| Samuel Kruchin |
O Palácio da Justiça não nasce como um edifício apenas, nasce como um marco, um totem, erguendo-se, precisamente, ao centro de uma densa massa urbana em expansão acelerada e na esteira do complexo de instituições oriundas de uma República e de uma Constituição há pouco instaladas.
Ergue-se na década de 1920, entre pequenas ruas, para, pouco depois, produzir sua própria espacialidade urbana: a abertura que lhe daria escala e monumentalidade, a Praça Clovis Bevilacqua, exatamente ao lado da Praça da Sé, como rezava a tradição brasileira desde suas Casas de Câmara e Cadeia.
Projetado pelo escritório Ramos de Azevedo, tendo como referência direta o Palazzo della Giustizia italiano, em Roma, ocupa uma quadra inteira em seus 22.000m2, marcados por uma composição bastante regular e clara quanto à sua estrutura: uma planta quadrada tendo em seus ângulos quatro torreões, em cujos lados distribuem-se todos os ambientes.
Também seus acessos distribuem-se, de forma hierarquizada, em suas quatro faces, sendo a entrada principal voltada para a Praça Clovis Bevilacqua. Pátios internos abertos garantem circulações aeradas por grandes janelas em todo perímetro interno.
A forma, marcadamente simétrica em todos os componentes, está associada ao rigor do próprio processo construtivo para o qual concorrem múltiplas técnicas associadas. O aço e o ferro fundido, presentes em soluções de cobertura (tesouras), em pilares e vigas, garantiram-lhe grandes vãos livres, possivelmente, os maiores que a cidade conhecera até então e que abrigariam as Salas de Júri, o Saguão dos Passos Perdidos. Na Biblioteca, vê-se uma extensa laje nervurada em concreto armado. Em quase todos os casos, as estruturas metálicas estão associadas ao concreto armado e aos maciços de alvenaria de tijolos das paredes.
Poderíamos seguramente dizer que se tratava de uma solução eclética, moderna, e que revelava amplo domínio técnico, onde a opção por cada uma das soluções derivava, também, das características ornamentais dos ambientes que se desejava criar. Sua exuberância estrutural não é correspondida, no entanto, pela solução de cobertura, cuja estrutura em tesouras de madeira é frágil se comparada à densidade do conjunto.
Internamente, o clima é de uma austeridade quase conventual, de uma imponência que remete à ideia de que, em seus salões reclusos, homens togados decidem pelos destinos de muitos. Há silêncio, contenção, e uma iluminação ligeiramente abatida em seus longos corredores.
A pintura mural, cuja hierarquia define a importância do lugar e de seus ocupantes, generaliza-se ora em forma de amplos painéis artísticos, ora em forma de pintura serial, ora em barrados mais singelos, ocorrendo, também, nos forros de estuque.
A luz filtrada dos vitrais equilibra, aqui e ali, a densidade das massas, propiciando, com isso, certo frescor a alguns ambientes.
Seus planos externos, um ecletismo modelado em massa raspada, de intensa rusticidade, não sugerem distensão ou leveza, mas uma imagem de concentração, de força e densidade que resvala na intimidação. Também um certo sentido do inexpugnável e do impenetrável que se pode ver em fortalezas e presídios.
Aspecto relevante em sua execução foi a introdução de um pavimento intermediário, com altura e acessos diferenciados, destinados a funções de apoio e que introduz, no equilíbrio formal do conjunto, uma dissonância que, de certo modo, perturba-o e humaniza, se assim podemos caracterizar, amenizando sua imperturbável severidade.
Transformações urbanas
A partir dos anos de 1940, e mais notadamente a partir daqueles de 1970, a formação de novas centralidades abrandaria, paulatinamente, a importância da área central e levaria à perda de sua aura primitiva, de seu sentido de convergência e de identidade, com o deslocamento para outras regiões dos centros financeiros, institucionais e comerciais de maior importância. Destaco isso pela imensa relevância que teve, e ainda tem, a permanência dos setores de justiça, do Fórum Central e do Tribunal, na resistência magnífica que exerceram frente a um movimento de transformação espacial e de degradação acelerada que assistiram de seu entorno, ainda assim ali permanecendo.
