A obra de arte frente ao perito: a falsificação na história da arte – 2ª. Parte

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Do início do século XX ao século XXI

I Gustavo Perino I

Desde o surgimento do Connoisseur no século XVIII, a figura do expert em arte tem passado por muitos estágios e  grandes nomes, que ao longo da história tem contribuído com esta incrível profissão, tem sido sistematicamente apagados das hegemônicas publicações de história da arte. Na primeira parte deste artigo, apresentamos grandes personagens que são os principais responsáveis pelo estabelecimento desta profissão, mas foi no século XX que se consolida e estrutura essa atividade, com incorporação de método acadêmico e intervenção tecnológica. A nova perícia de arte começará por Argentina e França.

França, ano 1930. Os Argentinos Fernando Perez (1863-1935) e Carlos Mainini (1867-1943) criaram o estudo de arte chamado Pinacologia [1] e foram os primeiros a incorporar tecnologia disponível para a medicina para o estudo das obras de arte de maneira sistemática. “Muitas dessas obras exigem atendimento de urgência, que deve ser emprestado por mãos prudentes e muito hábeis. Este resultado não pode ser alcançado sem a colaboração da ciência e da arte, que de agora em diante não deveriam viver separadas.” [2]

Esse ano, graças a Fernando Perez e Carlos Mainini, uma nova ciência, a pinacologia, se estabelecerá em Paris e um laboratório de pesquisa será criado em um dos locais mais emblemáticos do patrimônio: o Louvre. Dois diplomatas médicos a serviço da arte são os protagonistas dessa história Franco-Argentina e, por seus respectivos caminhos, compartilham muitos pontos em comum. O primeiro é fruto desse desejo de europeização da Argentina, impulsionado por Alberdi, que favoreceu a imigração de uma população educada, maioritariamente europeia, contribuindo para o progresso intelectual do projeto da nova nação pensada pela geração de 80. [3]

Nascido na Argentina, filho de um basco francês, Fernando Perez realizou seus estudos médicos em Paris e tornou-se doutor em medicina na Faculdade de Paris, em 1888. Foi um brilhante otorrinolaringologista com trabalhos feitos no Hospital Infantil e no Hospital Francês de Buenos Aires, onde realizou a primeira laringectomia total na Argentina, em 1893, e a segunda na América Latina. Obteve, por sua pesquisa e sua luta contra a malária o título de doutor honoris causa da Universidade de Roma (1927). Carlos Mainini nasceu em Gallarate, perto de Milano, sua família migrou para a Argentina no início do século XX. Ingressou na faculdade de ciências médicas da Universidade de Buenos Aires e tornou-se doutor em 1904.

A colaboração entre Perez e Mainini data de 1925, quando participaram de uma delegação argentina no primeiro Congresso Internacional de Malária em Roma. Além de embaixadores médicos e membros de muitas sociedades científicas argentinas, ambos realizavam uma carreira diplomática na Europa.

Em um contexto de pós-guerra em que as relações entre a França e a América Latina foram muito afetadas, a Argentina mantém e reforça sua presença consular na França, dobrando sua filiação entre 1914 e 1930 e mudando o perfil de seus representantes que eram homens do direito, da política ou militares, substituindo-os pelo melhor talento literário e científico. Nesse sentido, Perez e Mainini ilustram essa nova burguesia estudando em universidades europeias, representam um trampolim social e político que constituiu a consagração da burguesia.

Na época, havia uma grande delegação chefiada por um embaixador extraordinário e plenipotenciário na pessoa de Álvarez de Toledo, amigo de Bourdelle. Com este último, Mainini navega nesta aristocracia intelectual franco-argentina, como evidencia o célebre jornal Caras y Caretas, no qual aparece como figura intelectual dos “Argentinos em Paris”, ao lado de seus compatriotas: os pintores Quirós e Ramauge, o escultor Lagos e Leguizamon Pondal,  os  doutores Uríburu e Monsegur e o poeta Oliverio Girondo.

Durante sua residência na França, Mainini casou-se, em 1929, com a jovem viúva Coralina, conhecida como “Cora” Kavanagh, consolidando sua posição na classe média alta da Argentina. O casal representa uma fortuna substancial. O casal Mainini estava em todas as recepções da alta sociedade parisiense e Perez aparece nas publicações da “Semana Argentina”, organizada em 1927, em Paris, junto com outros artistas importantes. Além de seu compromisso com a pesquisa médica, Perez e Mainini trabalhavam apoiando a arte e a cultura da Argentina como mecenas para a aquisição de obras para o Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires.

