I Deborah Frohlich I
Neste texto buscamos refletir sobre o processo de musealização de casas históricas da cidade de São Paulo, por meio de um recorte no conjunto de casas rurais, já denominadas “casas bandeiristas”, que fazem parte do acervo do Museu da Cidade de São Paulo (MCSP). A análise desse conjunto compreendeu uma revisão bibliográfica sobre o tema e a realização de visitas de campo a fim de se compreender os contextos e os usos das casas na época da pesquisa, realizada em 2013. Apesar do tempo transcorrido entre as visitas de campo e esta publicação, as reflexões aqui elaboradas permitem registrar um momento específico nas dinâmicas de interpretação e uso desses espaços.
Introdução à arquitetura da antiga casa rural paulista – uma revisão bibliográfica
Entre os séculos XVII e XVIII [1] predominava no estado de São Paulo, Brasil, um modelo de residência rural baseada na técnica da taipa de pilão, consagrada pela historiografia como arquitetura “bandeirista”, termo que tem sido revisitado na atualidade [2]. Inserida em um modelo mercantil colonial, esse modo de construção refletiu a história de ocupação territorial paulista e sua evolução econômica e social.
A primeira caracterização dessas antigas casas rurais paulistas foi elaborada por Luís Saia a partir da análise de 12 exemplares identificados no município de São Paulo e cidades vizinhas [3]. Em um artigo publicado em 1945 [4], Saia pontuou os seguintes elementos como característicos desse modelo arquitetônico: planta retangular; paredes de taipa de pilão; paredes internas e externas revestidas com pintura branca de cal ou tabatinga; telhado de quatro águas e coberturas com telhas de canal; escolha do local de implantação sobre plataforma natural ou artificial, a meia encosta, nas proximidades de um riacho e protegida dos ventos; planta organizada em três faixas (a partir da fachada principal: social, familiar e de serviço); depósito ou sobrado (jirau), aproveitando a acentuada inclinação do telhado; e presença de alpendre encravado na fachada principal, entre dois cômodos onde funcionaria uma capela e um dormitório de hóspedes [5].
Em relação à origem do partido arquitetônico “bandeirista”, em um artigo de 1955 Saia apresenta uma tese que considera a mistura de elementos portugueses e indígenas como responsável pela criação de um modelo colonial único e inteiramente nacional [6]. Esse pensamento se verificaria consoante aos ideais modernistas, bastante valorizados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) naquele momento. Entretanto, conforme Lia Mayumi, em contraposição à tese original de Saia, Aracy Amaral defendeu uma possível origem hispânica em seu livro “A hispanidade em São Paulo”, publicado em 1981 [7]. De acordo com a autora, identifica-se uma mudança social entre o final do século XVI e início do século XVII, com a chegada de espanhóis em São Paulo, e é possível perceber elementos em comum ao modelo arquitetônico “bandeirista”, como o uso de taipa de pilão na construção e semelhanças na planta.
Sobre a preservação desses bens patrimoniais, ainda de acordo com Mayumi, os primeiros exemplares de casas “bandeiristas” foram identificados pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) a partir do início de suas atividades, em 1937. Com base nas pesquisas iniciadas pelo órgão foi possível estabelecer teses sobre a gênese, a tipologia, a filiação estilística e os fundamentos construtivos da casa “bandeirista”.
Além de caracterizar essas casas rurais, Luís Saia esteve à frente das primeiras restaurações desses imóveis realizadas pelo IPHAN, como a intervenção no Sítio Santo Antônio, São Paulo, em 1940. De acordo com Mayumi, essa ação foi fundamental para que um conceito de restauração para as casas fosse estabelecido, permitindo consolidar um modelo de intervenção que passou a ser adotado nas restaurações subsequentes. Segundo Mayumi:
As restaurações orientadas pela tese de Luís Saia nortearam-se pela ideia de promover a remoção de qualquer traço de “decadência” do símbolo arquitetônico bandeirista, fosse ela decadência material ou simbólica. A intenção de recuperação simbólica está explicitada ideologicamente nos próprios textos de exposição da tese [8].
