A preparação do Museu do Ipiranga para o Bicentenário da Independência em 2022
| Eduardo Ferroni, Pablo Hereñú, Paulo César Garcez Marins, Renata Vieira da Motta, Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho |
Na abertura do Museu do Ipiranga em Festa, no dia 7 de setembro de 2019, foi anunciada a escolha da empresa que fará a restauração e modernização do edifício histórico do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, o conhecido Museu do Ipiranga, segundo o projeto do escritório de arquitetura H+F, vencedor de concurso nacional para esta obra [1]. O presente texto traça uma linha temporal extensa repleta de iniciativas para que pudéssemos chegar até aqui. Trata-se de um processo que, longe de estar ainda encerrado, conduziu-nos aos dias de hoje, em que já podemos ter esperança de que o Museu do Ipiranga será finalmente reaberto para os festejos do Bicentenário da Independência, em 2022. Os principais desafios que serão superados até esta reabertura são a restauração completa das áreas tombadas; a ocupação integral do Edifício-Monumento, exclusivamente, com áreas expositivas e de uso público; a ampliação visando dotar o Museu de áreas climatizadas; a construção de auditório e de salas de aula e de atividades educativas e; sobretudo, a superação do gravíssimo problema de acessibilidade.
Uma longa história
As trajetórias do Edifício-Monumento e do Museu Paulista (o Museu do Ipiranga) [2] tornaram-se uma só por sua força simbólica no imaginário nacional. Mas elas têm origens distintas. A construção do Edifício-Monumento concretizou o ideal do Império de criar um marco comemorativo da Independência do Brasil na região do Ipiranga. Já o Museu Paulista, criado como Museu do Estado e formado a partir de uma coleção particular, foi instituído por decreto provincial em 1890, um ano depois de proclamada a República. Em 1893, o Museu do Estado teve seu nome alterado para Museu Paulista e o Monumento do Ypiranga foi declarado propriedade do Estado e destinado a abrigá-lo. Assim, duas iniciativas, uma imperial e outra republicana, passaram a coabitar em um mesmo espaço construído.
Ao longo do século XX, o Museu foi subordinado às Secretarias do Interior, dos Negócios e da Educação até ser integrado à Universidade de São Paulo (USP), em 1963. Nessa década, ele passou a ser parte de um conjunto de museus da USP, juntamente com os Museus de Zoologia, de Arqueologia e Etnologia, e de Arte Contemporânea.
O Monumento do Ypiranga foi a primeira obra arquitetônica a estruturar o conjunto urbanístico do Parque da Independência. Atualmente, o conjunto é formado pelo Edifício-Monumento, horto, jardim, fontes e o monumento escultórico à Independência de autoria de Ettore Ximenes (1922). O Parque foi concebido na década de 1910 juntamente com uma ligação viária com o centro da cidade – a Avenida da Independência, hoje Avenida Dom Pedro I –, inaugurada em 1923, cuja inspiração veio das grandes avenidas monumentais de Paris, como a Avenida dos Champs-Elysées.
O tombamento do conjunto pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), em 1975, e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1998, garantiu sua preservação como um dos mais antigos conjuntos urbanísticos na cidade de São Paulo, mantendo traços da configuração original e das reformas realizadas para as comemorações do Sesquicentenário da Independência, em 1972.
O monumento arquitetônico concebido pelo arquiteto italiano Tommaso Gaudencio Bezzi para marcar o lugar da Independência foi a primeira edificação em escala monumental feita em tijolos na cidade de São Paulo. Sua volumetria foi inspirada nos grandes edifícios acadêmicos europeus do século XIX, que, como o Reichstag berlinense e a Universidade de Viena, são compostos por um edifício horizontal inspirado nos palácios franceses do século XVIII, arrematado por torreões laterais. A proposta de Bezzi para a ornamentação arquitetônica segue os padrões do neomaneirismo italiano, e não foi completada, a exemplo do frontão que previa esculturas e nunca foi efetivado. Também os dois grandes corpos laterais que se prolongavam para o norte não foram realizados, mas podem ser imaginados a partir da maquete existente no Museu, que materializava o projeto original.