Não passaram, no entanto, incólumes por este processo. A sua praça, a Clóvis, fundiu-se à praça contígua, a Sé, sob as quais, em níveis diversos de profundidade, concentraram-se as primeiras linhas de metrô, assim, transformando, ambas, em amplos e desabitados lugares públicos, ocupados por toda sorte de desabrigados.
O impacto urbano de tais mudanças constitui-se em linha de inflexão de suas condições conservativas e de presença urbana.
Hoje
O esvaziamento do ambiente em torno de seu plano frontal e, em contrapartida, a concentração de tráfego e pedestres em sua face posterior, pareciam agora inverter a equação urbana clássica, a hierarquia de sua presença urbana. Poucos o conhecem por sua face principal.
As obras e escavações destinadas ao metrô para as três linhas que atravessam seu subsolo produziram, e permanecem produzindo, vibrações intensas, cujas decorrências estão agora postas em questão para o restauro.
Seus mármores internos soltaram-se em efeito dominó, tendo sido grosseiramente parafusados aos suportes de alvenaria. Os estuques de forro apresentaram fortes trincamentos e estão sob o apoio de estruturas secundárias. O entelhamento e a estrutura de cobertura, sob a vibração amplificada e por sua fragilidade intrínseca, apresentaram escorregamentos e fraturas que comprometeram a estanqueidade do conjunto e danificaram seus painéis pictóricos internos. Insetos xilófagos espraiaram-se pelos estuques ornamentados.
Seus planos externos, povoados de microfissuras, foram submetidos a uma velatura que lhes alterou a tonalidade travertina original, fazendo-os mais escuros e homogêneos, perdendo parte de seus sombreamentos.
A todos esses aspectos, como se não bastassem, somam-se ainda as transformações tecnológicas trazidas pelos sistemas de climatização, telefonia e informatização, cujas tubulações percorrem forros, paredes e rodapés em uma trama que não reconhece o lugar por onde transita.
Do restauro
Se uma direção maior puder ser, neste momento, concebida, deverá estar associada a uma ideia nuclear: resistência. Parece-me que sua ossatura, sua opulência, sua escala e sua solidez, sem ignorarmos o apego à tradição de seus ocupantes, permitiram-lhe atravessar esse extenso período de decadência, mantendo a integridade de seus componentes, de seus ambientes e de seu espírito primeiro, que parecem estar ainda perpetuados como imaginário e como tradição à qual não se ousa confrontar.
Como subvertê-lo, por que subvertê-lo? Aderir à sua imutabilidade, convocar à complacência? Dar visibilidade às texturas novas que procuram sua expressão? Parece que o velho palácio nem sequer digna-se a responder, talvez, querendo permanecer como é, como está, em seu inabalável sentido de permanência. Isso pode nos dizer do espírito de sua restauração.
Ficha Técnica
Nome do edifício: Palácio da Justiça de São Paulo
Local: Praça Clovis Bevilacqua, s/n – São Paulo, SP
Data de construção: 1920-1942
Autoria: Escritório Técnico Ramos de Azevedo
Data do Projeto de Intervenção: 2011-2012
Arquitetura: Consórcio Argeplan-Kruchin-Kiefer
Projeto de Restauro e Coordenação Geral: Samuel Kruchin
Coordenação de Projeto: Alexandre Martins
Obra: Concrejato (1ª fase)
Data de início da obra: 2014-2015
Data de conclusão: 2016
Área do terreno: 6.500,00 m²
Área construída: 22.000,00 m²
Crédito das fotos: Daniel Ducci
v.2, n.4 (2018)
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