Uma incompleta e vaga lembrança: a reconstrução “evocativa” das residências dos Mestres da Bauhaus em Dessau

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| Betânia Brendle |

A restauração do Patrimônio Moderno

A intervenção no patrimônio Moderno tem sido orientada para a reconstrução, a repristinação e/ou o refazimento que visa reproduzir fielmente as condições de um estado idealizado de arquiteturas mutiladas ou desaparecidas. Como revela Kühl,

No caso da arquitetura moderna, muitos desqualificam sumariamente os preceitos teóricos da restauração, entendendo-os como impossíveis de serem aplicados à arquitetura moderna; no entanto, isso não é provado de modo convincente. Invocam-se argumentos tais como a facilidade de reproduzir-se os elementos, a existência de projetos pormenorizados ou a proximidade do sistema projetual (ou ainda a presença do autor do projeto), o experimentalismo construtivo que leva a processos de degradação, cujo tratamento não é conhecido em profundidade, a obsolescência funcional, a facilidade de utilizar técnicas semelhantes ou “melhores” e a proximidade temporal, que dificulta o reconhecimento da obra por seu valor documental, como razões para uma tendência difusa a refazimentos, completamentos e volta a um suposto estado original. (Grifos da autora). [1]

O princípio, superado há mais de um século, da restauração da imagem e não da matéria e rejeitado por Cesare Brandi em sua Teoria del Restauro (primeira publicação em 1963), tem constituído o eixo condutor da reconstrução fiel e exata da Arquitetura Moderna, que via de regra, não admite a falta da integridade física e da perfeição, afastando-se do campo teórico e dos preceitos do restauro para reviver o edifício mesmo através de uma cópia, réplica ou simulacro.  “Un restauro a parte?” como questiona Claudio Varagnoli [2], para quem o mito da reprodutibilidade da arquitetura moderna (réplica) está apoiado na certeza do projeto, considerado como único portador dos valores da obra. Trazer de volta das ruínas as obras-primas do Movimento Moderno para o seu estado conceitual perdido tem sido, salvo raras exceções (Edifício Pirelli, Giò Ponti e Pier Luigi Nervi, Milão) [3] [4], a prática projetual adotada na contemporaneidade, a exemplo da intervenção emblemática realizada por Jan Hubert Henket e Wessel de Jonge no Zonnestraal Sanatorium, Hilversum, Holanda (Johannes Duiker and Bernard Bijvoet, 1931) [5].

Como argumenta Simona Salvo [6], quando o DOCOMOMO é fundado por um grupo de arquitetos da Technische Universiteit Delft, o pressuposto da conservação da Arquitetura Moderna “não é o respeito pela autenticidade material, mas, antes, a perpetuação da imagem primitiva, íntegra, perfeita e reconfortante”. A prática atual das intervenções no patrimônio construído moderno está orientada mais para refazer do que para conservar, para reconstruir mimeticamente do que restaurar criticamente, e essa postura tem destruído importantes extratos históricos e artísticos, matéria e materiais autênticos e causado a consequente perda de registros, histórias e memórias do Movimento Moderno.

A maior parte das intervenções feitas nas obras do Movimento Moderno declara ter intenções filológicas apenas por princípio, enquanto, de fato, se concretiza através de operações de pura repristinação, voltadas a recuperar a imagem primeira, como difundida através das revistas daquele tempo, mesmo a custo de anular a autenticidade material da obra e de cancelar, desse modo, seu valor e os traços de sua incipiente historicidade [7].

A criteriosa restauração do Edifício Pirelli demonstrou uma inovadora abordagem metodológica revelando que “a problemática do restauro de uma obra do século 20 não é tão diferente daquela que se encontra operando nas obras antigas, desde que se enfrente a sua complexidade com o mesmo rigor teórico, metodológico e científico” [8]. Beatriz Kühl argumenta que a intervenção no Edifício Pirelli demonstra,

[…] que é possível restaurar uma obra moderna. Restaurar de fato; restaurar segundo preceitos teóricos que, no caso específico, calcaram-se em uma fundamentada releitura para as circunstâncias atuais e para aquele edifício em particular, da sólida tradição italiana no campo, retomando temas do restauro crítico e também da teoria de Cesare Brandi. (Grifo da autora). [9]

