| Thainá Vígio Ribeiro e Maria Luisa Soares Ramos de Oliveira |
A pintura chinesa é chamada de 國畫 (guó huà) ou pintura nacional e consolidou seus cânones durante a Dinastia Song 宋朝 (960-1279 d.C.), na qual se desenvolveram teorias da arte, estilos de pinceladas e temas, além de um potente diálogo de arte pela arte com critérios estéticos e críticos aplicados até hoje. A pintura é considerada uma das três perfeições artísticas que um erudito chinês deveria dominar juntamente com a caligrafia 書法 (shūfǎ) e a poesia 詩 (shī) por meio do papel 紙 (zhǐ), do pincel 刷子 (shuāzi), da tinta 墨水 (mòshuǐ) e do tinteiro 墨水瓶 (mòshuǐpíng), ferramentas estas chamadas por alguns autores como “Os Tesouros do Letrado” [1].
Tradicionalmente, a pintura é iniciada sob uma superfície plana de papel ou seda para então ser finalizada em um suporte. Esses suportes podem ser álbuns, leques (feitos de seda, papel, bambu, madeira, osso, penas, entre outros), rolo de mão, painéis e, no caso aqui estudado, rolos pendurados na vertical, recebendo o nome de 條幅 (tiáo fú). Neste último, sobrepõem-se algumas camadas de papel 宣 (xuān), depois se aplica sobre este uma tela de seda com a pintura propriamente dita e, por último, esse conjunto leva um acabamento com bordas decorativas de seda (Fig. 1). Esse tecido proteico encontra-se em três distintas fiações nas obras da casa-museu. A primeira delas é uma seda espessa mista com algodão denominada 錦 (jìn – na qual origina o ideograma de algodão 棉, substituindo o radical ouro 金 para madeira 木), a segunda, um pouco menos grosseira, possui uma padronagem monocromática de plantas ou nuvens, conhecida como 綾 (líng). Essa seda é a que se encontra nas bordas das pinturas como uma moldura ou passe-partout. Por último, a mais fina, onde se aplicam os pigmentos e tintas, é chamada 絹 (juàn – tela de seda fina). Entre esses revestimentos utilizam-se colas geralmente de origem animal e essas por serem solúveis em água facilitam a separação do papel quando está deteriorado da seda pintada, para depois ser substituído por uma nova camada, preservando a pintura em si. A montagem de seda e a camada celulósica de reforço estrutural são anexadas a uma haste de madeira na parte inferior para fornecer o peso necessário e, na superior, uma menor para ajudar a manter o suporte reto. Essa mesma haste ajuda a enrolar a obra na hora de ser transportada ou armazenada e é amarrada por uma tira de tecido.
A Fundação Eva Klabin (FEK) foi criada em 1991 pela colecionadora de arte Eva Klabin e aberta ao público em 1995 com o objetivo de expor toda sua coleção em sua própria casa, para que o carioca pudesse apreciar a diversidade artística de diferentes culturas. Os objetos de estudo deste artigo são quatro pinturas em exposição permanente pertencentes à Coleção Oriental situada boa parte na Sala Chinesa, que compreende peças de diversos períodos históricos da China bem como de outros países asiáticos, a exemplo da mesa de laca vermelha pintada da dinastia Ming (1368-1644 d.C.), a peça mais antiga da coleção chinesa, um vaso ritual Kuei em bronze da dinastia Shang, (1557-1050 a.C.) e um grou tailandês em bronze do século XIX.
Caracterização e avaliação do estado de conservação
De acordo com a museóloga da fundação Ruth Levy, a primeira avaliação estética feita nas pinturas foi do conceituado sinólogo Ricardo Joppert, em 1995, antes da abertura do museu, seguida anos depois, em 2016, de um exame para restauração realizado pela conservadora-restauradora de obras sobre papel Liamara Fanaia.
Com o propósito de facilitar e organizar as leituras das obras foi necessário elaborar uma nova ficha de identificação como demonstrada para a obra 1068 (Fig. 2, 3, 4 e 5), agregando as informações já existentes com o modelo Constat D’etat para pintura sobre tela na França [2]. Para o vocabulário e análises formais de pintura chinesa foram utilizados dois livros sobre o assunto: primeiro, o Manual do Jardim da Semente de Mostarda 芥子園畫譜 (jièzǐ yuán huàpǔ), de 1782, no idioma original para proporcionar uma tradução correta [3]; e o segundo, o Chinese Painting Colors, de Yu Feian [4], ambos reunindo receitas de como preparar os materiais, identificação de elementos na pintura, entre outros. De acordo com o diagnóstico de conservação, concluiu-se que as pinturas apresentam patologias semelhantes entre si devido ao modo incorreto de armazenamento e ao tempo de aproximadamente duas décadas ininterruptas em exposição. Com essas análises é possível dizer que os sinais mais comuns de degradação são: vincos, principalmente devido à estrutura celulósica dos papéis utilizados e ressecamento da seda; perda de pigmentos; craquelês na camada pictórica e escurecimento da seda.
