentável, entendendo o patrimônio cultural como um vetor estratégico para esse desenvolvimento.

No primeiro âmbito, o da natureza da atividade que exerce, implica em reconhecer e se fazer reconhecer pela atividade típica de Estado que desempenha. Esse entendimento ainda não está presente em todos os setores do Poder Público e muito menos pela sociedade em geral. Apesar dos esforços empreendidos ao longo da sua atuação institucional, apesar do hiato dos últimos quatro anos do Governo Federal, na busca de afirmação institucional e maior visibilidade para a sua atuação, ainda está longe de se alcançar uma posição unânime quanto ao seu papel e a sua importância para o país, paradoxalmente claramente percebida e valorada desde fora, há anos, em âmbito internacional.

A atividade exercida pelo Iphan, ainda que sabidamente típica de Estado, não é exclusiva à esfera federal.  E isto, num país federativo, que vem progressivamente fortalecendo as suas instâncias subnacionais ao longo de sua história constitucional, está a demandar por parte de seus dirigentes um posicionamento definitivo sobre essa realidade.  No caso, em particular, as diversas esferas de governo, isto é, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem competências concorrentes – indistintas e comuns – em matéria de preservação do patrimônio cultural (arts. 23 e 24 da Constituição Federal) e esta base constitucional, como ponto de partida, gera um grau de independência legal, por princípio, resultando em diversificação de iniciativas, eivadas por processos não coordenados e dispersos, nem sempre geradores de resultados desejados ou adequados à complexidade do objeto de atuação e às práticas decorrentes da atuação sobre ele, em especial, tanto no exercício de tutela quanto ao fomento de intervenções ao bem protegido.  Assim, a competência concorrente gera uma gestão, por assim dizer, também concorrente, muitas vezes nociva para os fins aos quais se propõe por gerar, com frequência, lacunas ou sobreposições na atuação sobre os bens protegidos.

Neste sentido, a criação de espaços institucionais formais para a superação desse dilema se evidencia como uma necessidade urgente, interna e externa aos agentes que participam ou devem participar do processo decisório na definição de uma política nacional de preservação e salvaguarda do patrimônio cultural, a ser materializado em um sistema nacional de patrimônio cultural, formalmente instituído, estabelecido e operativo.

Esse é o desafio maior colocado ao campo da Cultura no país no âmbito do Patrimônio Cultural, dado que ao Iphan, até o momento não lhe foram oferecidas as condições adequadas para enfrentá-lo e superá-lo, ainda que, diante desse quadro, perceba-se a sua necessidade e urgência. 

Para atender a essa demanda concreta, a construção de uma gestão compartilhada deve ser levada a bom termo enquanto fundamento de toda a política pública nesse setor, considerando as particularidades que envolvem o objeto de atuação, como forma de intensificação das relações institucionais num quadro geral de concorrência, de escassez de recursos, de austeridade no gasto público e de dispersão e de desnivelamento de conhecimentos, de experiências e de recursos de toda ordem, resultando em processos não sustentáveis. 

A construção de um sistema formal, em nível nacional, de preservação do patrimônio cultural é um desafio que exige do campo da Cultura e, neste particular, do Iphan, o exercício com competência da função de cabeça de sistema, e do seu papel de agente de referência e assessor em relação às instâncias estaduais, municipais e distrital nessa matéria.

No segundo âmbito, voltado às características das suas atividades, remete inexoravelmente para o reconhecimento de sua especialidade, integralidade e transversalidade e, portanto, para a valorização e constatação desses atributos como valores indissolutos e caros à Instituição, atributos estes que devem estar coadunados aos princípios do conhecimento, do saber, da pesquisa e da experimentação que as atividades inerentes à preservação e salvaguarda do patrimônio cultural assim exigem. 

Para uma melhor caracterização das suas atividades, nesse contexto, é errôneo e insipiente confundir meios com fins e processos com resultados no momento de seu fortalecimento institucional. Isto porque, por princípio, a tipologia dos vários objetos que compõem o universo do patrimônio cultural é vasta e diversa e a atuação decorrente sobre eles demanda conhecimentos e geram práticas que utilizam instrumentos e procedimentos que lhes são próprios, muitas vezes específicos entre si.  Do ponto de vista da gestão, isto é um fator fundamental para a supressão de deficiências e para uma maior profissionalização da máquina pública, especialmente quando o que está em questão é a sua capacidade de resposta ágil à sociedade.