O projeto de Bezzi procura traduzir os sentidos celebrativos do marco da Independência na visão do poder imperial. E é a partir desse espaço que Affonso de Escragnolle Taunay desenvolveu seu projeto expositivo sobre a história do Brasil e de São Paulo. Taunay manteve-se como diretor da instituição entre 1917 e 1945. Durante sua gestão, além de preparar o edifício para as comemorações do centenário da Independência, Taunay deu especial atenção à formação de coleções para a seção de História Nacional [3]. Documentos textuais, cartográficos, desenhos e gravuras foram as fontes para o desenvolvimento das salas expositivas dedicadas à história da formação territorial e política do estado e da cidade de São Paulo.
Mas o suporte privilegiado das exposições projetadas por Taunay foram as pinturas e as esculturas, especialmente mobilizadas para o que hoje denominamos eixo monumental: saguão, escadaria, sancas e salão nobre. Taunay foi um estudioso da vida dos bandeirantes, que teriam sido, segundo a sua visão corroborada pela historiografia daquele momento, os responsáveis pela formação territorial da nação brasileira. Pinturas e esculturas representando os bandeirantes e cenas do bandeirantismo no período colonial foram dispostos no saguão e ao longo da escadaria e retratos de personagens considerados protagonistas do movimento de independência foram pintados nas sancas no entorno da claraboia. O edifício e as insígnias tomadas como ornatos tornam presentes o poder imperial e, ao mesmo tempo, os conteúdos – as pinturas históricas – carregam implicitamente a marca do poder político e econômico de São Paulo no cenário republicano.
Assim, temos a poderosa presença da edificação, o contraste entre as suas escalas e a humana e a monumentalidade da principal pintura ornamentada pelos signos do Império, o quadro Independência ou Morte de Pedro Américo, realizado em 1888, por encomenda do governo imperial, na cidade de Florença, na Itália. A continuidade pacífica de um regime para outro se expressa, simbolicamente, nessa conjunção de arte e arquitetura, onde a primeira se completa na República e a segunda é fruto do Império. A memória eficaz que essa representação nos legou se manteve nos 100 anos que se seguiram.
Nas diversas gestões que se seguiram, não houve mudança significativa dessa decoração. A grande alteração, de caráter estrutural, foi realizada na década de 1950, em que o governo estadual decidiu que o porão seria escavado, de modo a criar-se um piso utilizável, em subsolo. Decidiu-se pelo corte de sapatas de fundação sob as paredes transversais e longitudinais internas e pela supressão de parte dos arcos que existiam para ventilação cruzada do porão. Com isso, novas salas e corredores foram criados. No entanto, o corte das sapatas provocou movimentações da parede longitudinal interna, o que redundou em fissuras e ligeiras rotações das torres laterais. Felizmente, as intervenções não comprometeram a estabilidade estrutural da edificação que alcançou um novo equilíbrio [4].
Na década de 1990, uma segunda intervenção no subsolo agravou o bloqueio das áreas originalmente concebidas para ficarem abertas a fim de induzir a circulação de ar e, por consequência, extinguir a umidade ascendente do solo, preservando as estruturas de madeira, as alvenarias e os pisos.
Outro problema já muito grave no início da década de 2000 era o estado do revestimento externo das quatro fachadas do Museu. A utilização de pintura impermeável, inapropriada para argamassas à base de cal, por dificultar a evaporação de umidade, resultou na deterioração das fachadas, inclusive de ornamentos [5]. Somava-se a isso a saturação das reservas técnicas, que começava a impedir os desdobramentos da renovação conceitual estabelecida na gestão de Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (1989-1994), que implicava um alargamento da política de aquisição, visando alcançar outros sujeitos sociais não focalizados desde a gestão Taunay.
A história recente
O museu em busca de ampliação, 2004-2010
Em 2004, a direção do Museu [6] e sua equipe de docentes e especialistas iniciaram uma série de discussões que seria o ponto de partida de um longo processo de recuperação do Museu.
Entre 2005 e 2010, a Comissão de Espaço Físico instituída no Museu [7] coordenou a produção de um programa de necessidades das áreas técnicas, os estudos de massas arquitetônicas para a ampliação do Museu e a tramitação do projeto nas instâncias da Universidade e esferas governamentais [8].