Uma prática difundida pelo IPHAN nesse momento, que fazia parte do “modelo tradicional”, conforme Mayumi, era a ambientação da residência. No caso do Sítio Santo Antônio, por exemplo, a visibilidade da casa sede e da capela foi desimpedida, um grande lago foi criado em frente às edificações, a roça foi substituída por um gramado homogêneo e as encostas dos morros visíveis a partir do sítio foram reflorestadas [9]. As ações demonstravam uma preocupação em recuperar uma imagem ideal das casas, moldando um padrão estético desejado, alinhado ao pensamento modernista que predominava à época no IPHAN [10].
Já nos anos 1980, Paulo Zanettini envolveu-se no início dos trabalhos de pesquisa arqueológica em antigas casas rurais na cidade de São Paulo e relatou os resultados dessas escavações [11]. Propunha-se, naquele momento, revisar essas casas a partir da Arqueologia e, dessa maneira, o foco de sua pesquisa orienta-se sobretudo no exame de aspectos do cotidiano e na evolução econômica e social na região do planalto paulista no transcorrer dos séculos XVII e XVIII. Zanettini não partilha da visão que se propaga na historiografia corrente sobre o tema da cidade colonial pobre e alheia às mudanças, que refletem uma ideia de isolamento e pouco dinamismo da sociedade paulista. Para ele, as casas rurais estudadas apresentam-se como fonte arqueológica do processo de construção e consolidação da sociedade paulista no período colonial, e seu projeto propõe um reexame do cotidiano da época a partir das evidências escavadas, ressaltando que a casa, antes de ser um complexo rural unifamiliar, se aproxima mais de uma edificação multifuncional.
Duas décadas depois, Zanettini revisou essas pesquisas da década de 1980 e constatou um esvaziamento de sentido nas casas “bandeiristas” e de reflexões entre os estudiosos do tema:
Ao revisitar há pouco tempo as Casas Bandeiristas que ajudei a escavar na década de 1980, vi-me diante de monumentos mudos, silenciosos, perdidos em meio ao burburinho da metrópole. Notei que essas casas via de regra se apresentavam, ante os raros visitantes que as procurava, desnudas, vazias, destituídas de sentido. Não se observam referências ou menções aos resultados das pesquisas arqueológicas nelas conduzidas. […] Percebo com clareza no exame da literatura que o conhecimento produzido por meio da Arqueologia praticada nas velhas casas paulistas não motivou reflexões entre os estudiosos do tema. Do mesmo modo, o conteúdo disponível tampouco foi traduzido para a população leiga, que enxerga esses casarões de barro – se é que os vê – como a morada de nossos afamados “Bandeirantes” [12].
A formação do Museu da Cidade de São Paulo e as casas históricas do acervo
Desde 2018, o Museu da Cidade de São Paulo está vinculado ao Departamento dos Museus Municipais da Secretaria Municipal da Cultura. Sua concepção, contudo, está relacionada atuação de Mario de Andrade e à criação, em 1935, do Departamento Municipal de Cultura que viria a compor a Divisão de Iconografia e Museus, vinculada ao Departamento do Patrimônio Histórico (DPH-PMSP) [13], órgão criado em 1975 pela Secretária Municipal de Cultura, a partir de um projeto de lei de Mário de Andrade, quando Diretor do Departamento de Cultura na década de 1930.
A partir de sua experiência na Divisão de Iconografia e Museus do DPH, Maria Cristina Oliveira Bruno indica três momentos na história de atuação do DPH fundamentais para a consolidação do MCSP: como atividades de uma primeira fase, aponta as experimentações vinculadas à proposta do Museu de Rua, de 1978; em seguida, as ações museológicas do “Projeto Museu da Cidade”, de 1985; e, por fim, a proposição do “Programa Museológico do Museu da Cidade de São Paulo”, articulado à implantação do Sistema Municipal de Museus, em 2003 [14].
Até a década de 1990, apesar das sólidas experiências técnicas, não se firmou uma linha de trabalho consistente para o MCSP. Assim, houve uma reavaliação de todo o escopo de trabalho do DPH e, a partir de 2003, um novo programa museológico, o “Programa Museológico do Museu da Cidade de São Paulo”, foi elaborado pela museóloga Maria Ignez Mantovani Franco.
