Museus de Cidade: lócus privilegiado para exercício do direito ao patrimônio cultural
| Beatriz Cavalcanti de Arruda |
Atualmente, mais de 54% da população mundial vive em cidades. A tendência de aumento da população mundial aliada à expansão da urbanização é crescente e irrefreável, especialmente em áreas em desenvolvimento. (Fig. 1)
O sistema de direitos humanos fundamentais não alcança todos os cidadãos, ao passo que o planejamento está longe de acompanhar a intensificação dos complexos e diversos problemas das cidades. [1]
A preocupação com o desenvolvimento e a sustentabilidade em meio urbano se faz presente em todos os meios, incluindo o cultural. Cada vez mais, a temática está refletida nas políticas culturais e perpassa as instituições. O campo museológico também vem apostando na abordagem de questões caras às cidades. Em especial, os museus de cidade [2] vêm gradativamente assumindo um importante papel no enfrentamento e discussão da problemática urbana.
Partindo do pressuposto que é na dimensão local que as políticas adquirem concretude; e considerando que as cidades podem ser consideradas espaços privilegiados para o exercício dos direitos culturais [3]; os museus de cidade devem ser considerados instituições fundamentais para a reflexão e debate sobre a urbe, para o estímulo à apropriação social do patrimônio e para exercício dos direitos culturais.
Direito ao Patrimônio nos Documentos Internacionais
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada em 1948, lança as bases para que o direito à vida cultural e a fruição das artes estejam entre os universais, indivisíveis e interdependentes direitos do homem [4]. Em 1966, a Organização das Nações Unidas – ONU retoma o direito à participação na vida cultural como um dos três direitos culturais básicos no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC [5].
Paulatinamente, os significados atribuídos à cultura e à participação na vida cultural foram sendo discutidos, ampliados, construídos e esmiuçados por declarações internacionais posteriores. O patrimônio (que paralelamente vinha passando por um alargamento conceitual) passa a ser reconhecido como parte da vida cultural dos indivíduos e das comunidades; e o direito ao patrimônio revela-se como decorrente do direito à participação na vida cultural. Em suma, fica evidenciado que o direito ao patrimônio cultural faz parte do sistema dos direitos humanos.
Partindo do pressuposto que a participação na vida cultural implica não somente na liberdade de escolha e no acesso, mas também na contribuição à cultura, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural afirma que o patrimônio cultural é fonte para criatividade e promotor da diversidade. [6]
De maneira ainda mais nítida, a Convenção de Faro reconhece “que o direito ao patrimônio cultural é inerente ao direito de participar da vida cultural, tal como definido na Declaração Universal dos Direitos do Homem”. [7]
Em 2007, o “Grupo de Friburgo” publica um documento inteiramente dedicado a compilar e interpretar declarações precedentes e pormenorizar os direitos culturais. A Declaração de Friburgo prima por relacionar o direito ao patrimônio ao direito à identidade, à memória e aos recursos necessários à criatividade. O respeito às referências patrimoniais é uma garantia à liberdade de escolha cultural. [8]
Para exercício pleno do direito ao patrimônio, as comunidades culturais devem ter acesso às referências patrimoniais, devem poder difundir suas referências e, especialmente, participar da identificação, da interpretação e processos de valorização do patrimônio cultural.
O acesso e usufruto do patrimônio cultural (tangível e intangível) estão profundamente vinculados aos demais direitos humanos e à dignidade humana [9]. Os direitos à vida, liberdade, justiça, igualdade, paz, propriedade, pensamento e expressão, religião, saúde, educação, trabalho, repouso e lazer são indissociáveis da plena vivência cultural.
Os museus – pela centralidade de sua função social [10] e seu papel especializado na salvaguarda, pesquisa e comunicação do patrimônio cultural da humanidade [11] – estão inseridos no sistema dos direitos culturais e devem atuar em benefício da consecução integral dos direitos humanos. A Recomendação Referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [12] explicita que “museus e coleções contribuem ao aprimoramento dos direitos humanos” e afirma que museus desempenham “um importante papel na educação (formal, informal e continuada), na promoção da coesão social e do desenvolvimento sustentável”.
O enquadramento da importância social dos museus e sua inserção no campo dos direitos à participação na vida cultural e ao patrimônio, se dá a partir de uma compreensão holística do ciclo patrimonial e do processo de musealização:
A sociedade (indivíduos e comunidades) gera e seleciona indicadores da memória e referências patrimoniais que ao serem inseridas em processos museológicos de salvaguarda, pesquisa e comunicação são transformados em bens patrimoniais. Em outras palavras, os processos museológicos têm o potencial de tratar, extroverter e devolver indicadores e referências para a sociedade. A sociedade/comunidade, por sua vez, ao retomar os bens patrimoniais – já permeados por um olhar preservacionista – tem a possibilidade e a potencialidade de passar por processos de identificação e apropriação e de desenvolver noções de pertencimento. Os bens patrimoniais considerados como pertencentes a determinada sociedade/comunidade são valorizados e tornam-se legado ou herança para as próximas gerações. E dando sequência ao ciclo, a herança patrimonial permite ilimitadamente novos arranjos e apropriações culturais.