A ideia era construir um Bloco Técnico que abrigasse as reservas técnicas de acervo, laboratórios de conservação, biblioteca, auditório, salas de aula e de trabalho. Um levantamento de áreas e imóveis públicos e privados nas cercanias do Museu Paulista acabou por deixar claro, à época, que a melhor opção para a construção do Bloco Técnico do Museu seria a área ainda hoje ocupada pelo Corpo de Bombeiros [9]. Tal área está situada a 50 metros do Edifício-Monumento, dentro do Parque da Independência e não seria preciso supressões arbóreas significativas [10].
Com o Edifício-Monumento desocupado, teria início sua restauração e, posteriormente, sua reabertura somente como espaço expositivo. Duas colunas de elevadores externos, localizadas na fachada, tornariam o edifício acessível. A construção de uma área subterrânea possibilitaria acolher o público de forma apropriada – com banheiros, café, loja, guarda-volumes – e oferecer exposições temporárias.
O estudo de massas foi elaborado pelos arquitetos Eduardo Argenton Colonelli e Silvio Oksman do Escritório Paulistano de Arquitetura [11]. O entendimento de que o Museu precisava ser ampliado tomou corpo associado à compreensão de que não se poderia conceber tal transformação de maneira desvinculada de outras instituições já existentes na região e com as quais o Museu deveria formar um polo cultural e acadêmico [12].
O bairro do Ipiranga é um dos mais antigos de São Paulo. Possui várias edificações reconhecidas como patrimônio cultural. Além do Parque da Independência, que abriga o Museu Paulista, o horto botânico, o jardim “francês”, a Casa do Grito e o Monumento à Independência, há as residências da família Jafet, a mais rica da comunidade sírio-libanesa da cidade, além de um conjunto de escolas e conventos: Instituto Padre Chico, Educandário Sagrada Família, Internato Nossa Senhora Auxiliadora, Antigo Noviciado Nossa Senhora das Graças Irmãs Salesianas, Antigo Grupo Escolar São José, Instituto Cristóvão Colombo, Seminário João XXIII, Clínica Infantil do Ipiranga, Seminário Central do Ipiranga, Antigo Juvenato Santíssimo Sacramento, Colégio São Francisco Xavier, Instituto Maria Imaculada e a capela do Cristo Operário, com pinturas de Alfredo Volpi.
Tal marca cultural deveria fortalecer o Projeto de Ampliação do Museu. Em dezembro de 2006, a reitora da USP, Suely Vilela, escreveu carta ao governador do Estado, Cláudio Lembo, em apoio às iniciativas da direção do Museu. Visando a aceleração dos estudos, foi iniciada uma série de colaborações com órgãos públicos: Subprefeitura do Ipiranga, Secretaria Municipal de Planejamento, Secretaria Municipal de Cultura, Secretaria de Estado da Cultura, Conselho Estadual de Patrimônio Imobiliário, Casa Civil e Governo do Estado.
Em fevereiro de 2007, o governador José Serra autorizou o uso de 7.300 m2 do subsolo localizado entre a fachada sul do Edifício-Monumento e o edifício do Corpo de Bombeiros para que fosse realizado o estudo de viabilidade [13]. Em junho do mesmo ano, discutiu-se com o subprefeito Alexandre Aniz a possibilidade de criação do “Boulevard dos Museus” por meio da incorporação ao parque da segunda pista da Avenida Nazaré, o que seria facilitado pela ausência das instalações dos bombeiros e da circulação de emergência de seus veículos.
Em 2008, o estudo de viabilidade foi aprovado pelos órgãos de preservação das três esferas públicas – IPHAN, Condephaat, Conpresp [14]. No ano seguinte, foram realizados os estudos de transplantes de árvores e plantios compensatórios, com assessoria da Universidade Estadual Paulista (UNESP) [15]. O Corpo de Bombeiros havia concordado em ceder a área mediante a construção de um novo posto nas imediações.
