| Iná Rosa |
Enuncia-se a casa de orates juqueriense com a responsabilidade deste tempo pela preservação de suas histórias memoráveis [1], sublinhando-se os seus bens materiais e imateriais, que ultrapassaram os feitos médicos e científicos, e distinguiram-se também pela sua diversidade, temporalidade e pluralidade do seu legado: de Franco da Rocha (o médico, o manicômio, a cidade e a estação do trem), da psiquiatria brasileira, dos registros documentais e científicos, da paisagem natural e construída, do urbanismo, da arquitetura, da arte institucional e demais manifestações culturais e, maiormente, das pessoas que ali estiveram.
Estigmatizado na origem como “casa de loucos” e por extensão “casa de gente insensata, onde ninguém se entende”, parafraseando aqui Machado de Assis em O alienista (1881) [2], o Juquery foi além das práticas manicomiais, manteve uma relação visceral com a cidade de Franco da Rocha, gerando inestimável herança patrimonial. Dignos de nota são os valores documentais, simbólicos, afetivos e memoriais, imputados pela população local ao partilhar com ele suas histórias de vida e aprendendo desde cedo a conviver com os diferençados.
Sobressaem-se a produção dirigida às artes plásticas (pintura, escultura etc.) tendo como mentor o médico Osório César; a revista científica produzida no Juquery (1924-1988); as pesquisas científicas (médicas e de outros campos do conhecimento); as expressões literárias (livros, crônicas e contos); as músicas e peças teatrais, com a promoção da comunidade interna e externa ao Juquery. Além disso, criou um linguajar local em função da presença do hospício.
Neste universo patrimonial, optou-se por abordar notas sobre a preservação do território e da arquitetura que esse modelo assistencial gerou e as relações culturais desenvolvidas pela instituição, apoiando-se na formação da autora e nos estudos praticados anteriormente [3], não objetivando, portanto, discutir os pleitos de ordem médica, dirigidos ao tratamento de saúde mental, visto que requer a presença de áreas especializadas no assunto.
Asilo-Colônia de Juquery, o manicômio
Inaugurado em 1898, na Estação Juqueri, atual cidade Franco da Rocha, o Asilo-Colônia [4] foi implantado em local não urbanizado, o que exigiu do Estado altos investimentos físico-institucionais, acolhendo inicialmente 80 enfermos do sexo masculino, transferidos dos hospícios Paulista e de Sorocaba. A demanda de serviços motivou a migração de pessoas em busca de trabalho e moradia (funcionários, familiares e parentes de internos). Cloquet (1900) nota que essas construções deveriam situar-se no campo próximo às cidades, para criar unidades agrícolas aos pacientes pacíficos e oferecer a sua vivência junto à natureza, em ambientes aprazíveis como parte do tratamento [5]. Adverso ao conceito que antevia o isolamento do hospício da cidade, com a sua expansão, agregou-se a sua malha urbana.
Ferrovia e Hospício foram decisivos no processo de urbanização da cidade de Franco da Rocha, de modo distinto do corredor ferroviário da Santos-Jundiaí, que teve a maioria dos seus núcleos urbanos formados próximos das paradas de trem e das indústrias instaladas em seu eixo, para atender a sociedade cafeeira em ascensão. Parte indelével das histórias da instituição psiquiátrica foi a de compartir com a cidade seus espaços coletivos em suas multíplices atividades (socioeconômica, cultural, de saúde e lazer), beneficiadas pela paisagem natural e construída, e a infraestrutura de que se dispôs ao seu funcionamento e a sua sustentabilidade.
A cidade-hospício, até 1970, evoluiu sem fronteiras físicas e morais, tornando o Juquery extensão da própria casa e a vida na cidade transcorria em suas terras. Com o crescimento urbano sem planejamento e entregue à especulação imobiliária, evidenciaram-se os interesses políticos, econômicos, fundiários e midiáticos, intervindo na relação de pertencimento cidade-instituição. Ulpiano Bezerra de Meneses (1999) distingue a relação de pertencimento da relação de contemplação: o primeiro se dá na apropriação da cultura local, de forma afetiva, estética e cognitiva, é o que vai definir o bem cultural; o segundo reside na reverência e não na vivência como habitante, mas como turista [6].