Como embaixador em Roma, Perez organizou vários eventos na Itália para promover seus compatriotas como o pintor Benito Quinquela Martín. Itália e França são gratas pelos investimentos em arte e ciência dos dois argentinos: Mainini será cavaleiro da Legião Francesa de Honra como médico, Perez será comandante como ministro da República Argentina. Após seu retorno, Mainini se tornará membro da Comissão Nacional de Cultura na Argentina (1936).

Estudo científico para autenticação de obras

No início do século XX, o mercado de arte foi contaminado pelas cópias com assinaturas apócrifas e atribuições falsas de pinturas de pintores famosos. “O mundo dos museus ainda está se recuperando de escândalos como o caso da Mona Lisa e dúvidas de Bourcier sobre a autenticidade do painel (1926)” [4]. Também os escândalos que Mainini lembra de La Plantation du mai et de La Danse villageoise, erroneamente atribuído a Watteau e adquirido pelo Louvre, em 1927, pela soma de 1.500.000 francos. 

Perez fica chocado com essas produções artísticas criminosas que abundam no mercado, invadem salas privadas e cruzam o limiar dos principais museus, onde o público, segundo ele, olha para as pinturas com desconfiança.

A razão para a multiplicação desses enganos deve-se à legislação muito fraca sobre a repressão das fraudes artísticas e aos historiadores da arte, que não têm métodos confiáveis para avaliar as pinturas. Perez descreve as avaliações dos historiadores como “operações muito subjetivas” e questiona os que “julgam obras de arte pela impressão que sentem do ponto de vista puramente estético, negligenciando quase completamente seus elementos físicos”. [5]

Ele desejou preencher essa lacuna adquirindo conhecimento científico e criando documentação moderna, desta maneira tornaria possível estudar e comparar as obras de acordo com sua tripla abordagem: estrutural, cromática e estética. Perez demostra que, usando microscópio acoplado à luz oblíqua, é possível examinar e fotografar pinturas. Os resultados obtidos contribuem para o estudo da estrutura do “impaste” (acumulação de tinta) para estabelecer a atribuição de certas obras e para estudar as doenças da pintura e garantir a melhor conservação das obras-primas”. [6]

Fig. 1. A Pinacologia na imprensa. 1931 (fonte: Reprodução imagem Wikipedia)

 

Fig. 2. Louvre, 1931. Fernando Perez no Laboratório (fonte: Reprodução imagem Granger)

 

Fig. 3. O conservador de pinturas Edmond de Beaumont raio-X de uma pintura na década de 1940 (fonte: Reprodução Worcester Art Museum)

 

Fig. 4. Diretora Magdeleine Hours no Laboratório do Louvre de 1949 a 1982 (fonte: Reprodução imagem Granger)

 

Fig. 5. Fernando Perez com as novas luzes cirúrgicas (fonte: Reprodução imagem Granger).

Distinguir a cópia da peça autêntica e certificar-se de que a atribuição é a correta é um grande desafio. Os peritos tornam-se mais hábeis em descobrir fraudes e os especialistas chamam as “luzes da ciência para iluminar seus julgamentos estéticos”. [7]

Na França, Chéron foi o primeiro, em 1920, a utilizar raios X, que até então eram de uso exclusivo da medicina. Ele realizou um raio-X da pintura: Enfant royal em prière, de Jean Hey, demostrando que era possível observar “os índices de idade e, portanto, também a sua autenticidade”, podia-se distinguir as modificações realizadas pelo pintor, mas também o aparelhamento, as adições, as repinturas, as restaurações e, por vezes, para descobrir pinturas inteiras que desapareceram sob novas obras.

O raio-X das pinturas de Chéron foi apresentado na reunião de 13 de dezembro de 1920, na Academia de Ciências, pelo presidente e Prêmio Nobel de Física Dr. Lippmann. Com o objetivo de fortalecer esse emergente vínculo entre arte e ciência, o Instituto Internacional de Cooperação Intelectual (IICI) decide referenciar todos os métodos científicos publicados para contribuir para um melhor conhecimento das obras, como a aplicação de raios-X ou métodos ópticos. Neste contexto, Perez demonstra os benefícios de sua luz rasante na “datiloscopia artística”, o estudo das pinceladas.

Segundo o jornal L’Ouest Éclair do dia 16 de maio de 1929: “As impressões digitais dos grandes pintores antigos permitirão identificar as suas obras. Graças ao método de Perez, tem sido possível descobrir em várias pinturas de velhos mestres suas digitais nas telas”. [8]

E assim ele foi capaz de colocar a serviço da arte essa impressão digital que a medicina forense atraiu tanto em nosso tempo. Em setembro de 1925, o ministro francês da educação, Anatole de Monzie, cria um decreto sobre a proteção de obras de arte modernas pelo processo de impressões digitais dos artistas. Apesar dos avanços científicos, o mercado de arte da década de 1930, ainda é marcado por questões quentes e escandalosas.