Em novembro de 2010, a Fundação de Apoio à USP recebeu da Secretaria Municipal de Cultura autorização para captar recursos para a elaboração do Projeto Executivo das Prumadas de Circulação (elevadores externos). Neste mesmo ano, a documentação necessária à desapropriação de uma área na Avenida Nazaré, em frente ao Parque da Independência, foi encaminhada à Reitoria da USP, que, por meio de sua Procuradoria Geral, solicitou a desapropriação da área à Procuradoria do Estado.
Também em 2010, a Reitoria da USP empenhou-se na construção da Praça dos Museus na Cidade Universitária, para onde o Museu de Zoologia, juntamente com o Museu de Arqueologia e Etnologia, seria transferido [16]. Essa decisão indicava que a ideia do polo cultural e acadêmico no Ipiranga não prosperara dentro da própria Universidade e a indicação de que o edifício do Museu de Zoologia seria destinado ao uso do Museu Paulista abalou os planos de ampliação como vinha sendo encaminhado até então. Como se sabe, a Praça dos Museus foi paralisada após o colapso financeiro que acometeu a USP ao final da gestão do reitor Prof. Dr. João Grandino Rodas.
O fechamento em 2013
Desde a sua inauguração, o Edifício-Monumento recebeu manutenção preventiva e corretiva pontuais, mas nunca foi objeto de um restauro completo. As restaurações e manutenções mais amplas e recentes ocorreram entre 1996 e 1997: reforma dos telhados, da claraboia central, restauração das pinturas figurativas da sanca central e a renovação do sistema elétrico [17].
Os anos sucessivos em que ocorreram infiltrações de águas pluviais sob os telhados, e que não puderam ser resolvidos com as manutenções rotineiras, fizeram com que o edifício sofresse acelerada degradação. O fechamento do Edifício-Monumento ao público em agosto de 2013 decorreu da existência de laudos que indicavam a iminência de desplacamento de forros de algumas salas expositivas, inclusive do Salão Nobre. Houve também o comprometimento dos forros da Biblioteca e do auditório [18].
Após o fechamento emergencial, determinado pela diretora do Museu [19], foram feitos escoramentos em todas as salas com forros que apresentavam risco de desplacamento, bem como foram realizadas consultorias internacionais para o estabelecimento de diretrizes básicas de intervenção que respeitassem as características das técnicas construtivas do edifício [20]. Foi também contratada a empresa especializada que permitiu a produção de um diagnóstico completo das atuais condições estruturais do Edifício-Monumento [21].
O edifício foi interditado ao uso público, sendo seu acervo e as equipes progressivamente instalados em imóveis nas proximidades do edifício histórico.
Uma nova história
O museu em busca de ampliação, 2015-2017
As negociações para a remoção das instalações do Corpo de Bombeiros visando à implementação do primeiro projeto de expansão do Museu não chegaram a bom termo. Tal impossibilidade levou a Reitoria da USP a solicitar uma avaliação [22] das possibilidades de aproveitamento do projeto no que tangia às intervenções no Edifício-Monumento, intervenções essas que também foram descartadas.
Essa decisão levou o Reitor Marco Antônio Zago a designar, em 2015, uma nova equipe de arquitetos, sob a liderança de Nestor Goulart Reis Filho [23], para a realização de um projeto alternativo. Criaram-se as circunstâncias para que a equipe do Museu revisasse em conjunto o programa de necessidades da instituição de modo a instruir o novo projeto, pelo que se previu, por exemplo, a expansão das áreas de reservas técnicas, devido ao crescimento contínuo do acervo e também à expansão das áreas de ação educativa. A revisão foi realizada no âmbito da Comissão de Espaço Físico do Museu, que organizou, também nesta fase, reuniões conjuntas de todas as áreas funcionais da instituição de modo a permitir avaliações transversais, que atendessem tanto a demandas de acesso e atendimento aos públicos visitantes, quanto de conservação dos acervos, do edifício e de seus bens integrados.