A Fazenda Juquery alcançou 2.983,425 ha (1895-1917), cerca de ¼ do Município de Franco da Rocha. Criou o Parque Estadual do Juquery (1993), em suas terras, com 1.927,70 ha, em reconhecimento aos seus mananciais, fauna e flora em área de Cerrado [7]. Envolto pelas serras da Cantareira e do Mar, compostas por mata atlântica, integra o cinturão verde da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) com outros parques e reservas. Tem como uma das divisas a Represa Paiva Castro, que abastece de água cerca de 50% da RMSP, o que torna as suas defesas vitais: água e natureza. Definiu-se como unidade de conservação destinada a fins científicos, culturais, educativos e recreativos, e objetiva a preservação dos ecossistemas vegetais e animais, de seus habitats e sítios geomorfológicos.
Com relação à Lei Federal nº 10.216/2001 que dispôs “sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental” e outros atos normativos, estabeleceram o fim dos hospícios e a criação de unidades psiquiátricas em hospitais gerais [8]. A medida instituiu novas formas assistenciais, delegando-se maior responsabilidade social e de seus familiares. Seu cumprimento gerou polêmicas, não pela permanência do modelo manicomial há muito superado, mas pela falta de investimento das esferas estatais, que não se aparelharam e nem priorizaram a assistência ao doente mental.
Durante o processo de desativação, em 2011, o Juquery foi tombado como bem cultural de valor histórico, arquitetônico-urbanístico e paisagístico, pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico, Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat) [9]. O processo foi aberto em 1986 e a sentença se cumpriu 25 anos depois. A medida reuniu estratos de sua arquitetura, pelo reconhecimento pioneiro de assistência asilar aos doentes mentais do Estado de São Paulo e marco histórico da medicina no Brasil, da psiquiatria e das políticas de saúde pública. Grifaram-se as obras Ramos de Azevedo: a implantação, a harmonia do conjunto, o paisagismo e os jardins remanescentes. Algumas obras de Ralph Pompêo de Camargo foram citadas, mas seu nome não foi destacado.
Inicialmente, nos estudos de tombamento incluíram-se a Fazenda na sua totalidade: organização territorial, construções arquitetônicas, acervos documentais e científicos, as peças anatômicas, os equipamentos médicos, os mobiliários, a produção artística etc., como aventado em pareceres técnicos relevantes, como o de Antonio Luiz Dias de Andrade. Essas medidas foram aprovadas pelo Conselho (1995), mas não homologadas. Com a regulamentação, a Fazenda Juquery não se afirmou como unidade territorial, nem as áreas envoltórias das colônias, cuja preservação abrange o domínio intramuros. Ao eleger algumas obras em detrimento de outras, enfraquece e esvazia o caráter de bem cultural exclusos do tombamento. Nota-se aqui a importância da preservação dos seus bens culturais, primando pela organização manicomial e a relação com as cidades a sua volta. Distribuíram-se em suas terras os edifícios do Hospital Central – Asilo – e oito colônias, sendo sete delas masculinas e uma feminina: 1ª Colônia (1898), 2ª Colônia (1907), 3ª Colônia (1912), 4ª e 5ª Colônias (1916), 6ª Colônia (1932), 7ª Colônia/1ª Colônia Feminina (1939) e 8ª Colônia (1942). Ainda que a sua preservação seja complexa como é sabido e envolva muitos fatores, acredita-se que após cinco anos de sua Resolução, seja oportuno dar continuidade às ações preservacionistas, no sentido de aproximar as formas técnicas, legais e fáticas a sua condição histórica e realidade existente. Prescindir dessa análise corre-se o risco do seu apagamento patrimonial.
Notas sobre o território e a arquitetura manicomial
A construção juqueriense seguiu o padrão de hospital e hospício da era industrial, que resultou da evolução das construções hospitalares desde a Antiguidade e que cruzaram séculos, com tipologia e aspectos formais comuns a cada período, como mostra o quadro de Le Mandat (1989). Pevner (1979) e Miquelin (1992) apontam que, no final do século XVIII, os hospitais e asilos urbanos exibiam alto grau de mortalidade, insalubridade e promiscuidade, e com isso foram feitas pesquisas científicas que auxiliaram no planejamento hospitalar do século XIX. Avaliou-se que a doença mental era passível de tratamento, ocasião que seus enfermos ficavam confinados em prisões, instituições como a Santa Casa de Misericórdia, quando não vagantes pelas ruas sujeitos aos maus tratos, como os de famílias mais carentes [10].