Obviamente, a prática institucional decorrente apoia-se em um ciclo de gestão que possui múltiplas entradas e saídas, nem sempre bem compreendidas, na medida em que cada macroprocesso que o conforma tem suas conexões e não podem ser considerados ensimesmados e tampouco favorecer baixa aderência da ação institucional do Iphan à agenda global do Governo ao qual integra, visto que, ainda que temporalmente, possa por meio dela ser intensificada e ampliada face a sua capilaridade institucional.

A preservação e salvaguarda do patrimônio cultural, enquanto política pública setorial do Governo no campo da Cultura, possui, pela sua própria natureza, uma intersetorialidade intrínseca, não podendo estar restrita apenas a esse campo, daí um segundo desafio impostergável.  Torna-se necessário avançar no reconhecimento de macroprocessos para além dos aplicados tradicionalmente – visto que foram definidos de modo circunscrito à sua atuação corrente –, incorporando àqueles que associados aos tradicionais contribuam para inserir a ação institucional do Iphan enquanto vetor que corrobora as demais políticas de desenvolvimento do país, desde uma perspectiva socioeconômica sustentável.   Neste sentido, entendo tratar-se, portanto, de caminho judicioso a ser enfrentado com perspicácia e tenacidade diante do que propugna a Constituição Brasileira de 1988 nessa matéria e para a qual, no país, ainda se está a dever uma resposta mais contundente. 

Assim sendo, identificar, acautelar, fomentar, intervir e difundir o patrimônio cultural brasileiro constituem o cerne básico da ação institucional nesse campo. Interagir e articular-se com os demais campos da política pública a torna integrante do processo de desenvolvimento desejado para o país, pelos seus significados simbólicos e identitários, de pertencimento e coesão social e de valorização do desenvolvimento em bases sustentáveis a partir da cultura dos grupos que conformam a sociedade brasileira, questões tão prementes nos dias atuais para o país.

Deste modo, a identificação abrange ações de prospecção, estudos e referenciamento, objetivando a documentação e o suporte ao reconhecimento de bens culturais com vistas à sua patrimonialização em âmbito nacional e internacional.

O acautelamento abrange ações de reconhecimento patrimonial – patrimonialização de bens culturais em âmbito nacional e internacional – e do exercício de tutela em função do acautelamento decorrente, objetivando a normatização, a aplicação do poder de polícia e o licenciamento de ações, ambos em apoio à continuidade e integridade dos bens culturais acautelados.  

O fomento abrange ações de promoção de meios, objetivando a dinamização física, social e econômica do patrimônio cultural, esta última, pelo turismo, por exemplo, além do fortalecimento da gestão governamental, em especial no âmbito do gerenciamento do Pronac – Programa Nacional de Apoio à Cultura, das políticas de cooperação nacional e internacional e da capacitação de quadros profissionais para a gestão dos bens acautelados, em perspectiva corporativa – para os quadros de servidores da Instituição – , de governo – para o fortalecimento das capacidades interfederativas – e de atuação internacional de caráter regional – no âmbito da diplomacia cultural em espaços regionais estratégicos para o Brasil, como o MERCOSUL, a CPLP, os BRICs, entre outros.

As intervenções abrangem as ações relacionadas à intervenção física nos bens culturais acautelados em âmbito nacional e internacional, como os planos de preservação e de conservação, as obras de restauração, reabilitação e manutenção no caso dos bens culturais materiais e os planos de salvaguarda em suporte à produção e reprodução no caso dos bens culturais imateriais.

E a difusão abrange ações de transmissão dos valores reconhecidos dos bens culturais acautelados em âmbito nacional e internacional, objetivando a interpretação, comunicação, educação, divulgação e circulação de informações sobre o patrimônio cultural.

No terceiro âmbito, no que tange à destinação dos serviços que presta, cabe realizar com desprendimento e isenção, a necessária avaliação do grau de resposta que a Instituição dá à sociedade brasileira quanto às atividades que desenvolve, ao seu impacto no âmbito da gestão da coisa pública e, por consequência, no fomento ao desenvolvimento enquanto vetor que pode contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos brasileiros, latu sensu.  Trata-se, neste caso, de compreender por que a ação institucional de preservação e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, paradoxalmente ainda é quase uma ação marginal dentro do Governo, apesar do entendimento difuso dessa atividade como típica de Estado e no que isto vem implicando nas condições institucionais existentes decorrentes dessa situação. 