A pinacologia de Fernando Perez

Foi depois de um artigo da agência Havas sobre a descoberta de impressões digitais em várias pinturas da Real Galeria de Veneza por Perez, feito dentro do Escritório Internacional de Museus (Foundarkidis – OIM), de julho de 1928, que o diretor da Royal Chalcography, em Roma, o senhor Rossi, decidiu contatar o argentino. [9] 

Segundo os registros da correspondência diplomática entre Foundoukidis, de Vedia, delegado da República Argentina ao embaixador argentino na França Álvarez de Toledo, a palestra Organizada pela OIM (Escritório Internacional de Museus – Unesco) em Roma, em outubro de 1930, seria considerada por alguns autores contemporâneos como a certidão de nascimento da ciência da conservação e restauração.

Perez apresenta sua pinacologia na Conferência Internacional para o estudo de métodos científicos aplicados ao exame e conservação de obras de arte, reunindo cerca de cinquenta especialistas de vinte nações, incluindo os especialistas franceses Cellerier, diretor do setor do laboratório e ensaios do Conservatório Nacional de Artes e Ofícios; Goulinat, membro da comissão de restauração dos museus nacionais do Louvre; e Guiffrey, restaurador do Louvre.

Verne, diretor dos museus nacionais e da École du Louvre, aproveitou e presença do argentino em Paris para organizar, em 18 de junho de 1930, uma conferência intitulada: “Contribuição ao estudo científico das pinturas: pesquisa pinacológica realizada nos principais museus da Itália, estudo da estrutura do impasto nas pinturas”, sediado na Sorbonne, à qual são convidados muitos cientistas, políticos e diplomáticos franco-argentinos. [10]

Durante esta conferência, a revista La revue de l’Amérique latine 26, apresenta a relevância do método que Perez define como pinacologia artística, que divide em quatro ramos [11]:

  • Pinacologia científica e experimental
  • Pinacologia estética
  • Pinacologia histórica e comparativa
  • Pinacologia técnica

.

Nas suas próprias palavras, Perez define:

A pinacologia científica estuda a osteologia (ciência que estuda os ossos) e a miologia (parte da anatomia que trata dos músculos), a química e a física das cores, as leis que presidem suas misturas, as leis que governam o estabelecimento da cor, a composição, a decomposição e a estética da luz, a percepção das cores, a composição e as transformações dos óleos secantes e outras substâncias aglutinantes, as leis da perspectiva, a perspectiva da linha e da cor, os diferentes substratos do ponto de vista de sua estrutura, sua resistência à ação do tempo, a etiologia (determinação das causas e origens de um determinado fenômeno das fissuras), suas consequências na conservação de obras pictóricas: finalmente estuda a aplicação da pinacografia e pinacoradiologia. [12]

A pinacografia permite aprofundar o conhecimento estrutural e técnico do empasto, para o qual Perez permite determinar um empasto dissociado de um fundido, em que as partes mais grossas correspondem às sombras e luzes e onde as sombras têm precedência. Segundo ele, a escolha de um ou de outro não se deve a uma escolha do pintor, mas vem da sua mentalidade e sua psicologia e deve ser considerada como a marca de um autor ou uma corrente.

Esta abordagem mais próxima do material é permitida graças a este microscópio particular que Perez renomeou com o neologismo de pinacoscópio. O aparelho está equipado com uma iluminação lateral dupla, com o poder de ampliação na ordem das 40 a 120 vezes. Textos da época falam sobre a ferramenta:

Seu interesse pelo estudo das superfícies pintadas ou desenhadas decorre principalmente do tamanho reduzido do aparelho, de sua leveza, de sua grande capacidade de manobra e de sua qualidade luminosa, que permite “surfar” sobre a superfície a ser examinada e, se necessário, segurá-la com uma mão, realizar este exame numa superfície vertical ou oblíqua, isto é, sem mover uma pintura pendurada na parede é um grande benefício (…). O pinacoscópio é usado para estudar (…) os detalhes da chave e do impasto, a contextura dos suportes, os traços físicos de suas reações ao tempo, o processo particular das craquelures. [13]

Fig. 6. Pinacoscópio de Perez (fonte: Reprodução imagem Wikipedia).

 

Fig. 7. Pinacoscópio de Perez (fonte: Reprodução imagem Wikipedia).

 

Fig. 8. Uma das salas do laboratório do Louvre (fonte: Reprodução imagem Granger).