O projeto consolidado pela nova equipe, a partir da revisão do programa de necessidades, evitou a expansão subterrânea longitudinal à fachada sul, optando por criar espaços subterrâneos em torno de todo o Edifício-Monumento. Nesses subsolos seriam concentrados os auditórios, salas de aula e de ações educativas, restaurante, cafeteria, biblioteca e novas áreas expositivas. A circulação vertical não seria mais realizada por torres externas associadas à fachada sul, mas por elevadores e escadas implantados dentro dos vestíbulos das torres oeste e leste.
Essa nova proposta previa também a construção do Bloco Técnico em área externa junto ao parque, na esquina das ruas Xavier Curado e Xavier de Almeida, em terreno então ocupado pela Prefeitura e hoje por uma extensão do SESC Ipiranga. O bloco seria conectado ao Edifício-Monumento por um corredor subterrâneo, para permitir a circulação de acervos e equipamentos.
A inviabilidade de obtenção desse terreno para expansão e de financiamento para a execução do projeto levaram a uma nova paralisação do processo de intervenção no Edifício-Monumento. As duas tentativas sem sucesso de implementar projetos de restauro e ampliação do Museu Paulista levaram a uma radical mudança da metodologia de definição projetual, a partir de 2016. Atendendo a uma recomendação do Instituto de Arquitetos do Brasil e do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, a direção do Museu deu andamento à meta de realização de um concurso nacional para o projeto do Museu. A Reitoria acolheu tal iniciativa e constituiu o Grupo de Trabalho Museu Paulista 2022 para estabelecer as diretrizes de intervenção [24].
No início de 2017, o GT consolidou o entendimento de que a recuperação do Museu deveria ser realizada em duas etapas. Em um primeiro momento, o restauro e modernização do Edifício-Monumento. Vencida essa etapa, seria construído o Bloco Técnico, para abrigar o acervo e as atividades acadêmicas, científicas e administrativas [25].
Essa definição consolidava as discussões sobre a recuperação do Museu realizadas desde 2004 e, também, estabelecia um cronograma justo, mas viável, para a recuperação do Edifício-Monumento até o Bicentenário da Independência em 2022. As ações da diretoria do Museu e do Grupo de Trabalho voltaram-se para o planejamento da recuperação do Edifício-Monumento, tendo como primeira etapa a realização do concurso para o projeto de restauro e modernização.
O cronograma do concurso foi estabelecido no período de junho a dezembro de 2017, com as seguintes etapas: 1) Definição da gestão e dos recursos financeiros; 2) Elaboração do edital e da pasta técnica; 3) Lançamento do concurso; 4) Análise das propostas e seleção; 5) Divulgação e exposição dos vencedores. O concurso foi definido com abrangência nacional, com premiação dos três melhores colocados e contratação do primeiro lugar para elaboração do projeto executivo de restauro e modernização do Edifício-Monumento [26].
Dada a escala do projeto e a previsão de sua execução com recursos de patrocínio privado, buscou-se uma entidade sem fins lucrativos, de direito privado, que pudesse atuar na gestão administrativa e financeira do projeto. Nessa perspectiva, foi estabelecido um Acordo de Cooperação entre Universidade de São Paulo e Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp).
O edital, o termo de referência e a pasta técnica completa foram estabelecidos por profissionais da USP, com apoio técnico da Tekton Assessoria Empresarial Ltda. O edital foi desenvolvido em conformidade com os princípios da administração pública – legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade –, e com as normas para concursos do Instituto de Arquitetos do Brasil, com duas características singulares.
A primeira particularidade foi a inclusão de um componente de preço ofertado pelos participantes e que compôs um dos quesitos da nota final. Dessa forma, efetuou-se simultaneamente ao certame uma cotação prévia de preços, obtendo-se um desconto em torno de trinta por cento do valor de referência, no valor do contrato do vencedor [27].
A segunda particularidade foi um procedimento de julgamento que contou com duas comissões: 1) Comissão técnica composta por cinco membros, responsável por assessorar a coordenação do concurso na análise pormenorizada das propostas [28]; e 2) Comissão julgadora composta por onze integrantes, incluindo servidores da USP, especialistas e membros indicados pelos órgãos de patrimônio e de museus – Conpresp, Condephaat, IPHAN e Ibram –, bem como do IAB/SP e CAU/SP, parceiros institucionais do concurso [29]. A atuação articulada das duas comissões conferiu maior segurança para a seleção final.