Entretanto, indubitavelmente, caso fossem duplicados e repassados integralmente recursos ao Iphan nas condições atuais em que se encontra, sua capacidade de resposta estaria aquém do desejado e esperado. Assim, a equação meios – processos – e fins – resultados – deve ser solucionada.  Isto pressupõe que os resultados obtidos pela ação institucional do Iphan poderiam ser quantitativa e qualitativamente maiores e melhores se as condições internas para o seu funcionamento e suas relações interinstitucionais fossem correspondentemente mais adequadas e redimensionadas.

Assim, impõe-se ao menos quatro medidas urgentes, voltadas para o processo de reconstrução do setor, quais sejam: reordenamento do arranjo organizacional, reposicionamento do quadro de servidores do campo, recomposição da força de trabalho institucional e reestruturação dos instrumentos programáticos para a atuação institucional.

Quanto ao reordenamento do arranjo organizacional, apesar dos esforços empreendidos no atual Governo com o Decreto nº 11.807, de 11 de novembro de 2023, que revisa o Decreto nº 11.178, de 18 de agosto de 2022, o qual estabeleceu uma nova Estrutura Regimental e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções de Confiança do Iphan, com remanejamento e transformação de cargos em comissão e funções de confiança, considero ser necessário, ainda, uma reestruturação organizacional que dê passo aos desafios ainda presentes para uma gestão sustentável do patrimônio cultural em uma perspectiva interfederativa.

A estrutura organizacional possui um papel importante nesse equacionamento, em especial pelo que pode, se bem desenhada e em pleno funcionamento, criar condições para superar os gargalos, os sombreamentos e as omissões que podem deslustrar a imagem institucional de uma organização pública octogenária como o Iphan, atualmente tão combalida pelo desmonte generalizado proporcionado pelo Governo que encerrou suas atividades no final de 2022. 

É óbvio que não se trata aqui de acreditar que a estrutura organizacional de per si seja suficiente para superar tais problemas em seu conjunto, mas, com certeza, constitui-se em elemento importante para o seu enfrentamento e via para, adicionalmente, obter as respostas necessárias para superar os desafios que se impõem, com mecanismos de gestão assegurados, para a geração de modus operandi que fortaleça os processos de articulação, negociação e decisão em âmbito sistêmico.  

Quanto ao reposicionamento do Quadro de Servidores Públicos do campo do Patrimônio Cultural, cabe destacar a necessidade de elaborar e instituir diploma legal específico que crie a Carreira de Gestores do Patrimônio Cultural, favorecendo, finalmente, a constituição de quadros com maior atratividade salarial, condição diversa da atual em que se encontram os servidores que atuam no campo do patrimônio cultural no país.

Quanto à recomposição e redimensionamento da força de trabalho institucional, a atenção primária ao quadro de lotação do Instituto é uma urgência, a fim de que possa ser, em tempo, devidamente provido e qualificado dentro de uma perspectiva de constituição de quadros estáveis e de formação continuada. O aproveitamento do último concurso público realizado em 2018 é uma medida inteligente, diante do caráter de urgência que a situação requer, no que couber, para o preenchimento de cargos que resultaram vagos por motivos diversos. De modo mais estrutural, deverão ser realizados os procedimentos necessários para o provimento de novos servidores para que, no prazo de até dois anos no período do atual Governo, possa ser recomposto e redimensionado o atual quadro de lotação do Iphan.

Quanto à reestruturação dos instrumentos programáticos para a atuação institucional, evidencia-se a necessidade de reformulação do processo de planejamento e de construção e de definição das ações a serem empreendidas pelo Instituto, bem como a instituição de instrumentos de gestão que favoreçam o trabalho interfederativo e interadministrativo no âmbito das ações de preservação e salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, intensificando propostas de modelo de gestão governamental voltadas para resultados em que se faz necessário promover uma gestão governamental compartilhada, integrada e orientada para o desenvolvimento, resultante de uma agenda estratégica coerente, com uma consistente integração entre plano/metas de desenvolvimento e programas institucionais com instrumentos programáticos claros, precisos, alinhados a uma arquitetura governamental apoiada em bases de concertação e cooperação, enfrentando, de modo assertivo, sombreamentos e conflitos institucionais entre áreas governamentais e destas com o setor privado e a sociedade, equacionando papéis e dotando-as de condições logísticas adequadas.