Mais recentemente, o DOCOMOMO da Alemanha se posicionou contrário à reconstrução [fiel] das edificações destruídas no conjunto das residências dos Mestres da Bauhaus em Dessau, considerando-a uma falsificação e redução da história e “uma maneira inapropriada de intervir no patrimônio Moderno” e ressaltou a contribuição do design arquitetônico contemporâneo que respeite as características especiais do sítio e se diferencie dos edifícios originais a partir de princípios de legibilidade e distinguibilidade [10].

Meisterhäuser Bauhaus-Dessau: construção, destruição e reconstrução

A Bauhaus e as residências de seus Mestres em Dessau projetadas por Walter Gropius em 1926 figuram entre os mais importantes e celebrados ícones do Movimento Moderno. Um legado de 90 anos iniciado com a visão moderna e experimental de Gropius e sua incessante procura por novos conceitos, materiais e técnicas construtivas que constituíram o “manifesto das ideias da Bauhaus”. Construídas em paralelo ao edifício da Bauhaus, o projeto das residências dos Mestres foi desenvolvido no escritório particular de Gropius em Dessau, onde trabalhava o jovem Ernst Neufert e Carl Fieger. O conjunto constituído pela Direktoren-Haus (residência de Walter Gropius, e após 1928, de Hannes Meyer e Mies van der Rohe) e mais três habitações conjugadas para os professores Georg Muche/Oskar Schlemmer, Wassily Kandinsky/Paul Klee e László Moholy-Nagy/Lyonel Feininger, foi construído em menos de um ano. Não se tratava apenas de uma nova linguagem formal arquitetônica do Neues Bauen, mas, principalmente, da oportunidade de testar os avanços tecnológicos que introduziam no mercado inovações construtivas, novos materiais e novos métodos de construir. A Bauhaus-Meisterhäuser Dessau tornou-se um laboratório tecnológico da construção e do morar modernos testando técnicas e materiais até então pouco utilizados como, entre outros, o telhado plano isolado com placas de asfalto, a mais leve e econômica alvenaria de Jurko-Stein, composta de restos de material proveniente do processamento de minérios, areia e cimento em substituição à pesada alvenaria tradicional de tijolos, do piso Triolin como alternativa ao Linoleum, das esquadrias com perfis de ferro e vidros de cristal polido que proporcionavam mais claridade e brilho, além do sistema de aquecimento central, água quente encanada, eletro-domésticos e luminárias elétricas (consideradas um luxo na época) de design desenvolvido por Marianne Brandt e Hans Przyrembel para as firmas Osram e AEG em Berlin [11].

Gropius viveu e trabalhou em Dessau por dois anos e nesse tempo sua residência funcionou como um veículo de propaganda das ideias do Neues Bauen através de visitas abertas ao público e a produção de um filme-documentário para divulgar e popularizar o construir e viver moderno. Entre outros, visitaram a Haus Gropius personalidades como Amadée Ozenfant, Sigfried Giedion, Béla Bartók, Marcel Duchamp, El Lissitzky, Bruno e Max Taut, Naum Gabo e Hendrik Berlage. O conjunto – Bauhaus Meisterhäuser – vai demonstrar uma nova maneira de morar, especialmente a Haus Gropius com detalhes inovadores como armários embutidos, móveis desmontáveis e uma cozinha com pia e móveis de aço projetados por Marcel Breuer.  Às críticas sobre as dispendiosas instalações internas, Gropius responde: “o que hoje parece luxo, amanhã vai se tornar normal”.

