A importância do levantamento DSM e dos ensaios laboratoriais no patrimônio: a Capela da Vila Maria Zélia

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I Agnês Catarina Vayda Cruz, Jessica Aparecida de Paula, Julia Soares Santana, Lara de Oliveira Návia, Thaís Souza e Vinicius Martins de Oliveira I

As vilas operárias representam um importante marco na memória da urbanização na cidade de São Paulo, visto que surgiram como alternativa para oferta de moradia aos trabalhadores, garantindo bem-estar e lazer aos mesmos em áreas próximas às fábricas em um contexto de aumento de atividade industrial na capital, ao mesmo tempo em que a população sofria com déficit habitacional. A Vila Maria Zélia é uma das primeiras vilas construídas e uma das poucas que ainda persistem na cidade, apesar de apresentar inúmeros sinais de degradação em suas construções.

Construída por Jorge Street e fundada em 1917, está localizada no Belenzinho, distrito do Belém, em São Paulo, representando um marco da memória da urbanização da cidade. Durante o processo de construção da vila, Street passou por problemas financeiros que acabaram por afetar a conclusão da obra, porém, ainda assim, a vila foi fundada em 1917 e comandada por Street até 1923 [1]. Um ano depois, a vila e a fábrica foram vendidas para os Scarpa, sendo renomeada de Vila Scarpa. Em 1929, tornou-se posse dos Guinle e voltou a ser nomeada Vila Maria Zélia. Em 1939, foi vendida para a empresa Goodyear, responsável por demolir parte da vila – a creche, parte do coreto e 18 casas compreendidas nas áreas afetadas pela demolição – para incorporá-la à indústria. Apenas em 1969 os moradores puderam realizar a compra de suas casas para deixar de pagar aluguel. Uma década depois, em 1979, a vila foi transformada em logradouro público. Atualmente, apresenta sinais de degradação e diversas manifestações patológicas em suas construções originais – armazéns, escolas e capela.

A Vila Maria Zélia presenciou várias gerações de operários, migrantes e imigrantes, tanto de seus moradores como de visitantes que, ao longo de seus anos de existência, são testemunhas concretas da história da Vila e de toda a cidade. [2]

A capela, construída pelo arquiteto francês Paul Pedarrieux, apresenta elementos característicos do estilo eclético e traços neogóticos. Seu principal revestimento é a “pedra fingida” ou “argamassa raspada”, conhecida por ser um revestimento argamassado com caráter decorativo, que se tornou muito popular nas construções de São Paulo no século XX com o desenvolvimento do Cimento Portland para substituição da cal [3]. A variação na sua composição, aplicação e tratamento final permitem a criação de diferentes texturas e colorações.

A manutenção e o restauro dessas construções se mostram de extrema importância como uma forma de manter a memória da cidade viva. Para isso, foi realizado um projeto de Iniciação Científica pelo Instituto Federal de São Paulo, em parceria com o escritório Boa SP Arquitetos, tendo a capela da vila como objeto de estudo.

A ideia do projeto de pesquisa era criar um manual de conservação para a Capela São José da Vila Maria Zélia, possibilitando a realização de futuros projetos de restauro na capela. Para isso, a pesquisa foi dividida em quatro etapas principais para a sua conclusão. São elas: pesquisa de fundamentação teórica sobre as vilas operárias em São Paulo, especificamente a Vila Maria Zélia e a Capela em estudo; levantamento das patologias da igreja com visitas ao local e produção do mapa de danos; análise e estudo laboratorial da argamassa do revestimento da capela; e por fim, a elaboração do manual de conservação da igreja. Devido à pandemia de COVID-19, apenas a etapa de levantamento e laboratório foram realizadas presencialmente, cumprindo as medidas de segurança necessárias para a realização do projeto. 

A etapa inicial da pesquisa consistiu em pesquisas teóricas sobre as vilas operárias em geral, especificamente sobre a Vila Maria Zélia, assim como fundamentação teórica sobre o tipo de argamassa utilizado na construção da capela. A segunda etapa contemplou o levantamento da capela e foi dividida em duas partes, sendo elas o levantamento direto, em que foi realizada a medição direta dos elementos da capela, e o levantamento indireto, com o uso de drones e câmeras fotográficas para realização da fotogrametria. 

O levantamento direto foi realizado presencialmente, cumprindo os protocolos de segurança devido à pandemia de COVID-19. Para sua realização, a equipe utilizou instrumentos de medição, com trena de fita, trena laser, régua tipo metro de pedreiro e Contour Gauge. Para a anotação dos dados coletados, o grupo realizou eidotipos – desenhos esquemáticos das fachadas e elementos da construção que permitem uma breve representação dos elementos medidos – de todas as fachadas e elementos analisados, como forma de registrar e documentar o processo de levantamento. Com essa finalidade, o grupo também contou com instrumentos de desenho como prancheta, folha sulfite, lápis e caneta, para possibilitar a realização dos registros.