Numa realidade que sinaliza melhoras graduais da economia, mas que ainda exigem, num quadro de austeridade financeira e relativos recursos escassos para atender a toda a demanda represada no setor, torna-se fundamental e estratégico exercer um competente gasto público, gerador das mudanças necessárias e catalisador de recursos outros que permitam ampliar o impacto desejável na base territorial onde se venha a atuar, gerando, portanto, uma nova perspectiva de atuação institucional em prol do desenvolvimento socioeconômico sustentável em um contexto no qual a construção de um sistema nacional de patrimônio cultural se apresenta impostergável.

Dez medidas para um novo arranjo organizacional do Iphan

Considerando a inerente mudança de cultura organizacional decorrente do resgate institucional e dos desafios a serem enfrentados no atual Governo no campo do Patrimônio Cultural, é necessária a realização de uma série de medidas estratégicas, de caráter preparatório, para a criação das condições adequadas para a implantação de um novo arranjo organizacional do Iphan.

Cabe destacar que as propostas aqui apontadas resultam do acúmulo de experiências vivenciadas e reflexões deste autor ao longo de sua trajetória de quase 35 anos de atuação no Órgão, ressaltando que as aqui apresentadas expressam iniciativas e diretrizes de gestão que, ainda que já tenham sido adotadas pelo Iphan ao longo de sua história, precisam ser retomadas e reforçadas ou reavaliadas e aprimoradas com vistas a atender ao contexto atual. 

Destacam-se: 

1) Fortalecer as relações de comando no âmbito do Iphan: reforçar o princípio de autoridade e de liderança política que deve ser exercido, em primeiro lugar, pelo Presidente do Iphan, apoiado pelos seus assessores diretos, quais sejam, pelos dirigentes da Administração Central, os seus Diretores de Departamento; e, por seus representantes legais nas diversas unidades desconcentradas do Instituto – os Superintendentes, revigorados em seu papel de representação política da Presidência do Iphan nos estados da Federação e de Executivos em sua área de jurisdição, papel esse instituído e reforçado por delegação do Presidente. Sob sua égide, estariam o Conselho Gestor do Iphan, atual Comitê Gestor; o Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, que passaria a denominar-se Conselho Nacional do Patrimônio Cultural, com representação ampliada e revisada, incorporando representações das instâncias subnacionais na sua composição original, quando da instituição do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural; e o Conselho Editorial do Instituto, a ser formalmente constituído sob sua presidência;

2) Reordenar a divisão institucional do trabalho do Iphan a partir dos macroprocessos que incidem sobre a atuação no campo do Patrimônio Cultural: redefinir as áreas finalísticas da administração central do Instituto, dentro de uma visão integradora, os diversos objetos que compõem o universo do patrimônio cultural a ser preservado e salvaguardado, sob sua responsabilidade, valorizando, por um lado, o perfil generalista dos profissionais como gestores do patrimônio cultural, como também o perfil especialista, na relação direta entre conhecimentos, instrumentos e procedimentos específicos que cada um desses objetos que compõem o patrimônio cultural impõe ao exercício da ação institucional: a) Identificação: para o tratamento das questões relacionadas à prospecção, estudos e referenciamento do patrimônio cultural, objetivando a documentação e o suporte ao reconhecimento de bens culturais materiais e imateriais em âmbito nacional e internacional; b) Acautelamento: para o tratamento das questões relacionadas ao reconhecimento patrimonial – patrimonialização de bens culturais materiais e imateriais, em seu contexto nacional e internacional – e de sua tutela, em função do acautelamento decorrente, conforme os instrumentos aplicados, objetivando a normatização e o licenciamento de ações, ambos em apoio à continuidade dos bens culturais acautelados; c) Intervenção: para o tratamento das questões relacionadas à intervenção física nos bens culturais acautelados em âmbito nacional e internacional, como as obras de conservação, restauração, reabilitação e manutenção no caso dos bens culturais materiais e o suporte à produção e reprodução das manifestações culturais no caso dos bens culturais imateriais; d) Fomento: para o tratamento das questões relacionadas à promoção de meios, objetivando a dinamização física, social e econômica do patrimônio cultural, o fortalecimento da gestão governamental, em especial do gerenciamento dos instrumentos de fomento disponíveis no Governo Federal, das políticas de cooperação nacional e internacional e de capacitação de quadros para a gestão do patrimônio cultural; e) Difusão: para o tratamento das questões relacionadas à transmissão dos valores reconhecidos dos bens culturais acautelados, objetivando a interpretação, comunicação, educação, divulgação e circulação de informações sobre o patrimônio cultural em seu contexto nacional e internacional.