Na Europa oitocentista dominaram-se as ações de higienismo, que implicaram em grandes mudanças nas formas sociais urbanas e no seu modo de vida e se redesenhou a cidade e outra cultura técnica, com novas medidas, dirigido à população menos favorecidas, abrangendo-se assim toda a sociedade. Tais medidas levaram algumas enfermidades ao isolamento urbano, social e moral, com as instalações de manicômios, leprosários e sanatórios, fora da cidade, a fim de combater as nefastas epidemias que atingiam todas as classes sociais.
Os avanços das ciências médicas e das novas técnicas construtivas influenciaram a instalação de monoblocos horizontais, que admitiu o zoneamento funcional, a classificação por sexo e a separação dos diferentes graus e estágios de enfermidades. Esses conjuntos ocuparam terrenos cada vez maiores até alcançar a sua síntese formal no período entre as Guerras, cujo arranjo pavilhonar foi alvo de críticas e substituídos por blocos verticais mais compactos e de origem norte-americana, com plantas em “H” ou “T”, em terrenos menores, econômicos e prevista a sua ampliação, pois avaliaram que não era mais necessários os pavilhões em função da ventilação e luz natural, pois o problema maior era a falta de assepsia. O uso do concreto armado neste período permitiu o maior número de pavimentos [11].
O Brasil Republicano, do final século XIX, valeu-se da norma sanitarista, que trouxe nova feição as suas principais cidades, como o primeiro hospício científico do Estado de São Paulo, distante da capital paulista por uma hora de viagem. A estrutura pavilhonar, consonante ao que havia de mais moderno, levou o Juquery ao patamar internacional e o particularizou como modelo único no Brasil, atinente à assistência asilar, estrutura arquitetônica e territorial.
O projeto institucional do Juquery criado pelo médico Franco da Rocha teve a sua concepção arquitetônica confiada ao arquiteto paulista Ramos de Azevedo, firmando entre eles uma sólida parceria. O arquiteto cuidou dos detalhes em todas as etapas, mostrando o seu conhecimento em cada decisão do projeto: a concepção física; o domínio técnico e estrutural; a pertinência dos materiais; a tipologia e modenatura dos edifícios; os acabamentos e detalhes artísticos; os planos e volumes; a distribuição e conexão das atividades e as medidas de conforto e higiene [12]. O memorial elaborado por Ramos de Azevedo para a construção do hospício tornou-se documento essencial à apreensão do projeto arquitetônico [13].
Quanto às citações espaciais e estéticas atribuídas a Ramos, reportam-se aos mestres belgas Cloquet e Guadet, em sua formação pela Universidade de Gand, na Bélgica (1875-1878). Ambos defenderam a composição pavilhonar para hospitais e hospícios. Cloquet em o Traité d’architecture (1902) propõe a estrutura pavilhonar isolada com salas duplas, sem constituir-se em colagem e elementos fixos, mas como corpo orgânico num todo que se subdivide em partes solidárias. O edifício deveria conceber-se como conjunto e a sua composição do geral ao detalhe, partindo-se do sistema construtivo [14]. Guadet em os Éléments et théories de l’architecture (1902), oposto a Cloquet, quanto ao arranjo do edifício, propôs a reunião de partes do particular ao geral, o sistema construtivo de modo genérico e os elementos de composição como peças do edifício, não se atendo ao seu tipo [15]. Nota-se que Ramos aproximou-se mais dos projetos de Cloquet, partindo de sistema predefinido.
Para conceber-se o Asilo Colônia de Juquery, o médico e o arquiteto inspiraram-se no Asilo-Colônia de Alt-Scherbitz (1870), na Alemanha, para construção da 1ª Colônia Masculina, para os casos crônicos, que possuía a laborterapia como meios terapêuticos e autossustento na reabilitação pelo trabalho em colônia agrícola, local sem luxo, confortável, terreno amplo para cultura e criação, a fim de abrigar os doentes com proveito e economia [16].