O Instituto Mainini, um laboratório médico de vanguarda

No final de sua palestra na Sorbonne, Perez anuncia ao público a disposição do casal Mainini para financiar um instituto de pinacologia no Museu do Louvre, para o qual ele doa seus clichês fotográficos [14]. “Uma ovação calorosa de todo o público, de pé, saudou esses dois generosos gestos”. A proposta dos dois argentinos é oportuna porque o Louvre estava, desde abril de 1930, numa fase de reflexão com a criação de uma comissão para estudar a organização de um laboratório para testes e identificação de obras de arte.

Em setembro de 1930, Perez e Mainini foram nomeados membros da comissão. Perez doa seus clichês, coleção que estava composta de 1900 fotografias e 1100 slides que constituirão a coleção da biblioteca de documentação científica dedicada à pintura. Mainini doa os aparelhos e equipamentos e financia todos os trabalhos de desenvolvimento do laboratório. Em 14 de outubro de 1931, a senhora Petecsche, subsecretária de Estado das Belas Artes, inaugurou o Instituto Mainini e os convidados descobriram as quatro salas do laboratório localizado na ala das Tulherias.

A primeira sala é a secretaria onde os estudos das obras são preparados e os resultados são arquivados. Anexado a ela, há um pequeno laboratório para ampliações fotográficas com uma máquina de mesa luminosa Opax Pearson. O segundo salão destina-se ao exame de trabalhos e à observação de “sintomas de uma patologia”, graças aos muitos dispositivos óticos adquiridos: ampliador mono e binoculares arranjados, Polack estereoscópico, e o Pinacoscópio de Perez. As pinturas sob luz rasante são fotografadas na terceira sala com luzes cirúrgicas. O uso desta luz significa uma transferência de competência para o estudo, da medicina às obras de Arte. Devido à presença de muitas fontes de luz em simultâneo, a nova luz de operação (que revolucionou o mundo da cirurgia no início do século XX) elimina as sombras vistas no paciente e permite uma melhor profundidade de campo durante o procedimento cirúrgico e gera uma luz fria que, no caso das obras de arte, respeita as cores. Essas qualidades são relevantes para o estudo das obras. A quarta sala do laboratório será dedicada à radiologia, possui um suporte de lâmpada ajustável, uma tela, uma lâmpada ultravioleta, vários filtros de cor para análise espectral e dispositivos de radiofotografia.

Foi necessário esperar mais de um ano, até 17 de dezembro de 1932, para que fosse decretada a promulgação que fixa as atribuições do Instituto Mainini. Entanto isso acontecia, o trabalho foi organizado de duas maneiras: por um lado, seguindo a pesquisa livre dos estudiosos, Perez estuda composição e análise cromática usando luz ultravioleta e o Dr. Polack verifica a teoria tricromática da fisiologia das cores. Os membros do laboratório, por sua vez, realizam um trabalho de especialização das coleções, o estudo do efeito de certos tratamentos (recobrimento, limpeza, retoque) e o desenvolvimento de um arquivo de trabalho. Finalmente, o Instituto auxilia os serviços públicos e alguns cientistas. O Instituto é estritamente científico e não está disponível para o público ou comerciantes. Sua atividade é realizada no domínio exclusivo de “ciência pura”, “para a arte pura”, para o benefício exclusivo da documentação do museu. Desta maneira o Instituto não se envolve nos assuntos comerciais.

A abordagem biológica e profilática de uma pintura

Os dois cientistas incorporam um novo olhar sobre a autenticação de obras, uma questão crucial. Mainini faz a pergunta da confiabilidade do olho e da visão para conferir a autenticidade de um assunto, que tem muitos campos de pesquisa (antropologia, psicologia, fisiologia e história da arte) e a subjetividade da abordagem. Mainini e Perez demonstram uma abordagem intelectual que é específica para eles, a do médico-biólogo que veem o pintor como sujeito e, em sua produção artística, a pintura, um documento “fisiológico”, em outros termos, o resultado de uma expressão gráfica tornada possível pela sinergia de três elementos: o cérebro, o olho e a mão do pintor. A pinacografia permite a análise de um dos três dessa “cadeia fisiológica”.

A aplicação das leis que regem os fenômenos da vida ao estudo da pintura implica o conhecimento daqueles que presidem ao movimento da mão que os executa, os da visão que discerne as formas, recolhe e analisa as cores. E enfim, os mais misteriosos e talvez insondáveis elementos que determinam, no jogo das forças cerebrais, o surgimento do pensamento, do talento e do gênio. [15]

A Pinacologia é uma ciência complementar para desvendar os mistérios do nascimento e da vida de uma obra de arte, para preservá-la e oferecê-la ao futuro. Em uma nota enviada ao subsecretário de Estado das Belas Artes, Verne resume o alcance e a originalidade dos estudos realizados no Instituto Mainini:

(…) A química e a física das cores, as leis que presidem suas misturas, a composição e transformação dos óleos, os secantes e outras substâncias aglutinantes, a percepção física das cores e as leis que as governam, os diferentes substratos do ponto de vista sua estrutura, sua resistência à ação tempo, a etiologia e a profilaxia das trincas. [16]

“Etiologia” e “profilaxia” são palavras que refletem esta aproximação particular dos dois doutores argentinos, que buscaram identificar e entender tanto as causas como os fatores de uma deterioração (doença) de trabalhos e estabelecer os meios para lutar contra a sua aparência, propagação e/ou agravamento.