As pinturas são, respectivamente, a de número 1065, com estilo de montagem de uma cor e datação atribuída a Dinastia Ming Tardia (1590-1644 d.C.) até Qing Tardia (1800-1920 d.C.), localizada na entrada da Sala Chinesa (Fig. 6); as de números 00009 e 00010, atribuídas ao mesmo período, retratando a cena de condenação do conto do General Huang Gai 黃盖; e a de número 00068, com estilo da Dinastia Tang (618-907 d.C.) e temática budista situada entre estas duas últimas. Todas pertencem ao estilo 工筆 (gōngbǐ), caracterizado como realista pelo uso de pincéis muito finos e esmero nos detalhes. O delinear é feito majoritariamente com nanquim negra e as cores são relativamente claras e não acumuladas ou em várias camadas com diferentes tonalidades. Nessa técnica, inicia-se com os elementos naturais, seguidos dos contornos para então aplicar as cores. Os pinceis utilizados são de pelos naturais e, portanto, chamados genericamente de 毛筆 (máo bǐ). Possuem como característica também dois tipos de escrita: selo pequeno 小篆 (xiǎozhuàn) e semi-cursiva 行書 (hángshū) na peça 1065; semi-cursiva em 00009 e 00010 e nenhuma na pintura 00068 [5].
Soluções de acondicionamento e exposição
Em primeira instância foi solicitado um acondicionamento protótipo de uma pintura de menor dimensão para melhor visualização da proposta entre a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Fundação Eva Klabin. Nesse sentido, a quantidade de material bem como a proporção da caixa demonstrados neste artigo são equivalentes ao protótipo.
A proteção primária foi baseada em dois trabalhos que tinham como meta não utilizar adesivos em suas confecções. Em Freer and Sackler Galleries [6] observa-se uma caixa de papelão livre de ácido e uma estrutura curva de espuma Volara® em seu interior para melhor adaptar o formato curvo da pintura quando enrolada. O segundo esquema é de um conjunto de rolos chineses da coleção de Camilo Pessanha do Museu Nacional de Machado de Castro [7] e possui o propósito de uma salvaguarda de tubo de cartão rígido, inserindo a haste maior da pintura no interior deste tubo através de um corte para, a seguir, enrolar a pintura na parte externa deste mesmo tubo, sendo a haste menor presa por um poliéster em formato de meia-lua, depois o conjunto é embalado com um filme fino de Melinex®.
A solução de caixa é ideal para a reserva técnica provisória da casa-museu uma vez que, somada à tampa, cria uma zona de isolamento e proteção rígida entre a obra e o meio externo, além de não necessitar de um acondicionamento secundário. Ao mesmo tempo, os tubos oferecem o mecanismo de sustentar as hastes distribuindo uniformemente o peso da obra sobre sua estrutura tubular, podendo ser aplicado no espaço interno da caixa.
Com base na identificação mais detalhada do acervo e do seu estado de preservação determinou-se uma proteção primária que poderia tanto ser temporária como permanente (Fig. 7), almejando a compatibilidade entre a dimensão do acervo, o espaço destinado a ser reserva técnica (que provisoriamente é uma saleta com uma bancada dentro da Sala Chinesa), o uso de materiais mais acessíveis e uma distribuição uniforme do peso das hastes; desdobrando-se assim o sistema de guarda de caixa museológica feito a partir de placas de polionda com uma etiqueta de identificação com foto e número do dossiê na tampa. Foram acrescentados três pequenos suportes com espuma de 10 mm cinza de polietileno expandido nos cantos da parte inferior da caixa e em uma de suas laterais, a fim de amenizar através da maciez do material, o peso das hastes. Por último, a pintura foi envolta em papel siliconado e armazenada na posição horizontal (Fig. 8).
De modo a evitar eventuais danos durante o manuseio das pinturas é importante conhecer uma maneira segura de retirá-las e colocá-las na parede. Para isso, existe uma ferramenta composta por uma vara e um gancho em uma de suas pontas, de modo a permitir que a pessoa com uma das mãos segure a haste inferior da obra enquanto com a outra manipule a vara com o gancho voltado para as tiras da parte superior da pintura. Este instrumento foi confeccionado utilizando bambu seco e cola P.V.A (acetato de polivinila) (Fig. 9) [8].
Considerações finais
Nesta proposta foram apresentadas soluções para acondicionar quatro pinturas chinesas sobre seda na Sala Chinesa da Fundação Eva Klabin, acompanhada da necessidade de uma ficha técnica mais específica que abrangesse as particularidades estéticas e físico-químicas de uma categoria de arte ainda pouco estudada no âmbito museológico e da conservação no Brasil e no Rio de Janeiro. Considerada uma das maiores heranças do Império do Meio para a Ásia, a pintura chinesa tradicional une elos sofisticados entre a cultura visual e a literatura, enfatiza a natureza narrativa dos períodos feudais relacionados às noções predominantes da função didática da arte. Chamo a atenção para a importância de desenhar um espaço para as artes chinesas. Uma exposição deve inspirar a audiência não só por ver as pinturas dispostas, mas promover paz interior e beleza neles mesmos. A preservação do patrimônio cultural requer a atenção do público e dos profissionais responsáveis para então ser absorvida na rotina da população, pois só se conserva aquilo que se compreende.
v.3, n.6 (2019)
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