Quanto à área de planejamento e administração, a especialização das atividades e de sua locação particularizada em função, por um lado, de responder pelo planejamento global e estratégico, orçamento e finanças do Instituto, além das questões relacionadas à informação e gestão estratégicas e o gerenciamento de instrumentos financeiros que venham a ser instituídos; e por outro lado, de gestão interna, para responder pela administração do Instituto, considerando os aspectos relacionados à gestão de pessoas, de recursos logísticos, de serviços gerais e de modernização administrativa;

3) Fortalecer e difundir vocabulário controlado sobre os conceitos aplicados e aplicáveis às diversas tipologias que compõem o universo do Patrimônio Cultural: reavaliar as iniciativas já produzidas no Instituto e produzir, no que couber, referências conceituais para o fortalecimento, intensificação e ampliação da difusão de vocabulário controlado para o patrimônio cultural em suas dimensões material e imaterial para o campo institucional do patrimônio e para a sociedade, ensejando os monumentos, os bens móveis e integrados, as cidades e os centros históricos, as paisagens e itinerários culturais, os acervos documentais e sítios arqueológicos e outros bens culturais materiais, bem como os saberes, as celebrações, as formas de expressão e lugares, além de outras referências culturais para a sociedade brasileira, como as línguas;

4) Recuperar as definições correspondentes aos ciclos de gestão para cada tipologia de patrimônio cultural e promover o desenvolvimento e a aplicação dos seus respectivos protocolos de gestão: retomar e rever/atualizar os estudos relacionados aos macroprocessos inerentes à gestão do patrimônio cultural, caracterizando cada etapa do processo de gestão de cada tipologia patrimonial e promover a atualização, onde couber, e o desenvolvimento dos protocolos respectivos, onde se faça necessário, para a sua correspondente implementação;

5) Atualizar o estado da arte da gestão do patrimônio cultural no país: considerando os estudos já realizados no Iphan, analisar e avaliar o atual quadro institucional das organizações públicas, privadas e da sociedade que atuam no campo do patrimônio cultural, voltados para o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, com o objetivo de atualizar o mapeamento dessa realidade e identificar e estabelecer, efetivamente, estratégias de negociação, desenho e participação concertada interadministrativa e interfederativa, para além das já identificadas, para promover o mencionado sistema e a efetiva gestão compartilhada do patrimônio cultural;

6) Instalar Mesas de Concertação para o estabelecimento de políticas transversais de Governo: promover uma nova governança, com vistas à construção do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural, seja quanto ao processo decisório, à integração de atividades e à definição e comprometimento no exercício de papéis e funções em prol da preservação e salvaguarda do patrimônio cultural, de modo fortalecer o Iphan no exercício do seu papel como braço assessor e operacional relevante junto à gestão da Política Cultural no âmbito do Governo Federal, construindo pontes junto a outras áreas setoriais do Governo responsáveis pela formulação e implementação de políticas públicas que transversalmente são fundamentais para a preservação e salvaguarda do patrimônio cultural, favorecendo a produção de ações conjuntas sistemáticas e estabelecendo ou aprimorando protocolos bilaterais específicos, especialmente naquelas áreas setoriais ainda não contempladas, de modo a garantir uma maior segurança jurídica no trato das questões do patrimônio cultural no âmbito das políticas de desenvolvimento do país, como a política urbana, a política ambiental, a política de desenvolvimento regional, a política educacional, a política de desenvolvimento turístico, a política de ciência, tecnologia e inovação, a política de minas e energia e a política de infraestrutura do país, entre outras;