O principal axioma de Perez é o estudo ao serviço de um conhecimento que ele conhece muito bem: “Na medicina, estuda-se a biologia, a histologia, a fisiologia do homem saudável antes de estudar a do homem doente. Antes de falar sobre pinturas falsas, vamos examinar as belas pinturas que são inegáveis”.

Assim, é tanto para autenticar o trabalho [o paciente] apenas para conhecer as etapas biológicas de seu nascimento, sua vida e, às vezes, sua morte. Todos os estudos realizados visam a constituição de um arquivo de trabalho, analogia ao prontuário pessoal, em que são registrados os antecedentes (ficha histórica e bibliográfica, ficha cardiconográfica), os exames diretos e as fotografias realizadas (ficha pinacográfica, ficha radiológica), análises (tabela cromática), o exame e observação dos sinais e sintomas de uma patologia (registro relativo ao seu estado de conservação, à topografia das lesões) e atos praticados no passado (retoques sofridos). De acordo com Perez: “É permissível para um pinacologista não ser um crítico de arte, um radiologista não é um médico, mas hoje não existe um médico, realmente digno do nome, capaz de assumir a responsabilidade de diagnosticar privando-se da ajuda dos novos métodos de exame.” [17].

A abordagem de Pérez e Mainini é colocar em perspectiva a abordagem profilática da medicina moderna argentina. De fato, a partir de meados do século XIX, o país é confrontado com a necessidade de controlar doenças epidêmicas e endêmicas que ressurgem com as diferentes ondas migratórias. Indubitavelmente, preocupados com a ameaça do comércio externo estável e da regulamentação urbana de novos residentes, “as autoridades estão respondendo aos desafios da saúde com uma abordagem higienista positivista, ambiental, urbana, educacional e profilática”. Treinados neste processo durante seus respectivos estágios na França ou na Argentina, Perez e Mainini fazem parte da nova geração de higienistas médicos, cuja estratégia combina profilaxia, medicina preventiva, antecipação e educação da sociedade civil.

O trabalho interdisciplinar é para eles o único caminho de abordagem de um assunto complexo e esta visão é determinante para o êxito do instituto que acompanha o museu até nossos dias. Apesar da colaboração necessária entre connoisseur-historiador e químico-físico-doutor, certas posições se opõem a uma ciência exata, tão pragmática, baseada só em fatos, temos a crítica de arte ligada à fatura, personalidade e estilo de cada artista. No livro “Bauer et Rinnebach”, de 1931, temos a seguinte apreciação:

Longe de nós o pensamento de condenar os métodos empregados até hoje no estudo das pinturas (…); é antes uma questão de indicar maneiras e meios, como as ciências exatas nos oferecem, que hoje se tornaram ciências auxiliares absolutamente indispensáveis neste campo e podem ser usadas para as finalidades particulares do estudo das pinturas. Além disso, no futuro, são essas ciências que, em primeiro lugar, fornecerão uma base exata, científica e incontestável para a apreciação crítica de pinturas e outros objetos a serem examinados; isso nos permitirá alcançar, através de uma colaboração inteligente e harmoniosa, um resultado verdadeiramente objetivo, livre de toda contestação, para alcançar, em uma palavra, o objetivo de toda pesquisa: a verdade. [18]

Além das incontestáveis vantagens, sempre há detratores da novidade. Foundoukidis, em 1930, é o primeiro a admitir que os métodos científicos aplicados ao exame e conservação de obras de arte trouxeram muitas controvérsias. De fato, a incursão da ciência nos museus de arte parece óbvia para alguns, ainda que tenha seus opositores.