O Termo de Referência e o Programa de Necessidades foram minuciosamente elaborados, em conjunto com os técnicos e docentes do Museu, estabelecendo diretrizes para elaboração das propostas, alinhadas ao histórico de discussões sobre a recuperação do Edifício-Monumento estabelecido desde 2004, conforme exposto acima.
Dentre o conjunto extenso de parâmetros e diretrizes dispostos no Termo de Referência, podemos destacar: 1) Definição da área de ampliação de aproximadamente 3.500 m2, em um único subsolo sob a área frontal do Edifício-Monumento, denominada Esplanada; 2) Promoção de relações do Edifício-Monumento com o Parque da Independência; 3) Definição de uso do Edifício-Monumento exclusivamente com áreas expositivas e de visitação pública; 4) Restauro completo com respeito ao edifício histórico e coerência ao seu valor nacional; 5) Modernização completa das instalações e acessibilidade conforme normas vigentes; 6) Áreas para exposições de longa e média-duração, no Edifício-Monumento, e sala para exposições temporárias, localizada na nova área de ampliação.
O cronograma foi cumprido conforme previsto, com o lançamento do concurso nas festividades do feriado de Sete de Setembro de 2017, com aproximadamente 60 dias para elaboração das propostas e 30 dias para análise das comissões.
Os projetos selecionados
O concurso recebeu a inscrição de treze propostas técnicas, sendo oito propostas válidas, que foram primeiramente analisadas pela Comissão Técnica, observando-se as regras descritas no edital e pasta técnica. A Comissão elaborou planilha analítica das propostas válidas, consolidando a análise em nove tópicos: 1) Atendimento ao Programa de Necessidades; 2) Acessos aos edifícios; 3) Conexão de edifícios e controle de ingressos; 4) Circulação, acessibilidade e rotas de fuga; 5) Áreas expositivas no Edifício-Monumento; 6) Instalações sanitárias; 7) Climatização e controle ambiental; 8) Exequibilidade técnica; e 9) Critérios de restauro e preservação do patrimônio cultural.
Com base nos critérios relacionados no edital e nos subsídios da análise da Comissão Técnica [30], a Comissão Julgadora decidiu pela classificação de quatro melhores propostas técnicas: 1) Hereñu + Ferroni Arquitetos Ltda; 2) Pires Giovanetti Guardia Engenharia e Arquitetura Ltda; 3) Arquiteto Hector Vigliecca e Associados Ltda; e 4) Nora Comércio, Importação e Exportação de Móveis Ltda. Os três melhores colocados foram então definidos como premiados e seguem comentados abaixo.
O terceiro colocado do concurso foi a proposta do escritório Hector Vigliecca e Associados, em que se destaca uma cobertura de vidro de suave curvatura que protege a abertura do novo acesso ao Museu. Esse “átrio de luz” prolonga-se no nível da Esplanada, paralelo à fachada norte do Edifício-Monumento, acolhendo e conduzindo o público ao novo subsolo por escadas mecânicas e elevador. O acesso do público é dado exclusivamente pela Esplanada, não havendo acesso pela cota inferior do parque.
O uso do vidro estrutural se estende, ainda, para as novas estruturas de circulações verticais e horizontais do Edifício-Monumento, visando conferir legibilidade e conforto aos usuários. Apresenta, também, proposta de conexão entre as salas expositivas centrais e das torres, por meio de passarela envidraçada e varandas. O uso intensivo de vidros em diferentes planos justifica-se pelo partido adotado, em intervenções que buscam respeitar o edifício existente. No entanto, é uma solução onerosa para a construção e de mais difícil manutenção.
A proposta apresenta, ainda, especial atenção à ampliação dos espaços expositivos, respeitando as características da arquitetura original, mas abrindo potencialidades com áreas novas no subsolo, aberturas nas salas expositivas existentes no Edifício-Monumento e conexão entre as torres do segundo pavimento, explorando ao máximo sua ocupação com novos usos compatíveis com o novo programa. Já o setor educativo é, em grande parte, alocado na face sul da ala central do Edifício-Monumento, área de mais difícil acesso e circulação para os grupos.