O Asilo Sainte-Anne de Paris (1857), voltado à assistência de saúde mental, foi paradigmático à construção do Asilo de Juquery, que seguiu sua implantação e caracterizou-se pela definição da estrutura físico-institucional, com base pavilhonar com blocos horizontais enfileirados, a partir do zoneamento disciplinar (separação por sexo e setorização de usos), em edifícios térreos e assobradados, e seus pavilhões-dormitórios com plantas livres (Fig. 1). No Juquery reproduziu-se esses pavilhões enfileirados em suas extremidades, os masculinos à direita (1901) e os femininos à esquerda (1903), com as rotundas ao meio dos blocos, destinadas aos pacientes agitados, e que ficavam em celas fortes sujeitos ao tratamento disciplinar e banhos medicinais, em desenho diferenciado dos pavilhões (Fig.2). No centro das alas dispuseram-se a Administração, sede do poder administrativo do Hospício, inicialmente com seus principais serviços: médicos (laboratório, farmácia, atendimento clínico etc.), até a construção de prédios próprios. Neste eixo instalaram-se a Cozinha e Lavanderia e as áreas de apoio. O sistema de galerias (passadiços) que faz a ligação entre as unidades do núcleo central de Ramos e aos jardins entre os pavilhões qualificaram as áreas externas como locais de passagem e convívio. As galerias apoiam-se em colunas de ferro unidas aos guarda-corpos com linhas geométricas e os arremates junto à cobertura com motivos florais, bem como, o desenho primoroso do madeiramento da cobertura aparente (Figs.3 a 5).
Franco da Rocha (1912), ao citar a 2ª Colônia Masculina (1909), aponta a 1ª Colônia como modelo a ser seguido, portanto com a supressão das grades de ferro à espanhola em suas janelas para criar a aparência de habitação comum, sem a feição sinistra e desagradável de prisão [18]. Da 1ª a 5ª colônias masculinas utilizaram como referências projetuais as obras de Ramos. O Hospício na era Franco da Rocha (1895-1923) ficou à luz do ecletismo com base neoclássica, destacando a linguagem eclética do arquiteto, marcada na composição da planta, no ritmo, na simetria, na proporção de suas construções e nos demais adereços. A harmonia do conjunto é anunciada pela organização fachadística e a função cumprida pelo edifício internamente é revelada em seu exterior. É notório que o Asilo (Hospital Central), a Casa do Diretor (1899) tenham recebido detalhes mais suntuosos em relação à Colônia, devido as suas funções, porém obedeceram ao padrão do chalet francês. A Casa foi construída próxima à entrada da instituição e à estação do trem, em local estratégico ao domínio do seu gestor, que recebeu ornamentos como pináculos rendilhados de madeira nas suas quatro elevações, num trabalho primoroso que se estendeu ao acabamento de sua cobertura e alpendre (Figs.6 e 7).
No Asilo destacam-se a modenatura dos edifícios, as janelas com grades de ferro à espanhola, como na 1ª Colônia e no Laboratório de Anatomia (1916). Nos acabamentos nos gabletes dos pavilhões do Asilo, suas elevações frontais e de fundos, receberam pináculos do tipo florão e as elevações voltadas às galerias do tipo geométrico. As torres das Rotundas foram coroadas com ornatos remissivos às ameias clássicas.
Pacheco e Silva, segundo diretor do Juquery (1924-1937), manteve os princípios higienistas e deu continuidade ao regime asilar, porém consentiu algumas intercessões na obra de Ramos. Ocasião em que houve a mudança na organização institucional, de Hospício para Hospital (1925), com a ampliação de serviços estendido às outras especialidades, consolidando o atendimento que já se fazia à população externa. Pacheco contratou o engenheiro Ralph Pompêo, que passou a ser funcionário da instituição e responsável pelas obras prioritárias. No final de 1920 foi reformada e ampliada a Lavanderia para instalar as Clínicas Especializadas no Núcleo Central, e construiu-se no eixo da Cozinha existente, a Cozinha a Vapor, e o seu espaço foi adaptado para abrigar a Padaria e o Refeitório Médico, e nesta unidade foi elevada a torre do relógio que marcou a paisagem juqueriense no tempo.
O Manicômio Judiciário (1933) edificado para detentos com distúrbios mentais ficou distante do Hospital Central (Asilo), incidindo na última versão do ecletismo, com planta renascentista em “T”, como as estruturas prisionais europeias e americanas visitadas por Pacheco. Essa obra havia sido prevista por Franco, para separar os pacientes comuns dos criminosos, evitando o convívio no mesmo recinto.