A voz dos oponentes aparece no relatório do XII Congresso Internacional de História da Arte, realizado em Bruxelas, em 1931, que destaca que entre os 174 artigos, um grande número de artigos dedicados aos métodos de laboratório científico para o exame de obras de arte. Entre os ouvintes, um autor, desde o anonimato, ironiza sobre o que foi dado por Perez sem nomeá-lo:

Um especialista chegou a achar necessário inventar um termo sofisticado para designar toda essa pesquisa, Pinacologia. Vamos nos tranquilizar: emergiu dessas intervenções, nunca buscando a expertise na ciência irá substituir análise estilística. O polemista afirma que os meios do historiador ou crítico de arte são suficientes para revelar os erros cometidos sobre a autenticidade de obras e que o uso de métodos Cientistas não têm precedência sobre o resto. Os historiadores da arte não são os únicos que relutam, os curadores de museus têm uma visão negativa da incursão da ciência que exigiria uma expansão de seu perfil e de sua formação inicial. O arquivista denuncia um plano de recrutamento que exigiria ao futuro conservador títulos científicos, um expert da arte vai ter que saber a técnica da química e de raios-X, xilologia, pinacologia e assim por diante. [19]

A pinacologia caiu no esquecimento?

Em 26 de julho de 1935, a caminho para o Instituto Mainini, Fernando Perez é levado por um ataque cardíaco ao hospital, onde morre. A morte do Dr. Perez se reflete nos jornais regionais e nacionais da França, Europa e Argentina, em que saudamos “o iniciador do laboratório do Museu do Louvre”. Fernando Perez deixou bem claro os conceitos e definição da pinacologia:

Esse neologismo, que eu criei, responde a uma nova concepção do que é chamado de <crítica de arte>, um termo vago e impreciso que se aplica a múltiplas e variadas manifestações da atividade intelectual. A pinacologia abrange todo o conhecimento necessário para estudar e analisar trabalhos pictóricos e facilitar sua compreensão. [20]

O legado da ciência é um presente do novo século. Muitos museus de arte irão gradualmente equipar laboratórios e aparelhos de investigação com os cientistas à frente, entre outros: o químico Professor Rathgen e o primeiro laboratório do Museu Real de Berlim (1888); o químico inorgânico Dr. Scott, no Museu Britânico (1920); Forbes, criando o primeiro laboratório nos Estados Unidos, no Museu de Belas Artes de Boston (1928); e Dr. Fernando Perez e Carlos Mainini, no Louvre (1931).

Se Perez foi o pai da Pinacologia, a Dr. Garzia foi a mãe. Ela manteve para a sua memória um verdadeiro culto, publicando a sua tese na École du Louvre, com o apoio de seu diretor e tutor Dr. Perez. Pesquisadora da Universidade de Nápoles, em 1930, ela respirará a pinacologia na Itália e, mais particularmente, em seu laboratório em Nápoles. Na Argentina, Mainini promoveu a Pinacologie do seu amigo Perez para a comunidade cultural e artística com uma palestra no Museu Nacional de Belas Artes, em Buenos Aires (25 de outubro 1934), e da comunidade científica em uma conferência especial no Academia Nacional de Ciências de Buenos Aires (31 de outubro de 1938).

Mainini, nessa oportunidade, expressa: “Consciente da minha responsabilidade, a (…) convicção motiva-me a realizar um ato de justiça que deve ser devidamente apreciado por quem está preocupado com os valores culturais do nosso país”. Apesar desse desejo, o trabalho científico e filantrópico de Perez e Mainini permanece, hoje, pouco conhecido na França e ainda muitas vezes ignorado na Argentina.

Momentos acadêmicos 

Argentina, 1966: Cria-se a Escola Municipal de Avaliadores. No ano de 2003, a Universidade do Museu Social Argentino registra, ante o Ministério de Educação, a carreira técnica de avaliadores de arte, organizada por profissionais aposentados do Banco Municipal de Empréstimos, depois chamado de Banco Ciudad de Buenos Aires. Em 2008, registra-se a carreira como Bacharel em Peritagem e Avaliação de obras de arte.

Holanda, 2012: Realiza-se o primeiro congresso europeu de peritagem de obras de arte, chamado Authentication in Art.

Argentina, 2012: Cria-se o Grupo Interdisciplinar de Avaliação de Obras de Arte – GIVOA, sendo a primeira consultora integral de peritagem da região. Em 2016, realiza-se em Buenos Aires o primeiro congresso internacional de peritagem de arte da América Latina chamado ICAE, cuja segunda edição foi, em 2018, no Rio de Janeiro, Brasil.

Brasil, 2017: Inicia-se o curso de pós-graduação em Peritagem e Avaliação de Obras de Arte, regulamentado pelo MEC, na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro.

Fig. 9. International Conference Artwork Expertise – ICAE, 2016 (fonte: Foto divulgação Givoa).