A cadeia operatória museológica (que prevê a articulação das etapas de documentação, conservação, pesquisa, exposição e ação educativa) tem a capacidade intrínseca de promover de forma organizada o ciclo patrimônio/herança.
Museus de Cidade e o Enfrentamento do Urbano
Se pensarmos na urgência contemporânea da abordagem das conformações territoriais e patrimoniais, da sociabilidade, do imaginário e dos problemas das cidades, perceberemos que os museus de cidade podem ser poderosos agentes promotores do debate e do exercício dos direitos à cultura, à memória e ao patrimônio urbano. (Fig. 2)
Apesar de muitos museus de cidade ainda oscilarem entre suas tradições de pequeno museu de objetos históricos e as potencialidades do enfrentamento dos problemas urbanos, alguns já encaram o desafio de ter a cidade como seu principal objeto e demonstram ser instituições vocacionadas para promoção da reflexão e do exercício da vida cultural urbana. Museum of London; Amsterdam Museum; Museum of City of New York são alguns dos que ilustram essa concepção.
Em seu artigo O museu de cidade e a consciência da cidade, Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses propõe que “O Museu de Cidade deve, pois, dar conta da cidade – o que não quer dizer, é óbvio, esgotar esse objeto de atenção, mas enfrentá-lo na sua complexidade, considerando passado, presente e abrindo-se para o futuro. (…)” tendo como finalidade “(…) propiciar aos habitantes a tomada de consciência da cidade e o aprofundamento permanente dessa consciência”. [13]
Além da história, os museus de cidade passam a recorrer a outras disciplinas como a antropologia, arqueologia, sociologia, psicologia social, geografia, geologia, arquitetura e urbanismo para atender suas demandas. Assim como os princípios da Nova Museologia [14], outros modelos e tipologias de museus passaram a exercer influências sobre os museus de cidade, tais como museus de território, ecomuseus e museus de sociedade. [15]
O potencial do Museu da Cidade de São Paulo
O Museu da Cidade de São Paulo é um museu em rede localizado em imóveis de interesse histórico e arquitetônico, distribuídos pela malha urbana do município. Atualmente, seu acervo arquitetônico é composto pelo Solar da Marquesa da Santos, Beco do Pinto, Casa Nº 1/Casa da Imagem, Casa do Bandeirante, Casa do Sertanista, Capela do Morumbi, Casa do Tatuapé, Sítio da Ressaca, Sítio Morrinhos, Casa do Grito, Monumento à Independência, Casa Modernista e Chácara Lane. Também é responsável por um importantíssimo acervo fotográfico sobre a Cidade (podemos destacar as coleções Departamento de Cultura, Militão, Becherini, Gaensly e Expedição São Paulo 450 anos), um acervo de bens móveis (constituído por peças sécs. XVII, XVIII, XIX, a partir das atividades de comemoração do IV Centenário) e um acervo de história oral (Alguns temas: Memória dos Movimentos Sociais; Memória Fabril; História das Eleições; Ocupação Indígena na cidade de São Paulo).
O MCSP – dependente direto dos humores das entrecortadas gestões municipais – ainda não pode alcançar as condições ideais para fazer sínteses e interpretações que deem conta das dimensões da Megacidade, mesmo assim tem buscado não se omitir quanto ao cuidado e extroversão do patrimônio sob sua guarda direta, nem esquecer que está inserido em um sistema urbano mais complexo. Tendo em conta o compromisso social desse museu com São Paulo, é necessário que gradativamente seja ampliada a exploração de temas relacionados com as problemáticas urbanas e em especial temáticas que trespassem os direitos humanos. (Fig. 3 e 4)
Por seu modelo polinucleado, baseado em imóveis tombados, apresenta predisposição lógica para o estabelecimento de relações com o entorno imediato e com a tessitura da malha urbana. Seguramente, este museu de cidade tem grande potencial para colaborar para a construção de um espaço urbano e uma sociedade mais saudável.
Museu de Cidade: aliado do direito ao patrimônio
Tendo em conta a expansão da urbanização em todo o mundo, e a urgência da defrontação da problemática do desenvolvimento, sustentabilidade e atendimento de direitos humanos essenciais nas cidades, compreendemos que o campo da cultura não pode se eximir da reflexão e do debate. Particularmente, instituições vocacionadas para a abordagem da cultura material e imaterial urbana, como é o caso dos museus de cidade, têm que assumir posicionamentos. (Fig. 5)
Paralelamente ao refinamento de procedimentos de seleção, tratamento e extroversão de indicadores da memória, a museologia e os museus veem empreendendo uma profunda revisão de seus papéis na sociedade nas últimas seis décadas. As ações encadeadas do processo de musealização adquiriram o sentido de educação pelo patrimônio e para o patrimônio. Em outras palavras, o ciclo da cadeia operatória museológica pode promover o direito ao patrimônio. E quanto mais democratizados forem os métodos, maior a possibilidade de efetivação do direito ao acesso à participação na vida cultural e ao patrimônio.