Ralph propôs nova implantação ao dispor conjunto de edifícios em forma semicircular, como definiu Pacheco, que criticou as construções à época de Franco da Rocha, defendendo a nova distribuição, com ambiente alegre e similar a uma pequena vila, com habitação menos formal [19]. O estilo eclético cedeu à linha neocolonial de Ralph, que se utilizou de elementos remitentes aos estilos luso-brasileiro, hispânico (missões) e traços da construção normanda. Desenharam-se elevações com linhas geométricas e seus frontões em molduras de argamassa sobressalentes, simulando ornatos de madeira da construção normanda, na 6ª Colônia Masculina (1932) próxima à instituição judiciária e no Pavilhão de Tuberculosos (1933) e na Vila Residencial (1934), ambos no Hospital Central (Fig.8). Estes traços fachadísticos estenderam-se por toda a Fazenda. A Praça de Esportes (1937) remeteu-se ao estilo missões (Parque, Estúdio e Pérgolas, e Vestiários) com cunhais de pedras, volutas entre outros seus adereços, e campo de futebol (Fig.9), recuperado pela municipalidade, em 2015, que obteve concessão de uso daquela área e de outros edifícios do entorno, e vem adequando aos novos usos.
As mulheres tiveram seus aposentos nas proximidades da administração central, com base no conceito moral de que precisavam de maior vigilância, primeiramente com a construção do 5º Pavilhão Feminino (1923) ao lado do conjunto pavilhonar, no final da era Franco da Rocha. A 1ª Colônia Feminina foi construída na era Pacheco após 51 anos da 1ª Colônia Masculina, com 12 pavilhões, em edificação térrea e seus frontões receberam óculo e volutas, e os seus cunhais de pedra (Fig.10). Às mulheres couberam os trabalhos manuais (bordados, costuras, pinturas, etc).
As construções sob o comando de Pacheco e Ralph concentraram-se junto às obras de Ramos em proveito a sua infraestrutura e acessibilidade, salvo algumas interferências, estiveram em harmonia, o que não aconteceu anos posteriores. Finda-se a gestão de Pacheco em 1938, que assumiu a carreira acadêmica na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, deixando obras por inaugurar: os pavilhões de Observação para triagem dos internos recém-chegados à estrutura asilar e a Colônia de Mulheres. Nas gestões de Franco e Pacheco, o Juquery transformou-se num canteiro de obra, deixando um legado arquitetônico respeitável.
Em 1939, marca o processo de decadência da instituição e as mudanças de gestões administrativas tornaram-se frequentes. Anotam-se as construções novas, os anexos, as alterações e as reformas internas em todas as suas unidades. A situação torna-se agravante com o interventor federal no Estado de São Paulo, Adhemar de Barros, na era getulista, que se muniu de medidas conturbadas, com repercussão negativa ao Hospício. Sob sua ordem foi construída a 8ª Colônia Masculina, último conjunto pavilhonar da série, com objetivo de atender doentes mentais transferidos de prisões, do interior e da capital paulista, desestabilizando o sistema com a superlotação de seus pavilhões.
A sede do Parque Infantil (1948) foi construída no Hospital Central por Ralph, que ficou na instituição até a década de 1950, visando abrigar os filhos dos funcionários, o que mostra o forte elo entre o hospício e a cidade. Mais tarde, muitos dos que frequentaram o Parque foram trabalhar na instituição. Em sua construção usou-se numa de suas elevações o mesmo princípio da Colônia de Mulheres, parede com aberturas em semicírculos.
Verifica-se que, em 1923, na aposentadoria de Franco da Rocha, a população do Juquery era de 1.600; em 1937, ao final da gestão de Pacheco, aproximou-se de 4000 internos. Estima-se que, nos anos de 1960 e 1970, no regime militar, a instituição abrigou 16.000 pacientes, o que justifica as construções maiores como o Almoxarifado Geral (1957), seguindo o desenho fabril, para atender a grande demanda de materiais necessários ao funcionamento da instituição, com planta livre de grande proporção e cobertura com shed (Fig.11); na década 1990, esse número foi decaindo. Em 2011, com a nova lei, somaram-se 230 internos, na sua maioria acamados, reunindo-se na 1ª Colônia Feminina. Em 2016, conta com 134 internos.