Em 1933, a Escola, que formou gerações de designers que apostaram no sonho visionário moderno é oficialmente fechada pelos nazistas, e as residências de seus Mestres, vendidas em 1939 à Junkers-Werke (Fábrica de aviões militares) com a seguinte Resolução do Conselho Municipal: “essas casas… devem ser reformadas para que essas formas estranhas desapareçam da paisagem urbana da cidade” [12]. Associadas diretamente com a fabricação de aviões de guerra, as residências dos Mestres tornaram-se alvo do bombardeio aliado em Dessau que teve mais de 80% da cidade destruída em março de 1945. O conjunto foi bastante danificado: da casa de Gropius somente o porão sobreviveu e a de László Moholy-Nagy, conjugada com a de Feininger, desapareceu totalmente. Nos anos seguintes, o legado da Bauhaus em Dessau vai enfrentar o desprezo e a ignorância do governo da DDR (Deutsche Demokratische Republik) onde por décadas não houve lugar para o Moderno. As residências projetadas por Gropius como protótipos do viver moderno são arbitrariamente reformadas por seus ocupantes que a descaracterizam profundamente diante de autoridades omissas e silenciosas. Num processo até hoje incompreensível, em 1956 uma anômala residência com telhado de empenas, a Haus Emmer (Fig.1), foi construída sobre os escombros da casa de Gropius inserindo um elemento bizarro que rompeu totalmente a unidade e integridade do conjunto comprometendo suas qualidades tipológicas, espaciais e paisagísticas. Negligenciadas por décadas, somente em 1974, a Bauhaus e as Meisterhäuser são incluídas na lista de monumentos da DDR, e em 1996, passam a integrar a lista do Patrimônio Cultural da Humanidade da UNESCO.

Fig.1. Haus Emmer, inserção bizarra sobre o porão da Haus Gropius, único elemento remanescente da estrutura original (fonte: foto de Betânia Brendle na exposição da Haus Gropius, Dessau, 2015). Para melhor visualização da Haus Emmer, consultar este link.

Após a unificação da Alemanha, as autoridades governamentais de Dessau, inclusive os órgãos de preservação cultural, começam a se interessar pelo legado da Bauhaus, entretanto, com uma clara manipulação de sua notoriedade no cenário internacional, voltada para a especulação turística numa cidade que, sem a Bauhaus, jamais faria parte de nenhum roteiro de viagem nem atrairia milhares de visitantes de todo o mundo.  A construção de um cenário turístico, um parque temático com tons da Disney (sic), constitui a proposta defendida pelas instâncias oficiais – a reconstrução estilística do conjunto. Nas residências de Oskar Schlemmer/Georg Muche (Figs. 2, 3 e 4) e Kandinsky-Klee (Fig.5), a intervenção dita “restaurativa” realizada entre 1994-2002 reproduz com refazimentos e completamentos a imagem original, sem perdas, fissuras e danos materiais. O resultado? Réplicas forjadas sem alma, sem as marcas da passagem do tempo, sem história e sem base teórica. Aleatoriamente foram ignorados valores tão caros aos modernos como o espírito do tempo, verdade construtiva e autenticidade. Nem mesmo princípios da Carta de Atenas (1933, Art.70), foram considerados: “[…] Misturando o “falso” ao “verdadeiro” longe de se alcançar uma impressão de conjunto e de dar a sensação de pureza de estilo, chega-se somente a uma reconstituição fictícia, capaz de desacreditar os testemunhos autênticos, que mais se tinha empenho em preservar.”

Fig. 2a / 2b. Meisterhaus Schlemmer/Muche antes e depois da “restauração” (fonte: cortesia Brenne-Architekten Berlin) http://www.brenne-architekten.de/meisterhaus-muche-schlemmer/

Fig. 3a / 3b. Meisterhaus Schlemmer/Muche antes e depois da “restauração” (fonte: cortesia Brenne-Architekten Berlin) http://www.brenne-architekten.de/meisterhaus-muche-schlemmer/

Fig. 4a / 4b / 4c / 4d. Meisterhaus Schlemmer/Muche (fonte: fotos de Betânia Brendle, 2015).

Fig. 5a / 5b. Meisterhaus Kandinsky/Klee : “restauração” do estado conceitual perdido através do refazimento estilístico. (fonte: fotos de Betânia Brendle, 2015).