O Museu da Cidade foi parcialmente inaugurado no ano de 2003, após 30 anos de ações, com a realização do Projeto “Expedições São Paulo 450 Anos”. A inauguração completa ocorreu apenas em 2007, com a instalação da sede no Solar da Marquesa e a realização de uma grande exposição com imagens da cidade de São Paulo produzidas entre as décadas de 1930 e 1940 pelo fotógrafo Benedito Junqueira Duarte.
Atualmente, o MCSP é responsável pela gestão de um acervo constituído por treze exemplares arquitetônicos e espaços históricos [15], localizados em diferentes regiões de São Paulo. São casas construídas a partir do século XVII até o século XX, preservadas pelo município como patrimônios históricos. Além do acervo de bens arquitetônicos, o museu conta com arquivos de vestígios arqueológicos, documental, iconográfico e de história oral.
Dentre os exemplares arquitetônicos do MCSP figuram cinco casas rurais, as chamadas “Casas Bandeiristas”: a Casa do Tatuapé, o Sítio Morrinhos, o Sítio da Ressaca, a Casa do Bandeirante e a Casa do Sertanista (do Caxingui). A Casa do Bandeirante esteve fechada para visitação durante o período de realização da pesquisa que originou este artigo, em virtude de obras de restauro e paisagismo, e por essa razão não foi incluída no recorte, uma vez que não seria possível realizar uma análise do contexto da casa naquele momento.
A seguir, abordamos brevemente aspectos históricos e de usos atuais das quatro edificações analisadas. A principal referência bibliográfica para os aspectos históricos são a tese de Lia Mayumi, que analisou os restauros da Casa do Tatuapé, Sítio Morrinhos, Sítio da Ressaca e a Casa Sertanista (do Caxingui), além dos artigos de Luís Saia, listados na bibliografia deste artigo. Os contextos apresentados foram verificados em pesquisa de campo, realizada em 2013.
Casa do Tatuapé
Localizada no bairro do Tatuapé, a casa foi erguida provavelmente no final do século XVII. Em 1945, o IPHAN abriu processo de tombamento, por considerar o imóvel de interesse histórico, que viria a acontecer em 1951. A titularidade foi transferida ao DPH em 1979.
De acordo com Saia, a casa diferencia-se de outros exemplares “bandeiristas” por apresentar consideráveis variações: um telhado de duas águas, quando o comum era a presença de telhados em quatro águas; a capela se afastava da posição habitual, colocando-se como um apêndice; a sala de distribuição se desloca para dar espaço a uma peça de trabalho; parece ainda maior e mais elaborada que outros exemplares. Apesar dos traços particulares, a casa não perde a fisionomia característica da tipologia “bandeirista”. [16]
Entre 1979 e 1980 a casa passou por obras de restauro devido ao desabamento de uma das paredes estruturais internas, causado provavelmente pelas chuvas, e foi reaberta ao público em janeiro de 1981, com uma exposição.
No período em que o edifício foi visitado, apresentava-se na casa a exposição “Zona Leste, Um Novo Olhar”, de curadoria da arquiteta e urbanista Manoela Rossinetti Rufinoni, que permaneceu em exibição no período de 09 de dezembro de 2012 a 04 de maio de 2014. Por meio de registros documentais e iconográficos, bem como de acervo museológico, oriundos da Casa da Imagem, do Arquivo Histórico de São Paulo, do Museu do Imigrante, do Museu Paulista, entre outros, e de imagens recentes, a exposição explorou o processo de urbanização da Zona Leste de São Paulo.
Sítio da Ressaca
Trata-se da sede de um antigo sítio localizado na região do atual bairro do Jabaquara. A construção data provavelmente de 1719, ano inscrito na porta de entrada [17]. A casa possui particularidades em relação aos outros exemplares “bandeiristas”: planta assimétrica, alpendre não centralizado na fachada principal e telhado em duas águas. Algumas telhas são ainda originais e trazem inscrições do século XVIII, como a data de fabricação e o nome do oleiro [18].