As Clínicas Especializadas passaram por várias reformas e utilizaram o 4o Pavilhão das alas masculina e feminina do conjunto de Ramos para ampliar os serviços. Próximo a ala masculina, nos anos 1980, foram feitas duas novas construções miméticas ao conjunto eclético, com padrões inferiores aos existentes, adensando mais o seu espaço para atender à demanda regional, descaracterizando ainda mais o seu traçado ortogonal. Houve contribuições posteriores que envolveram outros profissionais como funcionários da instituição, que devem ser registradas e entendidas no seu tempo histórico. As decisões quanto ao seu destino impõem o juízo crítico de valor, para não se perder trechos de sua história.
No Juquery, o primeiro conjunto vertical foi construído nos anos 1990, próximo à Represa Paiva Castro, voltada à Estrada SP-23, que divide a Fazenda em duas partes, destinada ao Centro de Ensino e Instrução do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Inaugurado em 2011, o Hospital Estadual de Franco da Rocha, edifício vertical, com cinco andares no Hospital Central, equipamento regional, foi construído entre o conjunto de Ramos e da Colônia de Mulheres de Ralph, de forma dissonante ao local, não pela proposta projetual, mas por subtrair a unidade desses conjuntos sem o devido espaçamento e ao ocupar área de densa de vegetação. O Pavilhão de Tuberculosos, projeto de Ralph, próximo ao novo Hospital, foi reformado para instalar o Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental (Caism), visando atender aos doentes mentais com breve permanência. A intercessão nesse Pavilhão descaracterizou a unidade do seu conjunto, remissivo ao desenho normando. É sabido que esses serviços são importantes à região, a questão reside em manter o diálogo entre a estrutura antiga e a nova.
A responsabilidade sobre a memória juqueriense
O enunciado sobre a relevância e a responsabilidade para com a salvaguarda patrimonial juqueriense vai ao encontro da definição de Meneses, sobre a memória e história, que contribuem com a discussão sobre o tema tratado.
A memória, como construção social, é formação de imagem necessária para os processos de constituição e reforço da identidade individual, coletiva e nacional. Não se confunde com a História, que é forma intelectual de conhecimento, operação cognitiva. A memória, ao invés, é operação ideológica, processo psicossocial de representação de si próprio, que reorganiza simbolicamente o universo das pessoas, das coisas, imagens e relações, pelas legitimações que produz. A memória fornece quadros de orientação, de assimilação do novo, códigos para classificação e para o intercâmbio social. [20] [grifo nosso].
A memória é objeto da história, acrescenta Meneses. É seletiva, pressupõe vivência, objetos, documentos, experimentação. Sua elaboração se dá no presente para responder às solicitações do presente. Ela aparece enraizada no passado, restando-lhe em relação ao presente, transmitir-lhes os bens que já tiver acumulado. “A memória é filha do presente. Mas como seu objeto é a mudança, se lhe faltar o referencial do passado, o presente permanece incompreensível e o futuro escapa a qualquer projeto”. A preservação da memória é responsabilidade social e a sua caracterização é como mecanismo de registro e retenção, depósito de informações, conhecimento, experiência. O autor discorre sobre o risco de desgastar a memória “como objeto friável submetido a uma ação abrasiva; por isso é que precisa não só ser preservada, mas restaurada na sua integridade original” [21].
A população juqueriense ressente-se do mau estado de conservação do conjunto arquitetônico, mas, ainda não está devidamente articulada para reivindicar medidas contundentes para a sua proteção. Além da participação da sociedade e dos atores envolvidos, é imprescindível a envoltura de profissionais habilitados, para orientar as ações de preservação, em respeito aos seus valores históricos, artísticos, estéticos e memoriais. Mas que, por desmandos e descuidos de toda ordem e desordem ou em meio ao progresso regresso desaparecem em chamas, em cinzas. No caso do Juquery, restaram parte de suas edificações após os incêndios do Pavilhão Administrativo (2005), 3º Pavilhão-Dormitório (1999), ala feminina, no núcleo central (Figs.12 e 13) e, recentemente, a 5a Colônia Masculina sofreu rebelião de seus internos que a incendiaram, encontrando-se ocupada de modo inadequado pelo regime carcerário, além das demolições. Nessa destruição difícil de conter, esvai-se a cultura das nossas instituições, ameaçando o testemunho do passado no presente e de gerações vindouras.