Neste cenário, museus de cidade são instituições com grande potencial para reflexão e conscientização sobre a complexidade e diversidade urbana. A natureza problematizadora do trabalho museológico faz do museu de cidade o espaço propício para que os direitos fundamentais do Homem possam ser mobilizados como eixos tranversais, de forma a ampliar o conhecimento público e sua consequente efetivação.
Os museus de cidade podem promover trocas e o desenvolvimento cultural; a valorização social, territorial e patrimonial; e estimular a criação de ambientes urbanos mais criativos e sustentáveis. Logo, são lócus privilegiado para o exercício do direito ao patrimônio e à participação na vida cultural urbana.
Notas
[1] CENTRO REGIONAL DE INFORMAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da ONU mostra população mundial cada vez mais urbanizada, mais de metade vive em zonas urbanizadas ao que se podem juntar 2,5 mil milhões em 2050. UNRIC, 2014. Disponível em: http://www.unric.org/pt/actualidade/31537-relatorio-da-onu-mostra-populacao-mundial-cada-vez-mais-urbanizada-mais-de-metade-vive-em-zonas-urbanizadas-ao-que-se-podem-juntar-25-mil-milhoes-em-2050. Acesso em: 14/02/2017.
[2] Museu de Cidade pode ser considerado uma tipologia museológica. E possui um comitê próprio no Conselho Internacional de Museus – ICOM, o Comitê Internacional para as coleções e Atividades de Museus de Cidades.
[3] MARTINELL, Alfons. A Cidade Como Espaço Privilegiado Para Os Direitos Culturais. Revista Observatório Itaú Cultural / OIC – n. 11 (jan./abr. 2011) – São Paulo, SP: Itaú Cultural, 2011.
[4] ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948.
Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html. Acesso em: 14/02/2017.
[5] ONU. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. 1966.
Disponível em: http://www.prr4.mpf.gov.br/pesquisaPauloLeivas/arquivos/PIDESC.pdf. Acesso em: 14/02/2017.
[6] UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. 2002. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Acesso em: 14/02/2017.
[7] CONSELHO DA EUROPA. Convenção-Quadro do Conselho da Europa Relativa ao Valor do Patrimônio Cultural para a Sociedade. Faro: 2005. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/col%C3%B3quio%20Patrim%C3%B4nio%20Cultural%20%201%202009.pdf. Acesso em: 14/02/2017.
[8] MEYER-BISCH, Patrice; BIDAUL, Mylène (orgs.). Afirmar os direitos culturais. Coleção de Livros do Observatório. São Paulo: Iluminuras, 2014.
GRUPO DE FRIBURGO. Os Direitos Culturais: Declaração de Friburgo. Friburgo: UNIFR, 2007. Disponível em: http://www.unifr.ch/iiedh/assets/files/Declarations/port-declaration2.pdf. Acesso em: 14/02/2017.
[9] SHAHEED, Farida. Informe de la Experta independiente en la esfera de los derechos culturales. ONU, 2011. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G12/133/81/PDF/G1213381.pdf?OpenElement. Acesso em: 14/02/2017
[10] SEMINÁRIO REGIONAL DA UNESCO SOBRE A FUNÇÃO EDUCATIVA DOS MUSEUS, 1958 e MESA-REDONDA DE SANTIAGO DO CHILE, 1972 In: BRUNO, Maria Cristina Oliveira. O ICOM-Brasil e o Pensamento Museológico Brasileiro: documentos selecionados. São Paulo: Pinacoteca do Estado: Secretaria de Estado da Cultura: Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010.
[11] O Conselho Internacional de Museus – ICOM define o museu como “uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite”.
ICOM. Definição de Museu. 2007.
[12] ONU. Recomendação Referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade. Paris: 2015. Disponível em: www.museus.gov.br/wp-content/uploads/2016/11/Unesco_Recomendacao-Final_POR-traducao-nao-oficial.pdf. Acesso em: 13/02/2017.
[13] MENESES, Ulpiano Bezerra. O museu de cidade e a consciência da cidade. In: SANTOS, Antônio Carlos Marques dos; GUIMARAENS, Ceça; KESSEL, Carlos (Org.). Museus & cidades. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003.
[14] DESVALLÉS, André. Présentation. Vagues. Une Anthologie de la nouvelle muséologie. Lyon: Éditions Vagues; M. N. E. S.; Presses Universitaires de Lyon, 1992. (Collection Museologia. v. 1)
[15] ARRUDA, Beatriz Cavalcanti de Arruda. O Museu da Cidade de São Paulo e seu acervo arquitetônico. Dissertação (Mestrado em Museologia), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.
Beatriz Cavalcanti de Arruda
Historiadora e museóloga. Mestre em museologia (PPGMus/USP) com a dissertação “O Museu da Cidade de São Paulo e seu Acervo Arquitetônico” e especialista em Gestão e Políticas Culturais (Universidade de Girona/Itaú Cultural) com o trabalho “Museus de Cidade e o Direito à Cultura”. Foi diretora do Museu da Cidade de São Paulo entre setembro de 2015 e dezembro de 2016. Atualmente, assessora o Museu de Arte Contemporânea da USP na área de museologia.
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