Apesar de identificado pelo IPHAN desde 1938, o imóvel nunca foi tombado pelo órgão, tendo sido reconhecido por seu valor histórico apenas pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), em 1972, e pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (CONPRESP), em 1991. Quando tombado em 1972, nada mais existia que lembrasse a ambiência original do Sítio. Por essa razão, Luís Saia recomendou em seu parecer a restauração, além da casa, da sua área envoltória, para a “recomposição de sua paisagem e da sua dignidade, criminosamente deformada pela ganância imobiliária”. [19]
O imóvel sofreu duas ações de restauros, segundo Mayumi [20]. A primeira foi realizada entre outubro de 1978 e julho de 1979, dentro do Projeto CURA / Jabaquara que reformulou a região em decorrência da construção da estação terminal das linhas do Metrô – Companhia do Metropolitano de São Paulo. Além das obras de preservação do edifício, que estava mal equilibrado no terreno, foi necessário planejar e construir uma nova ambiência, de forma que as obras incluíram o planejamento de um parque no entorno. A titularidade do imóvel foi transferida ao DPH em 1978 e a inauguração do novo complexo ocorreu no ano de 1979.
No período da pesquisa, a casa encontrava-se ambientada em um parque e dividindo espaço com o Centro Cultural do Jabaquara, inaugurado em 1980, que abriga a Biblioteca Paulo Duarte e o Centro de Documentação do Idoso. A casa do Sítio da Ressaca foi ocupada entre 1991 e 2002 pelo Acervo da Memória e do Viver Afro-Brasileiro. Desde 2010, a casa abrigava a exposição “Luiz Gama – poeta, republicano abolicionista”, de curadoria de Maria Luiza Ferreira de Oliveira, dedicada à memória da presença afro-brasileira em São Paulo, abordando o tema da abolição e a relação histórica da casa com a rota de escravizados. Em 2017, verificamos que a casa estava fechada à visitação para obras de restauro, sem previsão de reabertura ainda em 2023.
Sítio Morrinhos
O Sítio Morrinhos é um conjunto arquitetônico composto pela casa-sede, construída no início do século XVIII, e por edificações anexas construídas posteriormente em alvenaria de tijolos, antes utilizadas como senzala, abrigo para animais e oficinas, datadas provavelmente da segunda metade do século XIX e do início do século XX. A datação provável da construção da casa-sede seria 1702, de acordo com inscrição na porta principal.
O Sítio foi adquirido em 1902 pela Associação Pedagógica Paulista, representante do Mosteiro de São Bento. Neste período acontecem as maiores interferências na casa, segundo Mayumi, com a introdução de uma camarinha na ala direita e o revestimento do assoalho por lajotas idênticas às existentes no Mosteiro [21]. Foi também instalado um observatório em um edifício anexo na propriedade, que já não faz parte do Sítio. Em 1948 o IPHAN tomba o imóvel, que é doado à Prefeitura de São Paulo em 1976, com a intenção de criar no local um Centro de Lazer.
Ainda de acordo com Mayumi, na época em que os restauros se iniciaram, em 1979, havia então consideráveis acréscimos e alterações em relação à sua configuração original. Iniciou-se um debate sobre o partido que deveria ser adotado, se as alterações deveriam ser mantidas ou removidas. A restauração como um todo foi realizada em três etapas, iniciando-se em 1979 e finalizada apenas em 2000.
Desde 2005, a casa exibe uma exposição com o acervo do Centro de Arqueologia de São Paulo, uma vez que este se encontra no mesmo conjunto arquitetônico do Sítio, instalado nos anexos. O acervo do Centro reúne objetos arqueológico coletados e estudados a partir das escavações ocorridas em várias regiões da cidade pelo DPH, desde 1979.
