O patrimônio azulejar de Belém do Pará e seu inventário

| Renata Poliana Cezar Monezzi |

Resenha do livro:

ALCÂNTARA, Dora Monteiro e Silva; BRITO, Stella Regina Soares de; SANJAD, Thais Alessandra Bastos Caminha. Azulejaria em Belém do Pará: inventário – arquitetura civil e religiosa – século XVIII ao XX. Brasília, DF: Iphan, 2016.

Fig.1. Capa do livro Azulejaria em Belém do Pará: inventário – arquitetura civil e religiosa – século XVIII ao XX (fonte: acervo da autora)

Belém do Pará é uma das poucas cidades brasileiras que ainda preserva um expressivo conjunto de azulejos decorativos em sua arquitetura. Essa característica concede um colorido particular à cidade, que pode ser visto na rica variedade de modelos, dimensões e procedências das peças cerâmicas que revestem os interiores e as fachadas das antigas edificações construídas nos séculos XVIII, XIX e início do século XX. Em 2016, essas peças decorativas ganharam uma atenção particular ao serem apresentadas no formato de livro pela editora do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).  

Intitulada Azulejaria em Belém do Pará: inventário – arquitetura civil e religiosa – século XVIII ao XX, essa publicação reúne um interessante catálogo de modelos azulejares europeus da cidade e é fruto de um árduo trabalho de identificação e catalogação iniciado em 1971 por Antônio Pedro Gomes de Alcântara (1926-1999) e pela autora Dora Monteiro e Silva de Alcântara. Diante de inúmeras dificuldades, o inventário foi realizado com algumas interrupções, passando a ser executado por técnicos do SPHAN (atual IPHAN), no âmbito da Fundação Pró-Memória, entre os anos 1986-1987, pelos técnicos da Superintendência do IPHAN-Pará, entre 2006 e 2007 e, finalmente, sob a coordenação da autora Thais Alessandra Bastos Caminha Sanjad, pela Universidade Federal do Pará, entre 2008 e 2009.

As autoras desse livro são importantes referências nos estudos sobre o patrimônio azulejar no país. Dora Monteiro e Silva de Alcântara, professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ), realiza pesquisas na área de proteção do patrimônio cultural e artístico nacional há décadas, tendo organizado algumas significativas publicações sobre a história da azulejaria brasileira, como os livros Azulejos na cultura luso-brasileira (1997) e Patrimônio azulejar brasileiro (2001), atuando também nos trabalhos de identificação e catalogação de exemplares de azulejos no Rio de Janeiro, em São Luís, em Belém e em Salvador, como consultora do IPHAN; Stella Regina Soares de Brito é arquiteta especializada na conservação e restauração de monumentos e conjuntos históricos pela Universidade Federal da Bahia e atua como docente na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade CEUMA; e, por fim, Thaís Alessandra Bastos Caminha Sanjad, professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (FAU-UFPA), coordena o Laboratório de Conservação, Restauração e Reabilitação da UFPA e possui uma expressiva produção científica relacionada à conservação e ao restauro de azulejos.

As autoras dividiram o livro em três partes. A primeira apresenta um breve histórico sobre a formação e evolução urbana de Belém, pontuando os distintos momentos econômicos e a importação de azulejos. Em seguida, aborda-se a história da azulejaria na cidade em três capítulos: a evolução dos materiais e técnicas de fabricação dos azulejos, os azulejos da arquitetura civil e os painéis devocionais da arquitetura religiosa belenense. Finalmente, no apêndice, as autoras apresentam as fichas desenvolvidas para o inventário juntamente com materiais coletados ao longo dos anos de investigação, tais como mapas, catálogos de fábricas, informações sobre a importação de azulejos e as descrições dos anúncios de jornais locais de época.

Logo no início do livro, a história da formação da cidade é contada a partir do surgimento de edifícios ícones e da estruturação de dinâmicas urbanas entre a Bahia do Guajará e o rio Guamá. O ciclo da borracha atraiu uma nova elite que promoveu o embelezamento da cidade e uma vida urbana sofisticada, o que permitiu o uso de materiais como o ferro em requintados balcões e gradis entalados [1] e o uso dos elementos decorativos cerâmicos, além de promover transformações urbanas substanciais com a construção de praças, boulevards e o calçamento de ruas e passeios. Neste processo de desenvolvimento urbano, os azulejos decorativos foram usados primeiramente nos interiores de luxuosas residências e, mais tarde, com a vinda de uma expressiva quantidade de azulejos importados, passaram a revestir as fachadas das casas e palacetes neoclássicos.