Fig. 1. Realização do levantamento direto e produção de eidotipos (fonte: foto dos autores, 2021).

O levantamento indireto contou com uma tomada de fotos terrestres (com uso de câmera fotográfica) e outra tomada de fotos aéreas (com auxílio de drone) que foram utilizadas para formação de um modelo tridimensional da construção estudada através do DSM (Dense Stereo Matching). As fotos, realizadas presencialmente, contam com diversos ângulos de cada elemento registrado da capela e foram aplicadas no software Agiosoft, em que o processamento de fotos é realizados a partir da identificação de pixels homólogos para a formação de uma nuvem de pontos, que resultou em um modelo de malha texturizada de alta resolução, possibilitando a extração de ortofotos, utilizados para a criação do decalque das fachadas. Para esse processo ser realizado, as ortofotos foram colocadas no programa Autocad e escalonadas a partir dos dados obtidos no levantamento direto. Assim, foi possível realizar o contorno dos elementos da fachada para criar seu decalque. Para a criação do mapa de danos, o mesmo processo de contorno foi realizado, porém, sendo mapeadas as patologias encontradas na fachada.

Fig. 2. Processo de formação do modelo 3D (fonte: acervo dos autores, 2021).


Fig. 3. Processo de decalque da fachada a partir da ortofoto (fonte: acervo dos autores, 2021).


Fig. 4. Mapa de danos da fachada (fonte: acervo dos autores, 2021).

A etapa de laboratório contou com quatro principais processos, sendo eles: a coleta de amostras, ensaio simples de argamassa, análise simples de argamassa e determinação do traço da argamassa a partir dos resultados obtidos. O primeiro processo contou com a extração de pedaços de argamassa de diferentes pontos da capela, totalizando cinco amostras da construção a serem analisadas, nomeadas de: CVMZ 01, CVMZ 02, CVMZ 03, CVMZ 04 e CVMZ 05.

Fig. 5. Áreas de retirada das amostras (fonte: acervo dos autores, 2021).

O segundo processo, de ensaio simples da argamassa, contou principalmente com uma inspeção visual e física das amostras, em que se observou a coloração, peso, presença de fungos ou elementos vegetais, umidade, porosidade e composição. Parte da amostra foi separada para ser colocada em uma estufa a 110°C por 40 a 45 minutos. Todas as informações foram registradas em fichas padronizadas, separadas por amostra. A continuação desse processo contou com a avaliação de desagregação, em que se observou os agregados e outros elementos presentes em parte da amostra que foi desagregada, utilizando-se de uma luz UV para auxiliar nessa visualização de elementos. Para finalizar o processo, separou-se um pedaço da amostra para a realização do ensaio de capilaridade, com aplicação de gotas de água destilada para avaliação de porosidade e permeabilidade, e do teste com ácido clorídrico, em que se realizou um ataque ácido com conta gotas nas amostras para avaliar a presença de elementos a partir de sua coloração e efervescência.

Fig. 6. Realização do ensaio simples de argamassa (fonte; acervo dos autores, 2021).

O processo de análise simples da argamassa inicia-se com uma observação da composição da argamassa a partir de ataque ácido. Para isso, foi separada uma subamostra de 25g a ser desagregada e colocada dentro de um béquer. Nele, foi despejado um frasco com ácido clorídrico. Tal processo permite a avaliação da presença de cal e cimento a partir da coloração, efervescência e liberação de calor observadas na reação. Após diminuição da efervescência, utilizou-se um pedaço de filtro de aproximadamente 4x4cm, pesado previamente, para retenção de finos suspensos na amostra do béquer. Os agregados são separados com uma peneira enquanto o conteúdo do recipiente é despejado em uma pia e descartado após ser neutralizado com água. Esses grãos foram lavados e separados para secagem na estufa juntamente com o filtro.

Fig. 7. Realização do ataque ácido (fonte: acervo dos autores, 2021).

Em seguida, foi realizado o processo de decantação, com uma subamostra de 100g desagregada. Inicialmente, a subamostra foi colocada em um béquer com 200ml de água mineral. O conteúdo do recipiente foi agitado e despejado em um outro béquer, passando por uma peneira de 75µm para separação dos finos. O processo foi repetido até que a água do primeiro béquer ficasse menos turva – para isso, a água era agitada e avaliava-se o tempo demorado para os elementos se assentarem no fundo do recipiente, tendo como base uma média de 30 segundos como o ideal. Os béqueres contendo os finos foram separados para decantação por sete dias, enquanto os agregados remanescentes no primeiro béquer vão para secagem. Após os dias de decantação, os béqueres são aquecidos para evaporação da água e coleta dos finos depositados no fundo do recipiente. Para isso, foi necessária a raspagem dos béqueres para evitar maiores perdas de amostras.

