| Marcello Balzani e Mariana de Souza Rolim |
A experiência de um Salão para o patrimônio: o Salão de Restauro de Ferrara 2016
Falar de preservação é sempre um ato corajoso. São tantas as temáticas, tantas as correntes, tantas as paixões que arriscamos ficar fechados em um pequeno círculo. Ou a lutar contra moinhos de vento. Como então estabelecer um debate entre as diversas vertentes que atuam na área de uma forma equilibrada e produtiva?
Buscando essa resposta, anos atrás foi criado o Salão do Restauro: uma feira no norte da Itália que pretendia unir profissionais dos setores público, privado e da universidade, com o objetivo de buscar uma forma para se trabalhar em conjunto. Foi uma ideia vencedora, e esse espaço para debate sobre restauro cresceu em tamanho e importância. Com o passar do tempo e o alargamento da ideia de patrimônio, as questões de preservação e conservação se uniram àquelas de valorização. Como se a vida, que passa e atravessa os lugares da cultura, em todas as suas formas, pudesse encontrar um correspondente nas estratégias (pesquisa, metodologia, ferramentas, tecnologias) que transformam as formas da matéria.
Assim, nasceu a ideia de ampliar a feira em um novo espaço que pudesse discutir a preservação de forma integrada. Entre os dias 6 e 8 de abril de 2016, foi colocada em prática essa visão ampliada, com a realização da 23ª edição de ‘Restauro-Musei’: Salone dell’Economia, della Conservazione, delle Tecnologia e dela Valorizzazione dei Beni Culturali e Ambientali. Apresentaremos aqui os principais destaques do evento, buscando continuar contribuindo para a ampliação desse debate.
Já estabelecido como ponto de referência para os setores da arte e da cultura, a feira apresentou muitas inovações e contou com um público bastante diversificado, que teve a possibilidade de uma imersão de 360° em um mundo de novas tecnologias para o restauro. Em 2016, a feira – realizada na cidade italiana de Ferrara –, se apresentou dentro de um cenário de grandes reformas e mudanças, no seio das novas políticas italianas no âmbito da gestão do patrimônio cultural, que esse ano se fez presente com atenção crescente para a economia cultural; com o imprescindível papel de ações de conservação e valorização do patrimônio; e com a já reconhecida posição de destaque que as tecnologias desempenham na melhoria da eficiência e eficácia das atividades vinculadas ao restauro e aos museus.
Essa edição da feira foi caracterizada por uma composição variada de expositores (280 no total), todos ligados ao mundo dos museus e da restauração de formas diversas. O evento contou com um público formado não só por profissionais de restauro e do setor cultural, mas também por leigos, amantes de arte e por estudantes. Essa heterogeneidade se explica não só por conta da quantidade de expositores, mas também por seus eventos paralelos, incluindo palestras, seminários e workshops.
Esse ano a feira incorporou à temática do restauro, os museus. O novo foco foi idealizado em conjunto com o Ministero dei Beni e delle AttivitàCulturali e del Turismo (MiBACT) e seu sistema de museus. Assim, dentro da temática restauro e museus, a feira focou em novas tecnologias e inovação, estimulando a realização de negócios e reforçando a feira como um espaço amplo para o estabelecimento de diálogos entre empresas do setor e museus públicos e privados. Estiveram presentes empresas dos setores de luminotécnica, climatização, softwares e outras tecnologias, facilities, transporte e guarda de obras de arte, restauração de objetos, entre outros. Assim, foi possível encontrar a réplica do sistema de iluminação utilizado para a exposição da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci[1]. O design contemporâneo também foi visto em destaque, como na exposição apresentada pela Fundação Plart, que trouxe a experiência do restauro de peças contemporâneas, com a apresentação de seu laboratório de restauro. O design ainda esteve presente com empresas dedicadas ao desenvolvimento de objetos de marketing cultural, visando vendas em lojas de museus e outros centros de visitação turística.
Esse último item nos lembra de uma das pontes entre os temas museu e restauro: o turismo. Dentro da reorganização da estrutura de preservação do patrimônio italiano, o turismo cultural ganhou destaque e alguns benefícios – como o projeto Artbonus, uma lei de incentivo a doações para atividades culturais, com benefícios fiscais –, dando maior força ao setor da economia da cultura. Afinal, a pesquisa, a inovação e novas tecnologias vinculadas a temas como valorização e promoção do patrimônio são pontos de partida para novos postos de trabalho que organizações começam a estabelecer com a criação de start-ups, spin-offs e outras modalidades de negócios.
Atravessando então a ponte para o setor de restauro, um dos destaques foi a Associação Italiana para o Restauro Arquitetônico, Artístico e Urbano (Assorestauro), que se apresentou com 60 empresas associadas, incluindo diversas delegações estrangeiras. Entre os projetos apresentados, se pode destacar três realizados entre 2014 e 2016: a Escola de Restauro criada em Moscou (Rússia); o projeto de restauro da Mesquita Süleymaniye, em Istambul (Turquia); e um centro tecnológico para o restauro e o design em Cuba. Foi possível ter contato com diversas tecnologias de restauro, desde as tradicionais, como a recuperação de argamassas e pinturas recriando passo a passo técnicas antigas; até alternativas recentes, como a nanotecnologia aplicada a casos em que se podia observar aspectos de repelência à água, respirabilidade, estabilidade e compatibilidade de materiais como cal, gesso e pedra, em diferentes tipos de superfícies.