Criação das coleções

O contexto das cidades latino-americanas no início do século XX era similar e, como exemplos, temos a cidade de Buenos Aires e a cidade do Rio de Janeiro, reconhecidas como grandes metrópoles em crescimento, das quais palácios comportavam muitas obras de arte para serem colocadas à disposição da nova burguesia econômica. Na Europa, já estava funcionando, com muita perfeição, uma “fábrica de obras de grandes mestres” e no jornal La Nación, de Buenos Aires, de 1888, já se retratava com ironia esta situação:

Aconselhamos imediatamente e com toda boa intenção aos expositores e proprietários destas pinturas, que os levem no primeiro vapor à Europa, que não os queimem aqui, já que lá um Rivera, um Murillo, um Van Dyck lhes será pago muitas vezes com libras esterlinas. (…) Por que vender aqui a 500 pesos o que lá vale um milhão e meio de francos? (…). [21]

Esta situação deu origem a maioria das nossas coleções públicas e, um século depois, o estudo dessas peças ainda é inexistente, apresentando um enorme desafio na hora de iniciar uma pesquisa baseada em obras de caráter “duvidoso”, presentes nos acervos de nossas instituições.

Para ter uma dimensão do problema, devemos considerar a composição do mercado de arte internacional, que está dividido em duas grandes áreas:

Mercado primário: é aquele que trabalha com obras vindas direto do artista. Exemplo, o próprio artista visual, a Galeria que o representa etc.

Mercado secundário: é quem comercializa obras que já saíram de Galerias do mercado primário, ou quem as conserva. O mercado secundário é quando uma obra de arte já foi comercializada mais de uma vez.

A área de intervenção do perito normalmente é sobre o mercado secundário. As vendas globais de arte alcançaram um valor estimado de US$ 67,4 bilhões em 2018. [22]

Peritagem de obras de arte e a intervenção tecnológica. O que é uma perícia?

Falando das obras de arte, é o conjunto de técnicas e habilidades que permitem definir se uma obra de arte é autêntica ou não. Também tem como objetivo determinar o estado de conservação geral e seu valor do mercado. Há diferentes métodos para se verificar e determinar autenticidade de uma pintura.

O conjunto dos resultados permite ao perito identificar e reconhecer os fatos que possuem relação com a produção do artista que ostenta. As faltas destes elementos permitirão determinar a sua falsidade ou falta de mérito. Uma peça de arte deve ser avaliada interdisciplinarmente e depois deve-se estabelecer os procedimentos adequados para cada caso. Normalmente, o processo de pesquisa tem esta estrutura. [23]

Fig. 10. Processo de pesquisa registrado (fonte: Givoa Art Consulting).

 

Fig. 11. Principais diferenças entre Connoisseur e perito acadêmico (fonte: Gustavo Perino).

Categorias das obras (definidas por convenção)

Autêntica: Uma obra é autêntica quando não temos dúvidas sobre sua autoria.

Atribuída: Quando muitos elementos da pesquisa confirmam a possibilidade de autoria, mas não temos o peso suficiente para confirmar a sua autoria.

Cópia: Trata-se de uma reprodução que imita o material e a técnica de uma obra de arte original. Este ato não necessariamente tem a intenção de engano.

Imitação: São os casos em que se imita uma obra original, tentando copiá-la, mas não é igual, entram dentro deste grupo as obras que são feitas com inspiração na obra original.

Réplica: Trata-se de uma cópia de uma obra original que é igual em medidas, técnica e características. Usualmente estão identificadas como “replicas”.

Plágio ou Falsificação: Trata-se de uma cópia feita com a intenção de enganar.

Obra falsa: São as obras que tentam simular uma identidade falsa, passar como se fosse de um artista famoso, mas foi feita por outra pessoa (obra nova), usualmente ingressam dentro deste grupo as peças que têm assinaturas falsas.

Comportamento do cliente & necessidades e desafios do cliente:

  • O cliente tem uma obra e deseja vendê-la;
  • O mercado pede uma documentação que muitas vezes o cliente não tem;
  • O custo de análises e perícia pode superar o valor da peça;
  • O tratamento que recebe o cliente por não pertencer ao “círculo” do mercado promove que ele tome decisões erradas;
  • O mercado não tem uniformidade de critérios e a legislação é muito fraca.

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Necessidades e desafios do perito no contexto interdisciplinar:

  • O perito deve trabalhar com uma equipe e desenvolver uma pesquisa;
  • Os honorários profissionais e os custos do laboratório impossibilitam muitos orçamentos;
  • Concorrência atual com o amador de arte. Um conhecedor amigo do mercado ou um profissional acadêmico imparcial;
  • As instituições ainda não reconhecem a necessidade de fazer perícia e avaliar obras de um acervo;
  • O poder judiciário tem pouco conhecimento da existência de profissionais especialistas.