7) Retomar os Comitês Gestores Locais para o processo de gestão do patrimônio cultural acautelado pelo Iphan: intensificar a gestão compartilhada do patrimônio cultural, especialmente dos sítios urbanos acautelados sob tutela do Iphan, especialmente, onde incidam o reconhecimento das demais esferas de governo, tendo como referência o que já vinha ocorrendo em sítios brasileiros declarados Patrimônio Mundial, e que foi interrompido no último Governo, colocando-se, em consonância com as diretrizes do atual Governo, como um princípio de gestão fundamental no processo de fortalecimento da ação institucional do Instituto, a partir de suas Superintendências, Escritórios Técnicos e Unidades Especiais num processo de construção efetiva de um novo pacto federativo no campo da preservação e salvaguarda do patrimônio cultural e, por consequência, para a construção e consolidação do Sistema Nacional de Patrimônio Cultural;

8) Adotar as Câmaras Técnicas para promover a integração interna das ações institucionais: assegurar e ampliar a instalação desse mecanismo de gestão, existente para atuar em determinados temas, como via que favorece atividades que promovam a integração de princípios que perpassem aspectos que sejam comuns aos objetos que compõem o universo do patrimônio cultural e assegurem a necessária articulação entre os macroprocessos relacionados à preservação e salvaguarda desse patrimônio cultural, constituindo mecanismos de gestão correspondentes à esfera essencialmente técnica. Seriam, a priori, oito Câmaras Técnicas, entre elas: Tombamento; Registro; Inventários; Gestão do Conhecimento; Financiamento do Patrimônio Cultural;  Planejamento Programático; Capacitação; e Tecnologia da Informação.

9) Intensificar, em perspectiva interfederativa, o desenvolvimento de ações de capacitação para a gestão estratégica e compartilhada do patrimônio cultural: produzir estudos de perfil do gestor do patrimônio, de banco de talentos existente no Iphan e da capacidade instalada nos demais entes federativos para estabelecer conteúdos e promover, em especial, por meio do Centro Lucio Costa – Escola de Patrimônio do Iphan, ações de capacitação para a gestão estratégica e compartilhada do patrimônio cultural em suas dimensões material e imaterial e em suas diversas tipologias patrimoniais em função de suas especificidades;

10) Rearticular a participação do Iphan no Sistema Nacional de Cultura: concertar estratégias para conectar, efetivamente, o Instituto ao Sistema Nacional de Cultura e, progressivamente, o Sistema Nacional de Patrimônio Cultural, quando instituído, ao Sistema Nacional de Cultura, como subsistema deste, tornando-o orgânico e sinérgico e fortalecendo, assim, o campo da Cultura no âmbito das políticas públicas do país.

Considerações finais

As reflexões e consequentes proposições ora apresentadas não se pretendem exaustivas, ainda que detalhem aspectos importantes que são fundamentais para promover a reflexão e o debate, bem como as medidas necessárias, com vistas a fortalecer a capacidade coordenadora, reguladora e implementadora do Iphan em termos estruturais, gerenciais e funcionais para a preservação do patrimônio cultural brasileiro no século XXI. Várias dessas medidas propostas, retomam iniciativas já produzidas ou existentes no Instituto ou destacam aspectos ainda não efetivamente por ele abordados, aspectos que, certamente, devem ser objeto de maior detalhamento.  Em suma, o presente texto se constitui como subsídio para nortear a discussão sobre a preservação do patrimônio cultural, e neste particular sobre o Iphan no Brasil que todos queremos, e qual contribuição poderá oferecer no processo de reconstrução do país.


Marcelo Brito. Diretor da Patrimonium & Urbs Consultoria e Serviços Técnicos Especializados em Arquitetura, Urbanismo, Patrimônio e Turismo Ltda. Especialista do Patrimônio, atuante no Setor Público por 35 anos, desde o nível municipal, na Prefeitura Municipal de Olinda, ao nível federal, no Iphan, tendo ocupado cargos de direção, de assessoramento e de coordenação nas diversas áreas da gestão do patrimônio cultural. Contato: britomjs@gmail.com 


logo_rr_pp… v.8, n.15 (2024)

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