Sobre a diversidade de usos na Fazenda, de modo conflitante à estrutura física, requer a sua revisão se a intenção é a sua preservação, de forma criteriosa e em sua integridade, o que demandaria ação política contundente, tarefa nada fácil, dados os seus múltiplos interesses e agora com os usos sucateados, sem que haja gestão única para o comando de suas terras e de seus edifícios. Com o parcelamento da Fazenda, desde 1955, dentro do próprio Estado e Município, somaram-se atividades incompatíveis ao seu uso.
De hospício à prisão tem se valido também o espaço manicomial juqueriense. Houve parte significativa de área transferida ao regime carcerário, a partir meados de 1980: Penitenciária de Franco da Rocha, Centro de Detenção Provisório (CDP), Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa) e Centro de Progressão Penitenciária (CPP) que conta com regime semiaberto. Esses usos, frente ao modelo prisional desmantelado, geraram riscos à população local e de seus arredores.
A 1a Colônia Masculina encontra-se sem uso e seus pavilhões num grau avançado de deterioração (Fig.14). A 2ª Colônia Masculina, próxima ao centro da cidade, foi descaracterizada com a reforma e acréscimos que recebeu no início deste século, à época do tombamento, para a instalação da Praça de Saúde da Unidade Básica de Saúde (UBS), do Pronto Socorro e de ambulatórios de várias especialidades com anuência do Estado e do Município. Não se indaga também a necessidade dos serviços à saúde pública, mas a incompatibilidade de usos.
Salienta-se o uso como meio e não como finalidade da intervenção, como nota Beatriz Kühl, que corrobora ao dizer que “na restauração, é possível encontrar um uso compatível e desenvolver o programa de maneira adequada – se o que se quer é de fato preservar como ato de cultura”. A autora acrescenta que “Se o uso não é objetivo da intervenção, mas favorece a intervenção da obra, isso significa que o uso é o meio de preservar” [22]. Enfatiza-se ainda dentre as muitas ações necessárias, a importância de projetos qualificados, pois os “projetos de intervenção não são instrumentos de mudança da ordem estabelecida, mas expressões da capacidade de captar a realidade em transformação e propor alternativas de organização”, como expõe Leite [23].
“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, diz José Saramago em o Ensaio sobre a Cegueira, e Arthur Netrosvski decodifica que “não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado” [24]. Reparem que a preservação têm valores com significados culturais. Vale-se das palavras do escritor prêmio Nobel de literatura (1998) para instituir as manifestações de preservação – olhar, ver e reparar – incluindo a Manutenção, Conservação e Restauração, constantes na Carta de Veneza [25], o acordo internacional que trata de medidas preservacionistas, firmado em 1964, aplicando-se ao repertório juqueriense: das suas obras mais singelas às mais grandiosas.
Notas
[1] Este artigo contempla pesquisas desenvolvidas na FAUUSP/FAPESP, de 2009 a 2011. (ROSA DA SILVA, Iná. Preservação do Juquery: Território e Arquitetura. São Paulo: Pós-Doutorado apresentado à FAU USP; Fapesp, 2011).
[2] ASSIS, Machado de. O alienista. 10ª ed. São Paulo: Ática, 1984. Assis, por meio literário, faz critica em relação à construção de manicômios e a forma de tratamento, como o Hospital D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Discorre sobre casa de orates, na cidade de Itajaí, nomeada Casa Verde, valendo-se da figura emblemática do médico Simão Bacamarte para construção e gestão do hospício. Obra destacada por Hugo Segawa em a Casa de Orates, que retrata a arquitetura implantada no Brasil no século XIX para construção de hospícios. (SEGAWA, Hugo. Casas de Orates. In: ANTUNES, Eleonor Haddad et al. Psiquiatria, loucura e arte. Fragmentnos da História Brasileira. São Paulo: Edusp, 2002).
[3] ROSA DA SILVA, Iná. Franco da Rocha nas Terras de Juquery: um hospício, uma cidade. São Paulo: Mestrado apresentado à FAUUSP, 1995; Idem. A cidade sendo redesenhada pelos vazios: Franco da Rocha nas terras de Juquery. São Paulo: Doutorado apresentado à FAUUSP, 2005; Ibdem, 2011.
[4] Os termos asilo, colônia, hospício, manicômio e demais convenções foram usados para instituição psiquiátrica. Asilo, abrigo para permanência menos prolongada, local de tratamento médico e disciplinar, banhos medicinais etc. Colônia teve sua instalação fora do meio urbano, em terrenos de grandes dimensões (chácaras ou fazendas) e ao trabalho rural como parte do tratamento.