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A intervenção tecnológica data de 1931, contudo, ainda hoje a sua utilização diária está longe de cobrir as necessidades. Uma grande parte do mercado segue uma escola obsoleta, resiste aos conhecimentos da perícia porque ela procura profundamente a verdade e qualquer mudança na atribuição de uma obra representa um problema econômico potencial. A identificação de um pigmento ou suporte não constitui uma peritagem de arte, os materiais podem ser compatíveis. Por isso resulta indispensável que um trabalho interdisciplinar e sério de verificação técnico-científica seja realizado por um profissional acadêmico que responda com responsabilidade profissional e legal pelo laudo pericial que ele conclui e assina.


A 1ª parte deste artigo, que abrange o período entre meados do século XIII e início do século XX, está disponível em: Revista Restauro, v.4, n.8 (2020).


Notas

[1] PÉQUIGNOT, Amandine. A pinacologie de Fernando Perez et lInstitut Mainini. Paris: Cahiers des Amériques Latines, n° 83, pp. 133-150, 1985. Disponível em:

<https://www.researchgate.net/publication/314132941_La_pinacologie_de_Fernando_Perez_et_l’Institut_Mainini_quand_la_science_ de_la_conservation_s’implante_au_musee>. Acesso em: 2 out. 2019.

[2] Revue Archéologique. Paris: Presses Universitaires de France, n° 35, p. 149, 1932. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/i23902905>. Acesso em: 21 fev. 2021.

[3] A Geração de 80 chamou-se a elite governante na Argentina de 1880 a 1916. Membros da oligarquia das províncias e da capital do país organizaram um novo projeto de nação. PÉQUIGNOT, op. cit.

[4] O que é esta misteriosa Mona Lisa? Editorial do Louvre, n° 4068, p. 20, 1926.

[5] PEREZ, Fernando. La Pinacoradiologie. Bulletin de l’art ancien et moderne, n° 782. pp. 405-412, 1931.

[6] Uma palestra do Sr. Fernando Pérez. A Revista América Latina, p. 191, 1930.

[7] BOYER, Jacques. Curiosas revelações da perícia radiográfica das pinturas. La Nature, 49, n° 2439-2464, p. 86. 1921.

[8] GUIFFREY, Jean. A radiografia das pinturas. A revista de arte antiga e moderna, n° 39, pp. 124-131. 1921.

[9] Arquivo do Escritório Internacional dos Museus (OIM), VI-2, Arquivos da Unesco, 1930.

[10] Idem, p. 21.

[11] Americanos na Europa. The Latin American Review, p. 191, ago. 1930.

[12] PEREZ, op. cit., p. 406

[13] Idem, p. 411

[14] The Latin American Review, op. cit.

[15] MAININI, Carlos. Biologia y Pintura: la obra científica-artística de Fernando Pérez. Boletín de la Academia Nacional de Buenos Aires, p. 597, out. 1938

[16] Arquivos dos Museus Nacionais da França. Paris: Departamento de Pinturas do Museu do Louvre Dossier, série VOl 2 p. 161, 1933.

[17] PEREZ, op. cit., p. 406.

[18] BAUER, Victor; RINNEBACH, Helmuth. Exame radiográfico das pinturas: sua importância e limites, vol. 13-14, n° 1-2, p. 43, 1931.

[19] ESPEZEL, Pierre d’. Les Cahiers de la République des lettres, des sciences et des arts, n° 13, pp. 316-317, 1931.

[20] CATALANO, María Ida. Junções críticas. Museus, exposições, restauração e artísticas na Itália (1930-1940) Editorial Prin, p. 199, 2008.

[21] BALDASARRE, María Isabel. Los dueños del Arte. Buenos Aires: Edhasa, 2006, p. 129.

[22] UBS Artmarket report, 2018. Disponível em: <https://www.ubs.com/global/en/our-firm/art/2019/art-basel.html>. Acesso em: jan. 2021.

[23] PERINO, Gustavo. Processo de pesquisa registrado pela Givoa Art Consulting (Argentina-Brasil).

 


Gustavo Perino

Natural da Argentina. Bacharel em Peritagem e Avaliação de Obras de Arte pela Universidad del Museo Social Argentino. Atualmente professor universitário e coordenador de pós-graduação em Peritagem de Obras de Arte pela Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. Ativa participação em eventos educativos ministrando cursos e seminários em diversas instituições públicas e privadas. Membro do ICOM Brasil e Perito judicial da Ordem dos Peritos do Brasil – OPERB e IPJUD. Membro do Instituto de Avaliação e Autenticação de obras de Arte – i3A. É fundador e diretor da Givoa Art Consulting. Criador e organizador do International Conference Artwork Expertise – ICAE (Congresso internacional de Peritagem de Obras de Arte) nas suas duas edições: Buenos Aires 2016, Rio de Janeiro 2018. Participou de mais de 60 projetos de peritagem de arte em diversos países. E-mail: gustavo.perino@givoa.com.ar


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