A consolidação de um cenário idealizado para fins turísticos foi viabilizada através da manipulação do patrimônio arquitetônico moderno que resultou em outro processo de destruição, dessa vez, disfarçada de ação cultural. As palavras de Walter Gropius não fizeram eco: “Não tem mais sentido imitar esta ou aquela atmosfera de um estilo passado. Novos edifícios devem ser descobertos, não imitados” [13]. As Meisterhäuser Oskar Schlemmer/Georg Muche e Kandinsky-Klee são refazimentos do patrimônio moderno voltados para a reinstalação da imagem, postura de intervenção na obra de arte contestada por Cesare Brandi em sua Teoria, seja ela pintura, escultura, arquitetura e cidade, antiga ou recente: 

O adágio nostálgico “como era, onde estava” é a negação do próprio princípio da restauração, é uma ofensa à história e um ultraje à Estética, colocando o tempo como reversível e a obra de arte como reproduzível à vontade [14].

Essas “reconstruções” geraram um longo processo de inflamadas discussões de iniciativa de vários profissionais na Alemanha que defenderam uma intervenção crítica para a preservação dos importantes testemunhos do legado da Bauhaus ainda remanescentes (a Haus Gropius e a Haus Moholy-Nagy/Feininger) e alternativas conceituais e projetuais para evitar a continuação do processo de reconstrução de sua aparência original que implicaria na eliminação de quase todos os traços da história do conjunto.  A Bauhaus lança vários projetos: “Umbauhaus – Aktualisierung der Moderne”, “Rekonstruktion der Moderne”, “Aktualisierung der Moderne” (2003/04) e o Bauhaus-Award (2005/06). No Workshop «Aktualisierung der Moderne» foram discutidas alternativas de abordagens para a Haus Emmer e a Gropius Haus: “Que papel desempenha as ideias do Movimento Moderno na arquitetura hoje? Qual nossa posição sobre o tema reconstrução? O que se pode alcançar com as alternativas de abordagens como manipulação, colagem, neutralização, redefinição, reinterpretação e nova construção?” [15].

No primeiro concurso internacional (115 participantes) nenhuma proposta atendeu às expectativas do júri e por isso não houve a premiação do 1º lugar.  A proposta dos arquitetos Nina Lippuner e Johannes Wick (NIJO Architekten Zürich) um dos dois projetos classificados em segundo lugar, reintegra as lacunas do conjunto formadas pela ausência da Gropius Haus e da Moholy-Nagy Haus, inserindo as cubaturas faltantes em caixas de fibra de vidro escuro, diferenciando-as das superfícies brancas Modernas e realizando uma reparação urbana que recupera os dados ambientais do conjunto da Bauhaus Meisterhäuser e acentua a legibilidade entre o velho e o novo.

As lacunas causadas pela destruição da guerra que comprometem a integridade do conjunto das residências dos Mestres da Bauhaus são preenchidas sem recorrer a mimeses, cópias e imitações típicas da reconstrução estilística integral, numa composição abstrata de cubos negros que recupera a dimensão e volumetria das edificações originais da Haus Gropius e da Haus Moholy-Nagy; é legível, diferencia o estado conceitual do estado atual, mas apresenta um grande problema teórico, que pode ser entendido na reflexão sobre a unidade potencial da obra de arte formulado por Cesare Brandi [16]: “A integração deverá ser sempre e facilmente reconhecível; mas sem que por isso se venha a infringir a própria unidade que se visa reconstruir”. O problema maior da proposta do NIJO Architekten é que os volumes de fibra de vidro negros tornam-se figura e a preexistência, fundo, e para a reparação da lacuna (a interrupção do tecido figurativo), o procedimento teórico para colocar a lacuna em plano posterior diminuindo-lhe a preponderância sobre a obra de arte remanescente, é, de acordo com Cesare Brandi, justamente o contrário [17].

Dessa retrocessão de figura a fundo, desse violento inserir da lacuna como figura em um contexto que tenta expeli-la, nasce a perturbação que produz a lacuna, muito mais, diga-se de passagem, do que pela interrupção formal que opera no cerne da imagem. […] deve-se reduzir o valor emergente de figura que a lacuna assume em relação à efetiva figura, que é a obra de arte [18]. (Grifo da autora).