Também estiveram presentes duas instituições basilares: o Istituto Centrale per il Restauro (ICR) e o Opificio delle Pietre Dure (OPD), que contribuíram trazendo à feira uma enorme bagagem de conhecimento e experiência que fizeram com que a Itália fosse reconhecida mundialmente como referência em ações de restauro e conservação de patrimônio. O OPD trouxe especialistas em diversas áreas, como de bronze, com o caso do restauro da porta norte do Batistério de Florença; pinturas em tela e afrescos, com projetos em Florença e na região do Lazio; e com o projeto do restauro de plantas preservadas em cera, do Museu de História Natural de Florença. Os visitantes da feira puderam, além de conhecer os projetos, conversar com os técnicos que trabalham nos diferentes setores do OPD.
Aliás, outro destaque da feira foi justamente a possibilidade de contato com profissionais altamente qualificados. Seja na perspectiva de uma troca entre técnicos, seja de um primeiro contato com técnicas das mais diversas de restauro.
Logo no salão central, era possível visitar a exposição dos projetos premiados no Prêmio Domus de Restauração e Conservação Fassa Bortolo. Todos os 84 projetos inscritos foram expostos, com a América do Sul representada por projetos do Brasil, Chile e Argentina. Na lista final, destaque para dois projetos brasileiros: o restauro do edifício sede do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) em São Paulo, que ganhou a medalha de prata, e uma menção honrosa para o restauro da Ponte Torta em Jundiaí. Além de conhecer os projetos, foi possível um contato direto com os autores dos projetos vencedores das medalhas de ouro e de prata, que se apresentaram em um seminário.
Em três dias foram realizadas mais de 130 conferências e seminários, estabelecendo a vocação da feira de um espaço não só para negócios, mas também para difusão de conhecimento, debate e reflexão. Foram abordados temas como sistemas de museus, com o projeto de Bolonha La città dei musei. Le città della ricerca, à luz da recente reorganização administrativa e jurídica do sistema museal italiano e enfrentando de frente a questão da pesquisa dentro dos museus. A proposta que nasce agora é a de estabelecer uma relação forte e estável entre as 14 coleções da Universidade de Bolonha (das mais antigas e importantes da Itália) e as atividades de pesquisa desenvolvidas pelos diversos departamentos universitários, pensando em novas formas de interação educativa, de novas pesquisas e também de uma maior divulgação do patrimônio científico, garantindo uma fruição ampliada graças a um novo olhar sobre a museografia existente.
Outro seminário que atraiu atenção foi o organizado pela Fundação Plart, “O futuro do contemporâneo: conservação e restauro do design”, que debateu questões de conservação que vem surgindo nos museus de arte moderna e contemporânea em todo o mundo. Questões como o restauro de materiais contemporâneos (a começar pelo plástico) e das rápidas inovações da era pós-industrial, que impõe uma reflexão sobre a conservação desses objetos – altamente representativos do século XX, mas que, por vezes, ainda são vistos como objetos que não precisariam de um cuidado conservativo tão grande.
No âmbito do restauro arquitetônico, a contemporaneidade também esteve em debate. Com projetos envolvendo uma parceria já consolidada entre o departamento de Arquitetura da Universidade de Ferrara e universidades brasileiras e indianas, foram apresentados projetos que trazem à tona a questão do restauro da arquitetura modernista. A exposição “Viver em concreto – living in concrete” ilustrou a questão da conservação da memória do século XX. Através da apresentação de projetos em fotos, desenhos, maquetes físicas e digitais, foi possível ver mestres do movimento moderno no Brasil e na Índia, em um interessante diálogo de contaminação e semelhanças e em processos de reconhecimento e preservação.
Ainda destaque para dois seminários organizados pela Assorestauro. O primeiro, “Projetar o restauro”, colocou em debate políticas de internacionalização para o setor de restauração. Outro apresentou o protocolo do comitê italiano do Green Building Council (GBC) para edifícios históricos: projeto importante no sentido de valorizar edifícios antigos e inseri-los em um contexto do mercado que demanda certificações em relação à eficiência energética.
E a tecnologia de levantamentos tridimensionais e da criação de ambientes virtuais também apareceu como um aliado à preservação do patrimônio. O projeto Inclusive cultural heritage in Europe through 3D semantic modelling (Inception) apresentou os primeiros resultados de uma pesquisa que pretende desenvolver instrumentos para a gestão e o compartilhamento de modelos tridimensionais visando novos meios de permitir o acesso e o conhecimento sobre a identidade do patrimônio cultural europeu.
Esses projetos e muitos outros vividos na 23ª edição do Salone ‘Restauro-Musei’ nos fez lembrar de onde viemos e de como é importante dar sentido à preservação dessa memória, não pelo passado, mas para o nosso futuro. Ao nos colocar frente a contradições e conflitos, foi possível percorrer um caminho de defesa de um significado cultural onde restauramos a matéria para conservar a memória. Por fim, podemos dizer que um dos maiores resultados do evento, ao unir restauro e museus, foi o de contribuir para o debate e uma visão de que os bens culturais podem – e devem cada vez mais – ser considerados como um recurso econômico importante. Em um ciclo que incentiva e viabiliza a sua preservação.
Notas
[1] Realizada pelas empresas Hikari e DEF.
Marcello Balzani
Arquiteto, Doutor; DIAPReM, TekneHub, Università degli Studi di Ferrara (Ferrara, Itália).
Mariana de Souza Rolim
Arquiteta, doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (São Paulo, Brasil), bolsista CAPES/PDSE e UPM.
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.