O ESTADO DE MANUTENÇÃO E CONSERVAÇÃO DO SÍTIO ARQUEOLÓGICO: RUÍNAS DO ABAREBEBÊ (PERUÍBE/SP)
| Leandro Surya I Thais Cristina Silva de Souza I Andrea Nunes Vaz Pedroso I Paloma Silva Viana |
Um dos sítios arqueológicos mais importantes do litoral paulista, conhecido como Ruínas do Abarebebê, está localizado na cidade de Peruíbe, no estado de São Paulo, e encontra-se atualmente em processo de degradação. Tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), através do processo n. 09515/69, foi finalizado em 1981. Na época, o sítio já apresentava inúmeras manifestações patológicas. Entre os anos 1990-2000, teve início uma pesquisa arqueológica, elaborada pela professora Dorath Pinto Uchôa, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP), e aprovada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Após mais de vinte anos deste processo, este artigo pretende exibir o estado atual das ruínas desse sítio arqueológico.
História e a memória: um breve relato das Ruínas do Abarebebê
Definir arqueologia tem sua complexidade, segundo Pedro Funari [1], a arqueologia estuda, diretamente, a totalidade material apropriada pelas sociedades humanas, como parte de uma cultura total, material e imaterial, sem limites de caráter cronológico.
A arqueologia aposta em um caminho plural, em que diversos elementos e visões são revistos e incorporados em novas formas de trabalho e pesquisa [2]. Neste sentido, outras disciplinas se aproximam do campo de investigação, neste caso, a arquitetura e a biologia.
A Carta de Lausanne, de acordo com o ICOMOS [3], trata da proteção e da gestão do patrimônio arqueológico, afirmando que este patrimônio constitui testemunho essencial sobre as atividades humanas do passado e é um recurso cultural frágil e não renovável.
O sítio arqueológico Ruínas do Abarebebê está localizado a menos de 900 metros da Terra Indígena (TI) Piaçaguera, reserva remanescente de Mata Atlântica e de matas de restinga. Localizada na área de transição entre a Serra do Mar e a praia, é a morada de aproximadamente 368 pessoas, distribuídas em doze aldeamentos, em uma área de 2.773,79 hectares, no município de Peruíbe [4]. A trajetória dos tupis-guaranis de Piaçaguera é marcada pela luta e pela permanência.
Scatamacchia e Uchôa [5] explicam que, segundo relatos dos europeus que entraram em contato com os indígenas, no século XVI já se sabia que o litoral de São Paulo era ocupado por grupos horticultores ceramistas, pertencentes à família linguística hoje conhecida como tupi-guarani. O pequeno número de sítios arqueológicos desses grupos pode ser atribuído à crescente urbanização desta região e ao interesse apenas recente da arqueologia sobre o tema.
Foi firmado um convênio entre o MAE-USP e a Prefeitura Municipal de Peruíbe em 1991-92, coordenado pela professora Dorath Pinto Uchôa, que contou com técnicos do CONDEPHAAT [6] e do Departamento Patrimônio Histórico (DPH). O método utilizado pela equipe da professora Dorath Pinto Uchôa para a escavação do sítio consistiu na implantação de um grid subdividido em quadrículas de 2×2 m. Neste primeiro relatório, a Universidade de São Paulo [7] descreveu os materiais encontrados, provenientes das escavações: elementos ferrosos de estruturas construtiva (cravo, marreta e espelho de fechadura); faianças portuguesas do século XVIII; tigelas de barro; telhas e tijolos fragmentados. Além disso, registrou-se a ocorrência de cinco enterramentos humanos (adultos e crianças), todos eles em área de entulho (metralha de telhas, tijolos e argamassa), o que suscitou a hipótese de que a igreja, embora em estado de ruínas, tenha permanecido por algum tempo como espaço de ritos religiosos para a população local. Os resultados desta pesquisa compreendem que as ruínas são de um único período histórico, entre os séculos XVII e XVIII, período franciscano, e contemplam dois momentos construtivos.
No segundo relatório apresentado pela Universidade de São Paulo [8] descreve-se uma vistoria realizada pelo IPT (relatório n. 30.615) com o objetivo de verificar a estabilidade das paredes.
Apresentado pelo escritório do arquiteto Paulo Bastos, o projeto de consolidação da parede do batistério (arco de tijolos) e a manutenção do sítio histórico foram executadas entre 1993-94 [9]. Este projeto também resultou em uma edificação denominada casa de visitantes, construída na área do sítio arqueológico; entretanto, não está em funcionamento.