A reconstrução do conjunto bem como a conservação de seu status quo é descartada em comum acordo pela Prefeitura de Dessau e pela Stiftung Bauhaus Dessau que prossegue com o conceito da “Aktualisierung der Moderne” que constituirá a espinha dorsal e fundamentação teórica de um segundo concurso internacional, coordenado desta vez por David Chipperfield, que adota como slogan – Neubauten, die ihre Vorbilder zeitgenössisch interpretieren – a interpretação contemporânea dos edifícios projetados por Walter Gropius. O regulamento do concurso estabelece que a reconstrução estilística é eticamente inadmissível e a mensagem é clara: os novos edifícios devem respeitar a escala original do conjunto [19]. Assim, a Stiftung Bauhaus Dessau define uma terceira via entre a reconstrução fiel e exata das residências de Walter Gropius e László Moholy-Nagy e a conservação do status quo – «Aktualisierung der Moderne» [20] [21]. O BFM Architekten Berlin vence o concurso com a proposta conceitual unscharfe Erinnerung, que vai estar de acordo com os princípios de legibilidade e autenticidade formulados na Carta de Veneza [22] além de compartilhar alguns princípios da Teoria de Restauração de Cesare Brandi, apesar de não mencioná-lo em nenhum de seus textos e entrevistas.

Reconstrução “evocativa”: lembranças turvas e imprecisas

“Somos nossa memória, somos esse quimérico museu de formas inconstantes, esse montão de espelhos quebrados” [23].

O conceito da unscharfe Erinnerung (lembrança turva, desfocada, imprecisa), foi desenvolvido pelos arquitetos Pier Bruno, Donatella Fioretti e Josè Gutierrez Marquez, do escritório BFM Architekten Berlin, para compor o cerne do projeto que reconstrói brandianamente os dados ambientais das residências de Gropius e Moholy-Nagy, suas volumetrias e escalas evocativas recuperando a unidade potencial da obra de arte [24], ou seja, o conjunto das Meisterhäuser Bauhaus-Dessau, Patrimônio Cultural da Humanidade desde 1996. Profundamente impregnado por conceituações teóricas e filosóficas inspiradas na obra de Jorge Luis Borges, o conceito de lembrança e memória fora de foco resgata, não a lembrança que temos do passado, mas uma representação desse passado que se deseja proteger do esquecimento.

Borges perverte e inverte a visão da História. Acredita que por ela ser constituída por um universo de representação – linguagem e memória – jamais poderá ser fiel ao que realmente aconteceu. Percebe que a representação do passado se faz baseada no que os homens acreditam ou querem acreditar que aconteceu. Essa subjetividade faz que haja tantas histórias quanto testemunhos de um mesmo fato (Grifo da autora) [25].

O projeto do BFM Architekten partiu também de reflexões emanadas da obra de Thomas Demand, Stanislaw Lem e do fotógrafo japonês Hiroshi Sugimoto, este último, internacionalmente conhecido por suas fotos minimalistas e intencionalmente desfocadas que exploram a natureza da realidade de maneira imprecisa e sem detalhes precisos e exatos.

Sugimoto cria deliberadamente imagens fora de foco para capturar as imagens mentais de ícones da arquitetura modernista, não o registro exato de detalhes definidos e nítidos.  Ao usar grandes áreas de suaves claros e escuros ele cria imagens fragmentadas dissolvendo as linhas entre o tempo, a memória e a história que funcionam mais como passagens da memória visual do que como registros empíricos. As formas embaçadas evocam a passagem do tempo, minimizam os detalhes arquitetônicos e ressaltam a essência do edifício sugerindo o modo que nossas memórias preservam ou distorcem as imagens [26] (Tradução e grifo da autora).