Casa do Sertanista (do Caxingui)
De acordo com Mayumi, há poucas referências conhecidas e precisas sobre a história desse imóvel, construído provavelmente no século XVII. Acredita-se que isso se dê pelo fato de a casa não ter sido reconhecida como patrimônio em nível federal pelo IPHAN, mas apenas pelos órgãos estadual e municipal (CONDEPHAAT e CONPRESP, respectivamente). Ainda assim, foi reconhecida não pelo seu valor histórico isolado, mas por encaixar-se dentro de um conjunto de Casas Bandeiristas: os pareceres de Carlos Lemos concluem que o imóvel deveria ser tombado, já que também havia sido tombada a Casa do Bandeirante, do Butantã.
O restauro realizado norteou-se novamente nos pressupostos do IPHAN aplicados em outras obras: conceitualmente buscou a configuração original do edifício e tecnicamente procurou restabelecer a estabilidade estrutural. Acredita-se, por exemplo, que na configuração original o telhado da casa seria composto por atípicas três águas; no restauro o telhado foi recomposto com quatro águas, provavelmente com o intuito de seguir as características dos exemplares “bandeiristas puros” [22]. Uma particularidade da casa em relação a outros exemplos é a presença de dois alpendres.
Em 1970, concluídas as obras de restauração, foi instalado o Museu do Sertanista, dedicado à cultura indígena. Em 1989, por meio de um decreto de permissão de uso, a casa passou a abrigar o Núcleo de Cultura Indígena da União das Nações Indígenas e a Embaixada dos Povos da Floresta. Com a saída do Núcleo de Cultura Indígena, em 1993, a casa passou por novas obras de conservação, restauro e adaptação para abrigar, a partir de 2000, o Museu do Folclore Rossini Tavares de Lima.
Em 2004, entretanto, um artigo de Moacir Assunção publicado no jornal O Estado de São Paulo [23], alertou sobre o processo de deterioração do acervo do Museu do Folclore, que corria o risco de desaparecer. O artigo menciona uma série de problemas enfrentados e que eram prejudiciais para a manutenção de um acervo, como infiltração e umidade, rede elétrica precária, sistema de segurança ineficiente, entre outros. O reconhecimento da inadequação do local para a manutenção desses acervos parece então ter sido o motivo para a transferência do Museu do Folclore para a Oca, no Parque do Ibirapuera, em 2007.
A casa passou por obras de restauro entre 2012 e 2013, para reconstrução do telhado devido a uma infestação de cupins e a renovação dos revestimentos. Foi reaberta em abril de 2013, com um trabalho da artista Sandra Cinto, “A Casa das Fontes”, e curadoria de Douglas de Freitas. O projeto curatorial proposto para a Casa do Sertanista a incluiu em um circuito de exposições de arte contemporânea junto com a Capela do Morumbi e a Casa do Bandeirante, que passaram a apresentar trabalhos de artistas contemporâneos convidados a desenvolver projetos de instalação site specific, isto é, especialmente planejados para esses espaços e em diálogo com as histórias das casas.
Relações entre o público e o patrimônio
Os museus, em geral, passaram por uma transformação gradual até a concepção atual. Tais transformações ocorrem em particular a partir dos anos 1960, como resposta às novas demandas sociais. Essa nova visão para o museu e a museologia colocaram em voga a função social do museu para com o público [24]. De acordo com Denise Grinspum [25], desde o século XVIII, quando os museus se tornaram públicos, sua função social é a justificativa para sua existência e permanência. A exposição museológica, logo, não deve se resumir ao mero agrupamento e apresentação de objetos que poderiam ser tomados por si só como informação. Um objeto carrega diversos “estratos de sentido” que se sobrepõem em articulações invisíveis, conforme afirmou Ulpiano Meneses [26].
Considerando o problema levantado por Zanettini, do esvaziamento de sentido das casas, avaliamos relevante verificar os usos e os contextos das casas em 2013, assim como os meios de promoção desses bens patrimoniais de relevância para a história da arquitetura paulista. Assim, um dos aspectos analisados nesta pesquisa foi a forma adotada para comunicar a “casa bandeirista” ao público. Para pesquisa de campo, visando melhor compreender as relações de administração e de acesso e uso público desses bens, buscamos observar como o público visitante era recebido. A seguir, apresentaremos informações e análises baseadas nessas observações.