O segundo colocado do concurso foi a proposta do escritório Pires Giovanetti Guardia em que se destacam as soluções de restauro e preservação do patrimônio. O partido arquitetônico com o estabelecimento de um novo eixo de circulação no sentido leste-oeste – atravessando o Parque da Independência do bolsão do estacionamento da Avenida Nazareth à Rua Xavier de Almeida –, estabelece uma solução delicada que não interfere na visualização do Edifício-Monumento e apresenta uma metodologia de restauro consistente.
Esse novo eixo proposto respeita a simetria do edifício monumental, com extremidades dos acessos na cota do parque, atendendo à diretriz de promover relações entre os elementos paisagísticos e edificados do conjunto, mas sem competir com a entrada monumental do edifício. Possibilita, ainda, a visualização no lado interno do muro de arrimo da Esplanada, permitindo ao visitante ver seu sistema construtivo de forma inédita e didática. Por outro lado, a solução proposta com rampas de acesso descobertas são pontos frágeis do ponto de vista da drenagem de águas pluviais e conforto dos funcionários e visitantes.
A proposta apresenta três novas prumadas de circulação vertical no Edifício-Monumento – duas prumadas simétricas na área das torres e uma terceira no corpo central –, de forma a estabelecer acessibilidade e segurança a todos os pavimentos do edifício. Um conjunto de escadas rolantes complementa a conexão entre o novo subsolo e o Edifício-Monumento. Os pontos de acesso ao Edifício-Monumento pelas extremidades leste e oeste e a transposição vertical dividida entre as prumadas geram maior dificuldade no fluxo de visitação entre os blocos do edifício.
O projeto vencedor
O edifício e a paisagem monumental
Implantado no topo de uma colina, arremate de um projeto urbano de 2,5 km de extensão, o Edifício-Monumento Museu do Ipiranga constitui-se como ícone de uma paisagem monumental que só faz sentido se pensada em sua totalidade. A renovação do edifício, portanto, deve ser encarada como o passo inicial de um processo de recuperação do Conjunto Monumental da Independência como um todo, buscando articular e qualificar sua presença nas diversas escalas em que opera, reverenciando espacialidades cuja memória afetiva permeia o imaginário de toda a nação. Foram estes os princípios gerais que configuraram a proposta vencedora, de Hereñu + Ferroni Arquitetos Ltda [31].
Ações
Dois princípios fundamentais das proposições são: o de menor agressão à integridade física e visual do edifício e a possibilidade de reversão dos acréscimos propostos.
O primeiro plano de ações se concentra nas obras para recuperação da integridade física e reabilitação / modernização do Edifício-Monumento, além da criação de um setor novo, complementar e integrado, contendo grande parte dos serviços e áreas de apoio necessárias ao pleno funcionamento de um museu contemporâneo. Buscou-se conceber essa ampliação do Edifício-Monumento não como um anexo ou apêndice, mas como um prolongamento subterrâneo do edifício preexistente que, por sua vez, abre a possibilidade de conectar o Museu ao Parque de uma forma mais potente e configura uma nova esplanada de acesso, que se estende até a Rua dos Patriotas.
O Edifício-Monumento foi projetado como elemento de propaganda de um regime, inicialmente da Monarquia, e depois encampado pela República, em um período em que São Paulo começava a modificar o seu modo de construir, inspirando-se nos modos de fazer europeus. O projeto trazia em sua concepção estrutural grandes avanços da engenharia da época, encamisados, no entanto, pelos preceitos formais do ecletismo. Revelar essa condição é uma oportunidade que o projeto buscou explorar, tornando visíveis elementos técnicos e estruturais previamente escondidos, permitindo o acesso público aos bastidores dessa arquitetura, ressignificando espaços residuais. A iconografia histórica do museu retrata momentos de apropriações espontâneas desse espaço, revelando um potencial latente que o projeto original não aproveitou.