A palavra Unschärfe em português significa turvo, desfocado, embaçado, vago, incompleto, imperfeito, inexato. Este é o componente e a natureza do princípio – Prinzip der Unschärfe – definidor da memória e da lembrança que o BMF Architekten adotou como o conceito essencial do projeto (Fig.6), como revela Fioretti e Marquez:

A substituição dos elementos faltantes deveria proporcionar ao observador a percepção do conjunto o mais próximo possível de como ele foi originalmente concebido. […] deveria estabelecer uma clara diferença entre os elementos novos e os preexistentes. A reconstrução [exata] não era uma alternativa não só porque aboliria a diferenciação da arquitetura original, mas principalmente porque, como toda cópia, colocaria em dúvida a legitimidade dos elementos originais. Quando reconstruímos, a memória é colocada em coma artificial. (Tradução e grifos da autora). [27]

Fig.6. A reconstrução dos dados espaciais do conjunto das Meisterhäuser Dessau: restabelecendo a unidade potencial da obra de arte Moderna (fonte: cortesia da grafik3d.de).

A nova estrutura deve proporcionar ao visitante a percepção do conjunto como foi originalmente concebido. Ao mesmo tempo ele poderá diferenciar os vestígios históricos das novas inserções reparativas. [28] (Tradução e grifos da autora).

A proposta do BFM Architekten Berlin propõe a integração da preexistência com inserções contemporâneas para visualizar o passado e dele se aproximar. Essa estratégia utiliza o método de restauro de pintura, em alemão Strichel-Retusche, que visa preencher as falhas e partes faltantes da obra de arte com o retoque de traços. “O resultado é uma obra contemporânea que em diálogo respeitoso com os fragmentos originais remanescentes devolve ao conjunto sua integridade e fortalece sua inserção na imagem da cidade” [29]. Na Itália, essa técnica – tratteggio – foi introduzida no Istituto Centrale per il Restauro, por Cesare Brandi, seu Diretor por duas décadas, para a reintegração de lacunas, em substituição à prática da integração analógica, visando garantir a autenticidade da obra de arte [30].

As fotografias (preto e branco) de Lucia Moholy impregnaram a memória coletiva das Meisterhäuser Dessau logo após sua construção e foram divulgadas em todo mundo como protótipo do viver moderno do Neues Bauen. Essa lembrança, segundo Fioretti e Marquez, vive hoje através de evocações imprecisas e sutis que foram agregadas ao projeto de reparação urbana do conjunto através da reconstrução dos dados espaciais da Haus Gropius e Haus Moholy-Nagy (Fig.7).

Fig. 7a / 7b. Direktorenhaus Gropius e Meisterhaus Moholy-Nagy/Feininger (fonte: fotos de Betânia Brendle, 2015)

A legibilidade entre o velho e o novo é acentuada pelos materiais e texturas e por uma drástica redução de detalhes construtivos. Uma suave passagem do existente para as inserções contemporâneas com contraste discreto é a estratégia projetual para evocar e trazer para a contemporaneidade a arquitetura de Walter Gropius (Fig.8).

Fig. 8a / 8b. Direktorenhaus Gropius fotografada por Lucia Moholy em 1926 / Reconstrução “evocativa” por BFM Architekten (fonte: bpk / Kunstbibliothek, Staatliche Museen zu Berlin, Photothek Willy Römer / Walter Stiehr / Foto de Betânia Brendle, 2015).

Para obter o efeito desfocado e turvo foram fabricados pela Glasmalerei Peters/Thiele Glas Wermsdorf vidros especiais com coloração manual e placas de superfícies inteiras e dimensões de até 7,3m x 1,77m. O tratamento das aberturas foi realizado sem esquadrias e sem molduras apenas com a colocação de placas duplas de vidro (12 mm /pigmentos brancos para a face exterior e 10 mm/pigmentos pretos para a face interior) e tratamento contra a perda de energia (Fig.9) [31].

Fig. 9a / 9b. O tratamento sem detalhes das aberturas das fachadas: superfícies neutras, cinzas e difusas. (fonte: fotos de Betânia Brendle, 2015).