O principal público recebido nas casas eram crianças e jovens atendidos pelo programa “Cultura é Currículo”, da Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), que encaminhava cerca de 80 estudantes da rede pública de ensino por dia a cada casa [27]; havia pouca procura de agendamento escolar por outros meios. Assim, além das visitas agendadas por meio do programa da FDE, a estimativa de público não ultrapassa a média de 10 a 15 pessoas por dia [28].
Além da realização de visitas, observamos que os educadores tinham autonomia para propor e desenvolver projetos de visitas temáticas, oficinas, saraus, leituras dramáticas, entre outros. Entretanto, houve relatos de deficiência mesmo na manutenção em serviços básicos, como abastecimento de copos descartáveis, troca de lâmpadas, manutenção de equipamentos de informática (quando havia um computador na casa), dedetizações e fornecimento de material básico de papelaria para realização de atividades.
Uma característica da logística de gestão do serviço educativo era a rotatividade de educadores pelas casas do complexo do MCSP, de forma que eles acabavam por trabalhar em diversas casas em vez de se concentrar em apenas uma. Observamos que os educadores atuavam nas casas em que estavam locados, em um período desde 1 mês até 5 meses. O modelo pareceu ser, em nossa análise, um obstáculo para o desenvolvimento do trabalho, visto que os educadores não tinham tempo para aprofundar-se nas particularidades de cada casa e desenvolver assim um plano de trabalho continuado; o processo de pesquisa e formação se reiniciava a cada mudança.
Pudemos constatar, ainda, algumas particularidades por vezes curiosas sobre a relação dos públicos com as casas. Em geral, além do público escolar, o público que frequenta as casas é morador ou trabalhador do entorno. Na Casa do Tatuapé, observamos uma frequentação ativa de moradores da vizinhança que usam a casa como ponto de encontro para reuniões. Alguns anos antes da realização de nossa pesquisa era comum a promoção de bailes, quermesses e festas da associação de moradores do bairro na casa.
Parece comum à todas as casas que o uso da área de parque seja mais visado que a procura pelo museu em si. No Sítio da Ressaca, que faz parte de um complexo cultural com o Centro Cultural do Jabaquara, era comum ver famílias com crianças jogando bola, passeando com cachorros, sentados à sombra de uma árvore. A ideia de “sítio” estava bastante presente no imaginário das crianças que frequentam a casa com as escolas. Por falta de uma melhor comunicação por parte dos professores e de uma conversa que preceda a visita, talvez, as crianças criavam expectativas com a visita ligadas a atividades de lazer. Há relatos de grupos que chegaram à casa com trajes de banho por baixo do uniforme escolar e carregando bolas, por exemplo.
Esses usos recreativos das casas, verificados através das visitas de campo realizadas e de relatos espontâneos, representam possibilidades de apropriação de um espaço público. Entretanto, enquanto espaço museológico, esses usos nem sempre contribuem para a visibilidade e apreensão da casa como objeto histórico ou para a comunicação de suas possíveis significações. São ainda vistas pelo público como “casas vazias”, como qualificou Zanettini, mesmo quando ocupadas com conteúdo expositivo.
Considerações finais
Nesta pesquisa procuramos compreender o processo de preservação dessas antigas casas rurais e o contexto de criação do MCSP e difusão de seu acervo. Por meio do estudo dos processos museológicos, compreendemos que a museologia tem se empenhado na pesquisa de sentidos e significados de um acervo, a fim de elaborar concepções de exposição que estabeleçam uma comunicação efetiva entre o objeto e o público. A função de um museu dedicado à memória da cidade, que objetiva selecionar, conservar, pesquisar, expor e difundir os patrimônios materiais e imateriais da cidade, também requer multidisciplinariedade e participação da comunidade. Como visto em Meneses [29], trata-se de conceber um museu da cidade que intervenha no espaço urbano e se incorpore ao cotidiano da cidade, sem mistificar o passado nem diluir as contradições sociais; um museu que trate tanto das coleções por seu valor documental, quanto do patrimônio ambiental por sua capacidade de alimentar as representações urbanas.