Ritual de ingresso
Um dos elementos mais marcantes do Edifício-Monumento é o ritual de ingresso que este propõe: a lenta elevação de cota através da escadaria frontal e rampas laterais; o ingresso ao abrigo do saguão principal e sua floresta de colunas; o descortinamento do grande vazio central iluminado, da escadaria monumental e da figura de D. Pedro I. Desestruturar esse ritual, fazendo com que o público proveniente do novo acolhimento acesse o edifício de outra maneira, representaria o sacrifício de uma referência coletiva cuja preservação é fundamental.
A partir dessas considerações, a interligação proposta insere com precisão cirúrgica e interferência mínima um conjunto de escadas rolantes e elevador em pleno saguão principal. Dialogando com o eixo compositivo da arquitetura original, estas conexões integram funcional, visual e simbolicamente o ritual de ingresso original ao seu prolongamento subterrâneo, criando um percurso contínuo marcado por contrastes de luzes, linguagens e tempos.
Acolhimento: coração público do museu
O novo setor de acolhimento, localizado na ampliação sob a esplanada, foi desenhado com a intenção de potencializar a interação entre as atividades públicas previstas no programa.
Ao redor de um amplo saguão central, com vista para as fontes e jardins localizados no parque, distribuem-se as áreas de atendimento ao público, bilheterias, salas educativas e de uso múltiplo, o acesso ao novo setor de exposições e ao auditório, áreas de descanso, loja, café e conexões com o Edifício-Monumento.
Ao colocar-se como um aglutinador de atividades públicas, esse espaço possibilita a fricção entre os diferentes tipos de visitantes do museu, os usuários do parque e a população de um modo geral.
Torre infraestrutural
As principais ações destinadas à modernização e adequação funcional do Edifício-Monumento foram agrupadas em uma única intervenção: a inserção de uma torre infraestrutural (escada protegida, elevadores, conjuntos de sanitários, shafts de instalações e áreas técnicas) no interior da porção sul de seu corpo central, área já bastante descaracterizada e atualmente ocupada por funções de natureza similar.
Seu posicionamento permite alcançar todos os níveis (existentes e propostos) do museu com impacto mínimo na volumetria do conjunto: o leve afloramento da torre sobre o plano da cobertura tem pouca visibilidade ao nível do solo devido à presença do bosque e aos ângulos possíveis de observação.
Ocupação do coroamento da torre central
O espaço vazio localizado no interior do coroamento da torre central será reconfigurado com a construção de uma cobertura de vidro para as claraboias centrais e a inserção de um volume que abriga uma nova sala expositiva e cria um mirante ao ar livre em sua cobertura.
Todos os elementos estruturais da cobertura original serão preservados e recuperados, sendo removidas apenas as atuais telhas metálicas e de vidro, que apresentam diversos problemas de estanqueidade. Passarelas ligadas ao novo núcleo de circulação vertical habilitam percursos inéditos, atravessando vazios com espacialidades dramáticas nos quais podem ser observadas as belíssimas estruturas metálicas originais das claraboias, as grandes tesouras de madeira do antigo telhamento e os potentes arcos de tijolos que suportam as alvenarias do coroamento.
A operação proposta resulta na criação de um terraço-mirante, invisível desde o exterior, a partir do qual se descortina a topografia do Ipiranga, a relação desta com a implantação do edifício e seus desdobramentos através do parque e dos sucessivos elementos que estruturam aquela paisagem.
O novo Museu do Ipiranga
O conjunto de intervenções propostas busca o silêncio e a discrição. A estratégia não é a de marcar a renovação estampando a face do novo, mas a de experimentar de uma maneira nova o que já está lá, por meio de ressignificações, conexões e percursos que os novos elementos propiciam. A ênfase das ações propostas não reside em sua aparência, mas no seu desempenho; no que são capazes de promover; na sua eficácia em dinamizar e potencializar as virtudes das preexistências. O novo Museu do Ipiranga terá o velho rosto de sempre, mas oferecerá uma experiência mais inclusiva, segura e rica do que em seus 127 anos anteriores.
Eduardo Ferroni e Pablo Hereñú (H+F Arquitetos); Renata Vieira da Motta (Reitoria da USP); Paulo César Garcez Marins, Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho (Museu Paulista da USP).
v.4, n.7 (2020)
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