 Restauro (do Moderno). …com Teoria

Após um longo processo de acirradas disputas e debates, a ameaça da banal reconstrução estilística fiel e exata das residências de Gropius e Moholy-Nagy foi descartada. A complexidade histórica, o significado e a intangibilidade da obra de Walter Adolph Georg Gropius em Dessau, sobrevivem nos vestígios históricos resgatados e na inserção diferenciada de extratos contemporâneos legíveis que convivem com histórias de construções e destruições ocorridas nos últimos 90 anos. Não há menção a Cesare Brandi em nenhuma publicação e/ou entrevistas do BFM Architekten, mas a postura projetual da intervenção nas residências dos Mestres da Bauhaus e as conceituações projetuais que conduziram o projeto revelam na prática princípios de sua Teoria. Assim, reafirma-se que, sim, é possível restaurar o Patrimônio Arquitetônico Moderno com um procedimento crítico e como um atto di cultura, (usando a expressão de Renato Bonelli, 1959) [32], que objetiva transmitir ao futuro os testemunhos materiais e imateriais da história e da arte garantindo a tutela de sua integridade, autenticidade, legibilidade e fruição bem como a salvaguarda do ambiente e/ou da paisagem onde o bem cultural está inserido. E principalmente, com sólida base teórica, afastando-se do empirismo e das soluções de gosto pessoal e de autor. A restauração espacial proposta pelo BFM Architekten Berlin recupera a alma do lugar e da obra de Walter Gropius em Dessau que inspirou gerações de arquitetos no mundo inteiro e consolidou o sonho do viver e construir Moderno.

Se os elementos desaparecidos tiverem sido obras de arte, está absolutamente fora de questão que se possam reconstituir como cópias. O ambiente deverá ser reconstituido com base nos dados espaciais e não naqueles formais do monumento que desapareceu [33] (Grifo da autora).

A proposta teórica e prática do BFM Architekten Berlin demonstra inquestionavelmente a atualidade do pensamento de Cesare Brandi:

O conjunto das residências dos Mestres da Bauhaus está outra vez completo. Não através de uma reconstrução fiel, mas de uma nova configuração da antiga cubatura perdida onde os detalhes se apresentam tão turvos e imprecisos como uma incompleta e vaga lembrança [34]. (Tradução e grifos da autora).


Notas

[1] KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação da arquitetura moderna e metodologia de restauro. Revista Pós, São Paulo, n.19, p. 198-201, 2006.

[2] VARAGNOLI, Claudio. Un restauro a parte? Palladio. Rivista di storia dell’architettura e del restauro, Roma, vol.12. n. 22, 1998, pp.111-115.

[3] SALVO, Simona. A restauração do arranha-céu Pirelli: A resposta italiana a uma questão internacional. Revista Pós, São Paulo, n.19, pp.201-210, 2006.

[4] Simona Salvo afirma que a “restauração na Itália distingue-se por ser uma atividade culturalmente fundamentada, cuja finalidade consiste em perpetuar um testemunho assim como nos chegou do passado, seja ele remoto ou recente, não apenas em relação ao nosso presente imediato, mas em uma perspectiva aberta ao futuro”. SALVO, op.cit., 2006, p.205.

[5] MEURS, Paul; THOOR, Marie Thérèse van (orgs.). Sanatorium Zonnestraal. The history and restoration of a modern monument. Rotterdam: NAi Publishers, Rotterdam Zonnestraal Estate bv MIT, TU Delft, 2010.

[6] SALVO, Simona. A intervenção na arquitetura contemporânea como tema emergente do restauro. Revista Pós, São Paulo, n.23, pp.199-211, 2008.

[7] SALVO, Simona. Restauro e “restauros” das obras arquitetônicas do século 20: intervenções em arranha-céus em confronto. Revista CPC, São Paulo, n.4, p.139-157, maio/out., 2007.

[8] Idem, p.144.

[9] KÜHL, op. cit., 2006, p. 198-201.

[10] DOCOMOMO INTERNATIONAL. BRNO Erklärung zur Diskussion um die Meisterhaussiedlung in Dessau 7. Juni 2008 – docomomo Deutschland e.V. http://www.docomomo.de/index.php?option=com_content&view=article&id=115:meisterhaussiedlung-in-dessau-brno-erklaerung&catid=45:publikationen&Itemid=59

[11] THÖNER, Wolfgang; MARKGRAF, Monika. Die Meisterhäuser in Dessau. Dessau: Bauhaus Taschenbuch, 2014.

[12] THÖNER; MARKGRAF, op. cit., 2014.