A atuação pública por meio de órgãos de preservação e de políticas nacionais para o desenvolvimento dos museus precisa ser fortalecida. O aparente desinteresse do poder público no investimento em ações de preservação, constatado na ausência de manutenção básica e de promoção do acesso ao patrimônio, parece ser o maior obstáculo enfrentado pelas casas. Esse não seria um problema exclusivo do MCSP; há inúmeros casos de museus, monumentos e edifícios carentes de investimento para sua manutenção e de garantias para assegurar a integridade do acervo e o acesso ao público. Situação que tem se agravado na última década, tanto em museus e equipamentos culturais do município e do estado de São Paulo, como em todo o país. O resultado é a interdição de bens por ausência de condições mínimas de funcionamento, como foi o caso mencionado da saída do Museu do Folclore da Casa do Sertanista, em 2005; do fechamento de Fábricas de Cultura e da redução de quadros de funcionários em instituições ligadas à Secretária da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, entre 2015 e 2016; do congelamento do orçamento da Cultura pela Prefeitura de São Paulo, em 2017; do incêndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2018; entre outros tantos casos.
No decorrer da pesquisa de campo realizada em 2013, também notamos que as casas não eram significativamente acessadas pelo público em atividades que se relacionem à sua história, arquitetura e exposições. O Museu da Cidade conta com um acervo fotográfico de imagens que retratam predominantemente a cidade de São Paulo e suas transformações urbanas; um acervo de bens móveis, composto por mobiliários, utensílios domésticos, ferramentas e oratórios; um acervo arqueológico constituído por artefatos e vestígios relativos ao cotidiano urbano da São Paulo; além de um acervo de história oral [30]. Além de utilizar as casas com um mero receptáculo de instalações de arte contemporânea que, não obstante o interesse individual das obras de arte expostas, geralmente não trazem uma conexão com o objeto histórico, o acervo móvel do MCSP poderia ser mais explorado em exposições, a exemplo do que ocorre no Sítio Morrinhos, que apresentava resultados de pesquisas arqueológicas em diálogo com o uso atual do complexo pelo Centro de Arqueologia de São Paulo; e de algumas exposições sediadas no Solar da Marquesa nos últimos anos, partindo do acervo fotográfico da Casa da Imagem. Tratam-se, essas últimas, de proposições que ampliam as possibilidades de significações da própria casa. A renovação de exposições poderia oxigenar o interesse por frequentar as casas e reconhecê-las enquanto objeto histórico, em conjunto com um investimento em atividades educativas e ações culturais que não se concentrem exclusivamente nas visitas escolares.
Notas
[1] A revisão bibliográfica baseou-se principalmente nas obras: SAIA, Luís. Morada Paulista. Coleção Debates, v. 63. São Paulo: Perspectiva, 2012; e MAYUMI, Lia. Taipa, canela preta e concreto: um estudo sobre a restauração de casas bandeiristas em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2005.
[2] Entre outras referências, consultar: SANTOS, Andrea Maria Zabrieszach Afonso dos. A Casa do Bandeirante como espaço museológico (1954-1964). Dissertação de Mestrado em Museologia. São Paulo: USP, 2016.
[3] A saber: Sítio Morrinhos, casa do Tatuapé, sítio da Ressaca, casa de Caxingui, casa de Santo Amaro, sítio do Calu, sítio do Padre Inácio, sítio do Mandu, sítio Santo Antônio, sítio do Querubim, sítio de São Romão, chácara do Quinzinho.
[4] “Notas sobre a Arquitetura Rural Paulista do Segundo Século” [1945]. In: SAIA, Luís. Morada Paulista. Coleção Debates, v. 63. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 61-117.
[5] MAYUMI, Lia. Taipa, canela preta e concreto: um estudo sobre a restauração de casas bandeiristas em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: FAUUSP, 2005, p. 32 e SAIA, Luís. Morada Paulista. Coleção Debates, v. 63. São Paulo: Perspectiva, 2012. p. 96, 107-109.
[6] “A Casa Bandeirista: uma interpretação”, escrito na ocasião do IV Centenário da Cidade de São Paulo. In: SAIA, Luís. Morada Paulista, op. cit., p. 119-139.