Método
A tecnologia e o avanço no uso de softwares têm colaborado de forma significativa para a elaboração de levantamentos e pesquisas no campo da arquitetura e da arqueologia. O uso de novos programas computacionais e de registros fotográficos por drones possibilitou o avanço de levantamentos com alta qualidade. Entretanto, o levantamento direto com trena, prancheta e desenhos em cadernetas ainda estão presentes em campo.
De acordo com Márcia Braga [10], o mapa de danos é o registro gráfico das manifestações patológicas identificadas nas edificações. Como manifestações patológicas entendem-se os sintomas que surgem na construção decorrentes de causas diversas que provocam degradação dos elementos que a compõem. Ele tem uma função temporária, pois quando não há um plano de manutenção e conservação, as manifestações patológicas vão se intensificando.
O diagnóstico do estado de conservação deve ser feito com base no relatório do estado de conservação e no mapeamento de danos, buscando identificar as possíveis causas e saná-las.
Durante o período desta pesquisa entre 2023-24, foram realizados levantamentos diretos, com instrumentos simples: trena, caderno e lápis, dos quais resultaram desenhos métricos e arquitetônicos das ruínas, além do levantamento indireto, por meio do uso de tecnologia. Identificou-se que a espessura das paredes de alvenaria de pedra e cal são de 0,70m. Em sua maioria, as pedras estão aparentes e sem argamassa de revestimento. Foi feita uma inspeção dimensional, em que se constatou que as conchas contidas na argamassa de revestimento medem aproximadamente (1cm x 1cm). Para esta inspeção, foi utilizada uma lupa com escala em mm (Illuminated Scale -Magnifier MG 13100), que permitiu a realização das fotos abaixo (Fig. 1).
A inspeção visual e dimensional é o primeiro passo. Em uma segunda etapa, a realização de ensaios laboratoriais para a investigação do traço e da sua composição. A argamassa de revestimento protege a estrutura do bem edificado. Desta forma, entende-se que esta investigação e o registro das condições atuais são necessários.
No levantamento indireto, o uso dos drones permite maior eficiência no uso da fotogrametria, pois conseguem registrar as imagens em áreas e setores de difícil acesso, realizando o levantamento fotográfico com maior rapidez, facilitando, assim, a geração de modelos digitais 3D [11].
Foram realizadas 220 fotos com resolução de 4.000 x 2.250 pixels com o drone DJI Mini 3. O material resultou em imagens com alta resolução utilizadas na formação de nuvens de pontos através do software Agisoft Metashape. As fotos foram inicialmente combinadas e processadas, criando uma nuvem de pontos esparsa (Fig. 3).
Uma vez verificado o resultado, e após 12 horas de processamento em alta qualidade, obteve-se uma nuvem de pontos densa, na qual é possível visualizar os detalhes da arquitetura (Fig. 4).
Nas imagens em alta qualidade é possível visualizar com exatidão os maciços arbóreos, os elementos arquitetônicos (escada, corrimão, degraus), dentre outros aspectos (Fig. 5).
De acordo com Lima e Oliveira [12], as ortofotos são uma base segura, de alta precisão e resolução, para o desenvolvimento de mapas de danos utilizando o método do decalque (Figs. 6 e 7).
As imagens denominadas ortofotos são a base para os mapas de danos realizados no programa Autodesk – AutoCad. Assim, foram elaborados mapas de danos para as paredes remanescentes das Ruínas do Abarebebê (Figs. 8, 9, 10 e 11).
O mapa de danos 01 (Fig. 8) registra o levantamento realizado na parede leste (a partir do lado externo), no qual é possível perceber o bolor (hachura em rosa) e sobreposição (hachura verde) de fungos e microrganismos, que parecem ser um dos elementos mais atuantes no processo de desagregamento da argamassa remanescente (hachura em amarelo), devido principalmente à sua capacidade de conter a umidade nas áreas limítrofes das paredes.
O mapa de danos 02 (Fig. 9) apresenta a parede oeste (a partir do lado interno) e permite perceber a salinidade (em vermelho) que aflora nas paredes, manifestação que pode ser produto de infiltrações de água. A água potencialmente causa a percolação dos sais contidos nos materiais construtivos acelerando a desagregação dos restos da edificação. O fato de as salinidades estarem presentes na parte superior da parede marca os pontos de fragilidade que, com o passar do tempo, se perderam. Isto é, as salinidades podem ser interpretadas como vetores de processos de transformações que resultaram nas ruínas como hoje se encontram.