Fig. 8. Processo de decantação, secagem de agregados e raspagem dos béqueres (fonte: acervo dos autores, 2021).

A partir dos agregados coletados na decantação, realizou-se a peneiragem. Esse processo contou com a separação de duas subamostras de cada amostra, nomeadas de M1 e M2, com 40g cada. Cada subamostra é submetida a uma sequência de peneiras que separam os agregados por tamanho. Para o processo, foram utilizadas as peneiras de 2.36, 1.18, 600, 500, 150, 75 e um recipiente final para coletar os finos remanescentes na amostra. As peneiras foram colocadas uma em cima da outra, da maior para a menor. Para garantir a separação dos agregados, agitou-se o arranjo por volta de um minuto e depois pesou-se o conteúdo retido em cada peneira. Os agregados separados foram dispostos lado a lado em uma folha sulfite para análise de tamanho médio dos grãos com o auxílio do paquímetro eletrônico. 

Fig. 9. Valores obtidos e grãos separados após peneiragem (fonte: acervo dos autores, 2021).

O processo final do laboratório trouxe a análise das informações para determinação de um traço aproximado da argamassa utilizada na construção. Os valores obtidos na lavagem de amostras permitem a determinação da porcentagem de material fino na amostra. A partir da média dos valores obtidos na peneiragem, calcula-se o módulo de finura de cada amostra. O cruzamento das informações obtidas em cada teste permite a determinação de valores aproximados da proporção de finos, aglutinantes e agregados presentes nas amostras.

Fig. 10. Análise da proporção de finos, aglutinantes e agregados para determinação aproximada da argamassa (fonte: acervo dos autores, 2021).

Com os processos da pesquisa, foi possível realizar as etapas de levantamento e análise laboratorial para a elaboração do mapa de danos e determinação do traço de argamassa. Com isso, observa-se as principais patologias encontradas: o destacamento de argamassa e a presença de pátina biológica, ambas advindas da exposição constante a intempéries e a falta de acompanhamento técnico adequado para manutenção junto à Capela.

Conclui-se que toda e qualquer intervenção deve estar pautada em estudos técnicos e ensaios laboratoriais. Por fim, inferimos que a aproximação entre a pesquisa acadêmica e a sociedade é necessária na proteção dos bens tombados.


Notas

[1] TEIXEIRA, Palmira Petratti. Jorge Street e a sistematização do controle da mão-de-obra: a vila operária Maria Zélia. A Fábrica do Sonho: trajetória do industrial Jorge Street. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. pp. 69-77.

[2] ALMEIDA, Rosemari de; FRANGELLO, Ana Luiza. 100 anos Vila Maria Zélia. Associação Cultural Vila Maria Zélia, São Paulo, 2018.

[3] CUNHA, Fernanda Craveiro. Pedra fingida: protagonista invisível do Centro de São Paulo. São Paulo: GAPS Editora Independente, 2017. 


Referências

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Thais Cristina Silva de Souza

Doutora e Mestre na área Habitat, pós-graduada em restauração de patrimônio histórico, líder do grupo NEPIM (Núcleo de Estudos do Patrimônio Imaterial e Material), professora no Instituto Federal de São Paulo. E-mail: thais.souza@ifsp.edu.br

Lara de Oliveira Návia

Graduanda em Arquitetura e Urbanismo no Instituto Federal de São Paulo. E-mail: lara.navia@aluno.ifsp.edu.br

Agnês Catarina Vayda Cruz

Graduanda em Engenharia Civil no Instituto Federal de São Paulo. E-mail: agnes.cruz@aluno.ifsp.edu.br

Julia Soares Santana

Graduanda em Arquitetura e Urbanismo no Instituto Federal de São Paulo. E-mail: julia.santana@aluno.ifsp.edu.br

Jessica Aparecida de Paula

Arquiteta na empresa BOA SP Arquitetos, discente no mestrado profissional em conservação e restauração de monumentos e núcleos históricos – MP-CECRE-UFBA. E-mail: jessica.depaula.arq@gmail.com

Vinicius Martins de Oliveira

Arquiteto na empresa BOA SP Arquitetos, mestre em Preservação do Patrimônio Cultural (IPHAN) e doutorando em Arquitetura e Urbanismo, linha de concentração Conservação e Restauro. E-mail: vmo.arquiteto@gmail.com


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