[7] MAYUMI, op. cit., p. 47-49.
[8] Idem, p. 58.
[9] Idem, p. 73.
[10] Nos primeiros anos de atuação, o IPHAN norteou suas ações pelo pensamento modernista, que buscava caracterizar e valorizar da identidade nacional. Para mais informações sobre a história do IPHAN, consultar FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, IPHAN, 2005.
[11] ZANETTINI, Paulo Eduardo. Maloqueiros e seus palácios de barro: o cotidiano doméstico na casa bandeirista. Tese de Doutorado. São Paulo: MAE-USP, 2005.
[12] ZANETTINI, op. cit., p. 06.
[13] Sobre a história do MCSP, consultar: ARRUDA, Beatriz Cavalcanti de. O Museu da Cidade de São Paulo e seu acervo arquitetônico. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Programa de Pós-Graduação Interunidades do MAE-USP, 2014.
[14] BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museu da Cidade de São Paulo: as mudanças éticas sonhadas por Mário de Andrade. In: Revista do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, 1975 – 2005: 30 Anos de DPH – Departamento do Patrimônio Histórico. São Paulo: DPH, 2006. V. 4, pp. 119-127.
[15] Beco do Pinto, Capela do Morumbi, Casa da Imagem, Casa do Butantã, Casa do Caxingui, Casa do Grito, Casa do Sítio da Ressaca, Casa do Tatuapé, Casa Modernista, Chácara Lane, Cripta Imperial, Sítio Morrinhos, Solar da Marquesa de Santos. Para mais informações, consultar o site institucional do MCSP: Disponível em https://www.museudacidade.prefeitura.sp.gov.br/acervos/. Acesso em: 29/05/2023.
[16] SAIA, Luís. Morada Paulista, op. cit., p. 75-76.
[17] As inscrições no batente das portas não significam, necessariamente, que seja o ano de construção, já que pode ter sido um acréscimo posterior.
[18] MAYUMI, op. cit., p. 167.
[19] Luís Saia, Processo de Tombamento CONDEPHAAT 190/72 apud MAYUMI, op. cit., p. 169.
[20] MAYUMI, op. cit., p. 165.
[21] Idem, p. 257.
[22] De acordo com Mayumi, falta documentação que comprove a hipótese, mas é provável dado o partido comumente tomado por Saia e o IPHAN na busca pela configuração ideal – “tese original”. Para mais informações, consultar: MAYUMI, op. cit., p. 125.
[23] ASSUNÇÃO, Moacir. “Um museu está desaparecendo em SP”, O Estado de São Paulo, Cidades. São Paulo, 27/06/2004, p. C5.
[24] Sobre o conceito de Ecomuseu e Nova Museologia consultar: BARBUY, Heloisa. A conformação dos ecomuseus: elementos para compreensão e análise. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v.3 p.209-236, jan./dez., 1995.
[25] GRINSPUM, Denise. Educação para o patrimônio: Museu de Arte e escola. Tese de Doutorado. São Paulo: Faculdade de Educação da USP, 2000, p. 47.
[26] MENESES, Ulpiano T. Bezerra. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.2 p.31, jan.dez., 1994.
[27] O programa “Cultura é Currículo” foi suspenso a partir de 2015. Fizemos uma consulta em 2017 e naquele momento não havia previsão de liberação de novas ações.
[28] Estimativa segundo relatos espontâneos. Não foi possível acessar dados concretos de visitação uma vez que, de acordo com o que foi possível apurar na ocasião, naquele momento não existia um registro de contagem de público formal.
[29] MENESES, Ulpiano Bezerra. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.2, p.9-42, jan.dez., 1994.
[30] Conforme dados do site do MCSP. Disponível em: https://www.museudacidade.prefeitura.sp.gov.br/acervos/. Acesso em: 29/05/2023.
Deborah Frohlich é bacharel em História da Arte (Unifesp, 2013) e especialista em Português: língua e literatura (Umesp, 2019). E-mail: deh.frohlich@gmail.com
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