[13] GROPIUS, Walter. Not Gothic but Modern for our colleges [1947]. In: Arquitetura não é arqueologia aplicada. Bauhaus. Nova Arquitetura. São Paulo: Editora Perspectiva. 1994.

[14] BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração, p.89. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.

[15] MARKGRAF, Monika. Rekonstruktion? Das Gropius-Haus in Dessau. Vortrag anlässlich des Symposiums «Nachdenken über Denkmalpflege» (Teil 6): «Denkmale nach unserem Bild? Zur Theorie und Kritik von Rekonstruktion», Bauhaus Dessau. kunsttexte.de, Nr. 3, 2007, p.2.

[16] BRANDI, op.cit., p.47.

[17] Ver https://www.competitionline.com/de/ergebnisse/10683

[18] BRANDI, op. cit., p.128.

[19] KOWA, Günter. Städtebauliche Reparatur der Gesamtanlage der Meisterhäuser in Dessau. Bauwelt 23. 2008.

[20] MRASS, Marcus. Die Diskussion zur Restaurierung der Meisterhäuser in Dessau. Idee oder Substanz? Monumente. Magazin für Denkmalkultur in Deutschland. Oktober 2012. Disponível em http://www.monumente-online.de/de/ausgaben/2012/5/idee-oder-substanz.php#.VvNKY_krLIV

[21] MARKGRAF, Monika, 2007, op.cit.

[22] Carta de Veneza, 1964, Art.12: “Os elementos destinados a substituir as partes faltantes devem integrar-se harmoniosamente ao conjunto, distinguindo-se, todavia, das partes originais a fim de que a restauração não falsifique o documento de arte e história”.

[23] BORGES, Jorge Luis. Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1974, p. 981.

[24] BRANDI, op. cit.

[25] SANTOS, Ana Cristina dos. Jorge Luis Borges, P. A escrita como exercício da memória. In: II Congresso de Letras da UERJ. Anais… São Gonçalo: UERJ, 2005.

[26] MUSEUM OF CONTEMPORARY ART CHICAGO. Hiroshi Sugimoto: Architecture. Chicago: 2003. Disponível em http://www.e-flux.com/announcements/hiroshi-sugimoto-architecture/

[27] FIORETTI, Donatella; MARQUEZ, Josè Gutierrez. Präzision der Unschärfe – Wie die Meisterhäuser Gropius und Moholy-Nagy neu entstehen sollen. Interview von Ingolf Kern mit Donatella Fioretti und Josè Gutierrez Marquez für die Stiftung Bauhaus Dessau. 2014. Disponível em: http://www.bauhaus-dessau.de/index.php?die-natur-des-erinnerns

[28] Idem, p. 28.

[29] STIFTUNG BAUHAUS DESSAU (orgs.). Neue Meisterhäuser für Dessau. Die reparierte Siedlung. Dessau: Stiftung Bauhaus Dessau, 2014, p.23.

[30] […] “e foi assim que elaboramos, no Instituto Central de Restauro, para as pinturas, a técnica de tratteggio com aquarela que se diferencia por técnica e por matéria, da técnica e da matéria da pintura integral [original]”. Cesare Brandi, Apostila teórica para o tratamento das lacunas, op.cit. p.127.

[31] BAUZENTRUM. Bauen mit Glas und Beton. E-BAU 2/2015. www.glasmalerei.de

[32] BONELLI, Renato. Architettura e restauro. Venezia: Neri Pozza Editore, 1959.

[33] BRANDI, op.cit. p.136-137.

[34] FIORETTI, Donatella ; MARQUEZ, Josè Gutierrez, op.cit. 2014.


Betânia Brendle

Arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com PhD in Urban Design pela Oxford Brookes University e pós-doutorado na Technische Universität Dresden (Institut für Baugeschichte, Architekturtheorie und Denkmalpflege). É especialista em Restauração de Monumentos Históricos e Revitalização de Centros Históricos pelo PNUD-Unesco/Peru e em Architectural Conservation pelo ICCROM, Roma. Professora Associada (Aposentada) da Universidade Federal de Sergipe / Pesquisadora no Planungsbuero Architektur & Anderes Lübeck, Alemanha.


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