O mapa de danos 03 (Fig.10) mostra, para a parede leste (a partir do lado interno), a ação da vegetação de médio porte, que pode ser interpretada como um sinal de passagens para a entrada de elementos externos como a água. Suas raízes penetram nos materiais construtivos, e seus dosséis proporcionam sombra às paredes, que se mantêm úmidas nos pontos atingidos. É notável que a vegetação de médio porte sempre apareça nas partes superiores, posição ótima no que tange o impacto sobre as partes remanescentes das paredes do sítio arqueológico.
O meio ambiente tropical, próximo ao mar e de manguezais, predominantemente quente e úmido, típico do litoral brasileiro, corrobora com os processos de deterioração. No mapa de danos 04 (Fig.11), que representa a parede oeste (a partir do lado externo) é perceptível a ação do ambiente pela ausência de argamassa remanescente.
Não é coincidência que as paredes leste e oeste dos mapas de danos 01 e 02 apresentem uma maior quantidade de argamassa remanescente em relação à quase ausência da mesma nas paredes leste e oeste dos mapas de danos 03 e 04. Isto pode ser explicado pela maior exposição das últimas aos elementos naturais como maresia, e direção preferencial de ventos e chuvas.
Nas ruínas encontramos os líquenes Caloplaca spp.Th. Fr. (Fig. 12a), Parmelina spp. Hale (Fig.12b) e Diploicia sp (Fig. 12c) e Cladonia sp. P. Browne (Fig. 12d).
À medida que o solo se desenvolve com a ajuda das espécies pioneiras, plantas herbáceas e arbustivas começam a se estabelecer, resultando em um aumento na biodiversidade e uma estruturação mais complexa da comunidade vegetal. Isto pode ser comprovado por este trabalho, em que se destacam: Pteris L. sp (Fig 12d), Pilea macrophylla Rusby (Fig. 12e), Cordyline fruticosa (L.) A. Chev. e Schefflera actinophylla (Endl.) Harms (Fig. 13), corroborando os estudos etnobotânicos e florísticos conduzidos por Mônica B. André [13].
A S. actinophylla, uma espécie exótica, foi identificada crescendo entre as fissuras da ruína, e isso se deve à dispersão das sementes pelos pássaros [14]. As árvores jovens gradualmente formam um dossel que pode alterar as condições ambientais abaixo dele, reduzindo a luz solar direta e modificando a umidade e a temperatura do solo.
Por fim, os mapas de danos permitem identificar, para a parte edificada desse sítio, a ausência de manutenção adequada, que resulta em sujidades, microrganismos, bolor, vegetação de pequeno e médio porte, destacamento de argamassa, em um ambiente propício ao desgaste, e a processos de decomposição e perda.
Conclusão
Os resultados deste trabalho permitem concluir que o sítio arqueológico Ruínas do Abarebebê tem potencial para um novo projeto de pesquisa, com novas buscas arqueológicas que ampliem a área de investigação realizada no passado. Pesquisas contemporâneas que considerem a história enraizada na paisagem e a identificação da ocupação do território por comunidades indígenas, respeitando os rituais próprios dos grupos presentes na área envoltória, envolvendo a comunidade, articulando lugares e pessoas, e construindo uma narrativa entre o tangível e o intangível.
Foram identificadas inúmeras manifestações patológicas presentes no sítio, dentre elas a presença de espécies arbóreas nas fissuras e o destacamento da argamassa de revestimento. A retirada dos pequenos e médios maciços arbóreos faz-se necessária, incluindo uma investigação das árvores de grande porte com raízes e um laudo técnico sobre possíveis deformações na estrutura das ruínas e no traço da argamassa existente. Entende-se que, nos próximos anos, o sítio precisa ter, além do seu reconhecimento, a salvaguarda, a conservação, e uma atenção especial com a sua manutenção.
Notas
[1] FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Arqueologia. São Paulo: Ática S.A., 1988.
[2] HARRIS, Oliver JT; CIPOLLA, Craig. Archaeological theory in the new millennium: Introducing current perspectives. London: Routledge, 2017.
[3] ICOMOS/ICAHM. Carta de Lausanne. Carta para a proteção e a gestão do patrimônio arqueológico. In: IPHAN. Cartas patrimoniais. Brasília: IPHAN, 2014. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Lausanne%201990pdf>. Acesso em: 22 fev. 2024.