Na segunda parte do livro, as autoras se dedicaram à descrição da azulejaria belenense, introduzindo o leitor às técnicas produtivas identificadas nas peças do inventário e às diferenças entre os tipos de produção artesanal, semi-industrial e industrial de forma concisa e com uso bem-vindo de imagens ilustrativas.

Apesar de Azulejaria em Belém do Pará não ser uma novidade em termos de publicações dessa natureza no país, ela apresenta a história da técnica azulejar de uma forma abrangente, usando importantes referências como os autores de Industria da Ceramica (1907), Pedro Prostes e Joaquim de Vasconcelos, que compilaram os diversos procedimentos das técnicas de decoração por processo de impressão, tema abordado ainda superficialmente pela historiografia azulejar nacional. Além disso, o livro também traz detalhes interessantes como, por exemplo, o modo como os azulejos se assentam nas paredes, destacando as diferenças quanto à perfeição das peças industrialmente fabricadas e a regularidade em sua instalação ou também como, na produção artesanal e semi-industrial, é possível encontrar digitais dos ceramistas nas peças – já que, ao pressionarem a argila sobre o molde, deixavam suas impressões gravadas no tardoz –, parte de trás não vidrada dos azulejos.

Quanto ao critério de classificação e nomenclatura das peças inventariadas, as autoras usaram como referência José Miguel dos Santos Simões (1907-1972), engenheiro e historiador da arte português que realizou um expressivo trabalho sobre a história da azulejaria portuguesa e brasileira, tornando-se uma das maiores referências nos estudos sobre azulejaria realizados no século XX. O mesmo critério foi utilizado na execução do Inventário do Patrimônio Azulejar do Maranhão (2012) – inventário realizado em parceria com o Instituto Federal Tecnológico do Maranhão (IFTM) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – no qual foram identificados os azulejos da cidade de São Luís, da Ilha de São Luís e das cidades históricas do Maranhão, entre os anos 2004 e 2006. Essa escolha é bastante oportuna uma vez que isso permite a unificação de dados e troca de informações em âmbito nacional.

Na sequência, o livro exibe os exemplos de azulejos da arquitetura civil e religiosa de Belém do Pará. Ali, as autoras descrevem os modelos mais comuns, os tipos de composições presentes nas fachadas e interiores das edificações, os painéis publicitários e os painéis devocionais, estes analisados com o auxílio do frei Cassiano de Almeida. Assim, destacam-se os painéis figurativos art nouveau fabricados pela fábrica francesa Boulenger & Cie., de Choisy-le-Roy, localizados no salão nobre da edificação Victor Maria da Silva e os painéis devocionais do Convento de Santo Antônio, onde veio a estabelecer-se o Colégio de Santo Antônio das Irmãs Dorotéias de Frassinetti, que ilustram a trajetória de Santo Antônio em cenas como “Aparição do menino Jesus a Santo Antônio”, “Pregação de Santo Antônio aos peixes” e “Ato de estigmatização”. Entretanto, esse acervo encontra-se hoje ameaçado: em levantamento fotográfico realizado por Sanjad, em 2012, a autora identificou a perda significava de partes dos painéis em decorrência da má conservação, reformas e vandalismos.

No Apêndice, última parte do livro, são apresentados os modelos das fichas adotados no inventário, os mapas de localização dos imóveis azulejados, a planilha geral com os padrões identificados e os demais dados coletados. O mapeamento foi organizado adotando-se a setorização dos bairros da cidade e os imóveis foram classificados segundo as técnicas decorativas adotadas na produção dos azulejos.