[5] CLOQUET, Louis. Traité d’architecture. Paris, Liege: Librairie Polytchnique/Ch.Béranger, 1900, pp. 493-494.
[5] SÃO PAULO (Estado). Decreto Nº 36.859, de 5 de junho de 1993, cria o Parque Juquery. Disponível em: <http://www. jusbrasil.com.br/legislacao/177932/decreto-36859-93-sao-paulo-sp>. Acesso em: 5 jul. 2009.
[6]MENESES, Ulpiano Bezerra de. Os “usos culturais da cultura”: Contribuição para uma abordagem crítica das práticas e políticas culturais. In: YAZIGI, Eduardo. Turismo: espaço, paisagem e cultura. 2a ed. São Paulo: Hucitec, 1999.
[7] SÃO PAULO. Resolução SC-13, de 09 de março de 2011. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 17 maio 2011, p. 37. [Tombamento do Complexo Hospitalar do Juquery].
[8] BRASIL. Lei Federal nº 10.216 de 06 de abril de 2001, que dispõe “sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/ arquivos/pdf/lei10216.pdf>. Acesso em: 18 out. 2010.
[9] SÃO PAULO. Resolução SC-13, de 09 de março de 2011. Diário Oficial do Estado de São Paulo, 17 maio 2011, p. 37. [Tombamento do Complexo Hospitalar do Juquery].
[10] LE MANDAT, M. Prévoir l’espace hospitalier. Berger-Lavraut, Paris, France: Acût, 1989; PEVSNER, Nikolaus. Historia de las tipologias Arquitectonicas. Barcelona: Gustavo Gili S.A, 1979; MIQUELIN, Lauro Carlos. Anatomia dos edifícios hospitalares. São Paulo: Cedas, 1992. BITTENCOURT, Tania Mara Mota. Arquitetura sanatorial. São José dos Campos, SP: T.M.M.Bittencourt, 1998, p. 54.
[11] PEVSNER, op.cit., 1979.
[12] WOLFF DE CARVALHO, Maria Cristina. Ramos de Azevedo. São Paulo: Edusp, 2000, pp. 102, 137 e 169.
[13] PUJOL, Alfredo. Relatório apresentado ao Sr. Dr. Presidente do Estado de São Paulo em 30 mar. 1896, pelo Secretário de Estado dos Negócios do Interior e Instrucção Pública. In: Diário Official. São Paulo: Diário de São Paulo, 1896, pp. 24-29. [Acompanha o memorial do projeto de Ramos de Azevedo sobre a construção do Juquery].
[14] CLOQUET, op.cit., 1900.
[15] GUADET, Julien. Éléments et théories de l’architecture. Paris: Librairie de la Construction Moderne, 1902.
[16] ROCHA Franco da. Hospicio e Colonias de Juquery. Vinte annos de Assistencia aos Alienados em São Paulo. São Paulo, s.e., 1912, p. 2.
[17] idem, pp. 23-25.
[18] Ibidem, p. 32.
[19] PACHECO E SILVA, A.C. A assistência a psicopatas no Estado de São Paulo. Breve resenha dos trabalhos realizados durante o período de 1923 a 1937. São Paulo: Oficinas Gráficas de Assistência a Psicopatas, 1945, p. 13.
[20] MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A história, cativa da memória? In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 1992, v. 34, p. 10.
[21] Idem, pp. 10, 11, 14,15.
[22] KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da industrialização: problemas teóricos de Restauro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
[23] LEITE, Angela Faggin Pereira. Destruição ou desconstrução? São Paulo: Hucitec; Fapesp, 1994, pp. 7-8.
[24] SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: 1996.
[25] CARTA DE VENEZA. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 1987, n. 22, pp.106-107.
Iná Rosa
Arquiteta e urbanista pela Universidade Braz Cubas, com Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Professora da Universidade Paulista (UNIP), desde 2013, nas disciplinas de Trabalho de Conclusão (TC), como orientadora, e Técnicas Retrospectivas. Dedica-se há mais de duas décadas aos estudos sobre o Juquery e a cidade de Franco da Rocha, na área de preservação do patrimônio arquitetônico e de seu legado cultural, com a publicação de artigos em periódicos (físico e virtual) e eventos científicos, tornando-se especialista e consultora nos assuntos que envolvem o tema.
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