[4] SCARAMUZZI, Igor. Caminhos da história dos Tupi Guarani e da terra indígena Piaçaguera / Igor Scaramuzzi. 1. ed. São Paulo: Comissão Pró Índio de São Paulo, 2023, p.17.
[5] SCATAMACCHIA, M.C.M.; UCHÔA, D.P. O contato euro-indígena visto através de sítios arqueológicos do Estado de São Paulo. Revista de Arqueologia, São Paulo, 1993, p. 153-162.
[6] SÃO PAULO. Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – CONDEPHAAT. Processo de tombamento nº. 09515. São Paulo, 1969, p. 08-106.
[7] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Relatório celebrado entre a Universidade de São Paulo/ Museu de Arqueologia e Etnologia e a Prefeitura Municipal da Estância Balneária de Peruíbe. Projeto Arqueológico, Antropológico, Histórico, Ecológico, Museológico e Turístico do Município de Peruíbe. Relatório Anual, 1991. São Paulo, 1991, p. 04-08.
[8] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Relatório celebrado entre a Universidade de São Paulo/ Museu de Arqueologia e Etnologia e a Prefeitura Municipal da Estância Balneária de Peruibe. Projeto Arqueológico, Antropológico, Histórico, Ecológico, Museológico e Turístico do Município de Peruíbe. Relatório Anual,1992. São Paulo, 1992, p. 04-30.
[9] UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Relatório celebrado entre a Universidade de São Paulo/ Museu de Arqueologia e Etnologia e a Prefeitura Municipal da Estância Balneária de Peruibe. Projeto Arqueológico, Antropológico, Histórico, Ecológico, Museológico e Turístico do Município de Peruíbe. Relatório Anual, 1994. São Paulo, 1994, p. 10-20.
[10] BRAGA, Márcia. Conservação e restauro: Arquitetura brasileira. Rio de Janeiro: Rio, 2003, p. 36.
[11] CANUTO, M.S.; RIBEIRO L.; SALGADO, M.S. Possibilidades oferecidas pelas tecnologias digitais na preservação do patrimônio arquitetônico. In: NOBREGA e RIBEIRO (org). Projeto e patrimônio: Reflexões e aplicações. 1.ed. Rio de Janeiro: Rio Books, 2016, p. 263.
[12] LIMA, Jéssica Aparecida de Paula; OLIVEIRA, Vinícius M. A aplicação do Dense Stereo Matching (DSM) na produção de Mapas e Fichas de Identificação de Danos em patrimônio cultural edificado. Revista Restauro, São Paulo, v.6, n.11, 2022. Disponível em: <https://revistarestauro.com.br/aplicacao-do-dense-stereo-matching-dsm-na-producao-de-mapas-e-fichas-de-identificacao-de-danos-em-patrimonio-cultural-edificado/>. Acesso em: 23 fev. 2024.
[13] ANDRÉ, M.B. Ruínas do Abarebebê: Um olhar etnobotânico para a decolonização da paisagem. Trabalho Final de Graduação. São Paulo: FAUUSP 2019.
[14] MARCELINO, P.G. O papel das aves na dispersão de sementes da espécie exótica Schefflera actinophylla (Apiales, Araliaceae): Potencial de invasibilidade. Dissertação de Mestrado. São Carlos: UFCar, 2019.
Agradecimentos
Este trabalho foi realizado com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) e do Instituto Federal de Ciências e Tecnologia de São Paulo (IFSP).
Leandro Surya
Graduação em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2002), mestrado em Arqueologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2006) e doutorado em Arqueologia pela Universidade do Porto (2011). Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco.
Thais Cristina Silva de Souza
Pós doutoranda na Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF) área de Arqueologia. Doutorado (2018) e Mestrado (2011) na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Docente do Instituto Federal de Ciências e Tecnologia de SP.
Andrea Nunes Vaz Pedroso
Bióloga pelo Centro Universitário Santo André (2001), Doutora (2009) e Mestre (2006) em Biodiversidade Vegetal e Meio Ambiente do Instituto de Botânica de São Paulo (IBt). Professora e Pesquisadora da Biodiversidade em Fatias desde 2018.
Paloma Silva Viana
Arquiteta e Urbanista pela Universidade São Judas Tadeu (2016) e pós-graduada em Patologia das Construções pelo IPOG (2023).
v.8, n.16 (2024)
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