Tratando-se de uma importante contribuição para os estudos sobre azulejaria nacional e local, é uma pena que os dados organizados no apêndice do livro tenham sido tão pouco analisados pelas autoras. Nos mapas, por exemplo, a classificação dos imóveis segundo a técnica de produção de azulejo, além de estar representada de forma confusa, exige do leitor uma atenção redobrada para compreender as informações contidas em planta. As edificações foram classificadas apenas segundo a técnica de produção e a representação gráfica dos mapas traz falhas: uso de cores muito próximas, desatenção quanto ao peso das linhas e problemas na diagramação, que dificultam uma leitura mais afinada das informações. Dados sobre as tipologias decorativas, neste caso, praticamente não são assinalados, o que impede cotejar informações como a lista de importações, as identificações de possíveis fábricas estrangeiras e os anúncios de jornais, o que proporcionaria novas maneiras de análise e identificação da produção azulejar internacional e sua aplicação na arquitetura belenense.

Até o presente, a historiografia azulejar nacional dedica boa parte de sua atenção à identificação e descrição dos azulejos, dando pouca atenção para a análise das relações entre o local de produção, de aplicação das peças cerâmicas no Brasil e as redes que as constituem. Entretanto, Azulejaria em Belém do Pará é uma iniciativa muito importante que abre novas possibilidades de investigação e proteção do patrimônio azulejar não apenas para Belém, mas para o país de modo geral.

Fig.2. Azulejos aplicados na fachada de um edifício em Lisboa, Portugal (fonte: foto da autora, 2014)


Notas

[1] Peitoril entalado caracteriza-se por um guarda-corpo de ferro batido ou de madeira contido no vão da janela. É encontrado na arquitetura colonial brasileira nas janelas do pavimento superior de sobrados.


Bibliografia

ALCÂNTARA, Dora Monteiro e Silva de (Org.). Azulejos na Cultura Luso-brasileira. Rio de Janeiro: IPHAN, 1997.

____________. Patrimônio Azulejar Brasileiro: aspectos históricos e de conservação. Azulejo, documento de nossa cultura. Brasília: Monumenta/BID/Ministério da Cultura, 2001.

ALCÂNTARA, Dora Monteiro e Silva; BRITO, Stella Regina Soares de; SANJAD, Thais Alessandra Bastos Caminha. Azulejaria em Belém do Pará: inventário – arquitetura civil e religiosa – século XVIII ao XX. Brasília, DF: Iphan, 2016.

LIMA, Zelinda Machado de Castro (Org.). Inventário do Patrimônio Azulejar do Maranhão. São Luís: Edições AML, 2012.

SIMÕES, João Miguel dos Santos. Azulejaria no Brasil. Comunicação destinada ao Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros na Bahia, 1959. In. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nº14. Rio de Janeiro: IPHAN, 1959.

____________. Azulejos Holandeses no convento de Santo Antônio do Recife. In: Cadernos de Arte do Nordeste nº 3. Recife: Amigos do DPHAN, 1959.

____________. Azulejaria Portuguesa no Brasil, 1500-1822. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1965.

____________. Estudos de Azulejaria. Colecção Presenças da Imagem. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001.

PROSTES, Pedro e VASCONCELLOS, Joaquim de. Industria de Ceramica. Bibliotheca de Instrucção profissional. Porto: Junho 1907.


Renata Poliana Cezar Monezzi

Doutoranda do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). Mestre pelo programa Erasmus Mundus TPTI – Techniques, Patrimoine, Territoires de l’Industrie: Historie, Valorisation, Didactique – pela Université Paris I Panthéon-Sorbonne (França), Università degli Studio di Padova (Itália) e Universidade de Évora (Portugal) em 2015. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual de Campinas em 2006. Trabalhou como arquiteta Sênior nos Escritórios PILON arquitetura, CRB Construtora e Königsberger Vannucchi Arquitetos Associados; trabalhou como Arquiteta Coordenadora de Projetos Sênior nos escritórios Porta & Associados Arquitetura e Urbanismo, Links Consultoria em Projetos de Engenharia e Portela Rivaben Arquitetos (Portela Arquitetos Associados) e arquiteta no Estúdio Artes Martins Sarasá: Conservação e Restauro. Tem experiência profissional na área de Arquitetura e Urbanismo, Restauração e Conservação de Bens Tombados e História da Arquitetura e Urbanismo, atuando principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento de projetos de arquitetura predial e obras públicas de grande porte e complexidade, história da Arquitetura e urbanismo, história dos azulejos decorativos, habitação social e autoconstrução. Atualmente trabalha também como professora convidada no curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Francisco – Campus Bragança Paulista. Email: renata.monezzi@gmail.com


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